domingo, setembro 13, 2009

Duas vezes Tarantino

À Prova de Morte é o filme mais simples e relaxado de Tarantino, sem estruturas milimetricamente construídas, como a de Pulp Fiction, ou exaustivas e cheias de informação, como a de Kill Bill. É um filme analógico, como um LP: meninas conversam pra lá e pra cá até a metade do filme, onde há uma explosão de violência que encerra o lado A. Viramos o disco, e o chitchat volta com mais meninas legais falando pelos cotovelos. Última faixa é outra longa sequência violenta, só que com direito a revanche.

Francamente, essa simplicidade desconcertante do filme de meninas em férias (a ideia do Grindhouse, homenagem ao cinema pulp dos anos 70, passa em branco) registra absurdamente como um filme de Rohmer, e num dia inspirado. Os alicerces estão todos no bate-papo, e 90% da projeção é apenas isso, um primor de leveza.



E Tarantino, claro, continua um excelente dialoguista, o melhor de todos, escrevendo falas que passam longe do cool gratuito, definindo e desenvolvendo personagens com uma facilidade inacreditável. Quanto mais o tempo passa, mais tempo queremos ficar espionando esse papo do lado de cá da tela.

O filme é um prazer de ver e ouvir, um divertissement (alô, Setaro) de luxo de um autor inspiradíssimo. Se Tarantino fosse Hitchcock, esse seria seu Intriga Internacional, ou Ladrão de Casaca. Se a Europa finalmente lançá-lo em novembro, mesmo tendo perdido muito coisa, arrisco dizer que pode ser o melhor filme do ano.

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Antes de À Prova de Morte estrear no Brasil, a Universal deve pôr no mercado o longa mais recente de Tarantino, Bastardos Inglórios (Sacanas Sem Lei em Portugal e Angola), que estreou em Cannes e, dizem, foi levemente remontado para a exibição comercial. O filme é outra joia, e nos traz prazeres inéditos na obra do diretor.



Pode não parecer, mas Tarantino sempre teve interesse absurdo por gente, personagens, característica que não é encoberta pela estilização que é sua marca registrada. Dessa vez, com a exceção do Coronel Landa, seu filme abandona essa preocupação e resume-se a uma coleção de fetiches cuja única função é compor a imagem de uma grande celebração do cinema, daquele antigo, em película.

Se Death Proof lembra Rohmer, esse aqui seria o Vestida Para Matar de Tarantino, o momento em que a reflexão sobre a História e a linguagem do cinema (presente em toda a carreira do diretor) finalmente suplanta a busca obsessiva por um refinamento dramatúrgico. Tudo funciona dentro do cinema, sem que a possibilidade da existência de um mundo real sequer exista. Não à toa, os fatos são mandados à puta que pariu da maneira mais delirante possível.

Enfim, é um filme com muito plot e pouco drama, um quebra-cabeça fácil de montar, cheio de peças usadas mas remontadas com imenso frescor. Bastardos Inglórios voa das aventuras de montanhismo de Pabst até os thrillers estilosos de guerra dos anos 60. Cinéfilos riem mais, e melhor. Em tempo: o próximo filme de QT deve ser estrelado por Lauren Bacall.

sexta-feira, setembro 04, 2009

Alfazema e arsênico

Tento há dias escrever alguma coisa sobre uma marretada em forma de cinema chamada O Segredo Íntimo de Lola, de Jacques Demy, mas tudo o que poderia (e vou escrever abaixo) pode ser resumido numa frase de um amigo do Orkut, Júnior Soares: alfazema e arsênico. O Segredo... , ou Model Shop, retoma a personagem-título de Lola, A Flor Proibida, a prostituta sonhadora à espera de seu grande amor, que chega num carro branco conversível, como um príncipe sobre seu cavalo (onde li isso?).

Na continuação de seu primeiro longa, desmonta de vez o artificialismo daquele sonho de amor em p&b e traz Lola de volta, amrgurada, abandonada na América após um divórcio humilhante, prostituindo-se novamente para pagar uma passagem de volta à França e reencontrar seu filho pequeno. Um arquiteto desempregado se apaixona por ela à primera vista, mas a guerra o espera na segunda-feira.



Ao menos nessa fase dos anos 60, Model Shop é o filme de Demy mais frontalmente amargo, sem o lirismo da música de Michel Legrand para disfarçar a crueldade do mundo, ou a paisagem das cidades portuárias francesas para envolver os personagens em um pouco de beleza. Não - Los Angeles, uma cidade que os personagem do filme adora, nunca pareceu tão triste e deprimente, e o tom estranhamente não-espetacular para o normal do diretor nos garante que esse é um exemplar de melancolia puro sangue.

Não há aquela vontade de reconstruir o universo para escapar à realidade, algo identificado por vários críticos em Vincente Minnelli, outro mestre do musical. O que era a Argélia se infiltrando em Lola, Os Guarda-Chuvas do Amor e Duas Garotas Românticas se converte no Vietnã. O final feliz de A Baía dos Anjos também é sacrificado ironicamente numa fala de Lola, que revela o paradeiro da personagem de Jeanne Moreau - não resistiu ao vício e abandonou seu companheiro daquele filme, tendo ido parar em Las Vegas.

Não é surpreendente, portanto, que desta vez Demy nem se dê ao trabalho de criar um happy end fake para destruir depois. O encontro de uma noite dos protagonistas acaba sem direito a evoluir para um relacionamento. Um recado passado ao telefone por uma amiga corta o amor pela raiz, sem direito a despedida, e fade to black.