segunda-feira, abril 07, 2014

Loznitsa/Coutinho

Por uma dessas coincidências, vi em semanas seguidas Um Dia na Vida de Eduardo Coutinho, e Bloqueio, do belarusso Sergei Loznitsa, dois exercícios estranhamente complementares de documentário-curadoria, tanto que não consigo dissociar um do outro. O filme de Coutinho é construído, sem nenhuma interferência senão a edição, a partir de recortes de televisão. Justapostos estes recortes, temos uma das coisas mais eloquentes sobre o Brasil que já vi numa tela. Já que "somos o que comemos", a gente é em grande parte fruto daquela televisão de quinta que nos servem a colheradas generosas. E não se trata aqui de pensar em termos de uma teoria da comunicação que anule a recepção - aquela televisão existe porque também é fruto de nós, o Brasil, num processo lógico de autoalimentação.

Em Bloqueio, Loznitsa reúne imagens fortes e muitas vezes inéditas do cotidiano do cerco a Leningrado. Tais imagens não tinham som: tudo o que ouvimos na tela foi criado após engenhoso processo de sonoplastia. O troço é forte, mas as imagens reais, em austero preto e branco, com corpos surgindo aqui e ali cada vez mais durante a duração do filme, me parecem estranhamente ficcionalizadas, como se estivesse vendo uma história de ficção baseada em fatos reais, sem personagens, ou a história de uma personagem só, a cidade.

Mais ainda: embora haja uma lógica narrativa na edição, quase sempre construindo esquetes e acumulando horror até uma série de enforcamentos, a impressão que dá é que temos uma impecável coleção de imagens de cobertura para uma ficção que está acontecendo ali, em algum lugar, nos rostos que o filme nunca mostra de perto. Pode ser um dualismo grosseiro, mas há tanta verdade nos rostos contadores de mentira de Coutinho!

Talvez o que prejudique o filme de Loznitsa, a despeito da imensa admiração do seu triunfo técnico, seja a carga histórica que o cinema russo/soviético/europeu-do-leste tem da Segunda Guerra, e de guerras em geral. Estranhamente, suas imagens sonorizadas empalidecem imediatamente diante da memória não apenas de clássicos como A Infância de Ivan, Quando Voam as Cegonhas, Vá e Veja e A Ascensão (os quatro melhores filmes de guerra já feitos), mas dos próprios filmes de ficção que o mesmo Loznitsa fez a seguir.

Eu não gostei muito de Minha Felicidade, uma versão eurasiana do miserabilismo pornográfico de Alejandro González Inãrritu, mas Na Neblina me pareceu um filme muito bem medido sobre morte, ética, violência, essas coisas graves com que as pessoas se defrontam quando estão perto de um front. Daí a insatisfação e a necessidade de Bloqueio: o diretor fez inúmeros outros trabalhos de documentário antes e depois, mas vendo suas imagens perfeitamente sonorizadas mas incompletas no todo, percebo que a ficção era mesmo fundamental a esse documentarista. Bloqueio parece precipitar esse passo.