quarta-feira, outubro 31, 2012

Crise nas estrelas

Detesto ter de bancar o cabeção ou o saudosista, mas não há absolutamente nada de positivo na ideia de um sétimo longa-metragem da saga Star Wars. Não vou nem entrar no mérito de não achar nada de relevante nessa série além da sua capacidade indelével de vender edições redux em dvd e licenciar brinquedos para jovens adultos, mas sim pensar na contribuição de um mastodonte desses pra indústria.

Basta olhar pro que se tem produzido dentro do cinema americano pras multidões pra perceber que não há mais nada de novo, nunca, e que um sétimo filme de Star Wars, que será claramente um sucesso apenas por existir, apenas contribui para a perpetuação desse hábito de se reciclar até o ponto da náusea tudo que faz sucesso.

Não se trata de reclamar da existência de blockbusters, e sim do fato de que estamos presos nos mesmos filmes, sempre. Pense só nesse ano de 2012: reboot de Homem-Aranha, último filme da trilogia do reboot de Batman, franquia de Os Vingadores feita a partir da união de outras franquias diferentes, vindas de diversas adaptações anteriores no cinema e na tv.

Fora dos quadrinhos, um enésimo e ultra-aborrecido James Bond. Houve ainda uma tentativa de Ridley Scott de fazer trilogia-prequel de Alien com Prometeus, mas o segundo filme só vem depois dele fazer a sequência de Blade Runner.

O panorama é ainda mais assustador com a promessa de três filmes de três horas cheios de elfos, hobbits e anões com a volta de Peter Jackson à Terra Média. Eu, pessoalmente, já estou com dor de cabeça só de pensar. 

Desde os anos 2000, os blockbusters originais que tivemos vieram de livros: Harry Potter e Crepúsculo. Como eles precisam justificar o investimento e ganhar muita grana, eles vem em pacotes de vários filmes, e ainda dividindo os últimos livros em duas partes. Não dá pra largar o osso. Mesmo a saga Bourne, claramente esgotada e fechadinha depois de três filmes formidáveis, ganhou mais um exemplar esse ano com outro personagem, apenas para aproveitar o universo.

A ideia é essa: ninguém acredita ser capaz de criar do zero, de raiz. Há James Cameron, e seu Avatar, no entanto. Mesmo com ideias velhas, temos um filmaço-aço-aço dentro do seu próprio universo. Cameron, no entanto, em vez de partir pra outra, vai filmar Avatar 2.

Dia desses Camille Paglia, claramente senil, escreveu que George Lucas era o maior artista do nosso tempo. Eu acho que ele, nessa obsessão de explorar o máximo seu parque de diversões intergalático, é o grande artífice dessa ideia imbecilizante de que não podemos ver nada de novo.

Não é só uma questão de ter o novo pelo novo (a Pixar faz duas sequências de Toy Story e os filmes só ficam melhores, por exemplo). Mas sim de que a maioria absoluta desses filmes simplesmente não prestam. Porque são preguiçosos, condescendentes com o público e nem um pouco desafiadores, dentro dos limites do gênero. São filmes feitos pra uma plateia sedada. Acho que precisamos mesmo é de um Red Bull.

segunda-feira, outubro 15, 2012

novela e História

a novela é bacana, e tal, mas contenham-se: a História é muito maior, e tudo isso que é vendido como definitivo em avenida brasil é rotina de melodrama. tufão é o corno da vez, mas há bem pouco tempo, tínhamos o hipermegaultrachifrudo totó. carminha é uma malvada de entrar pra História, mas a última década deve 200 vilãs de entrar pra História (flora, laura, bia falcão) e apenas uma nazaré, a verdadeira abelha-rainha. na dúvida, calma. 

o que essa novela tem de Histórico, muito provavelmente é levar pela primeira vez essa cara (o look mesmo, a imagem) de série de tv americana pro horário nobre, coisa que a globo já vinha testando no seu horário das seis há algum tempo. essa é sim a novela da virada, de arriscar uma cara diferente pro maior produto da globo e não receber rejeição. no entanto, dava pra ir bem mais longe: grande parte desse potencial de impressionar com a direção e a câmera ficou enterrado naquele excepcional primeiro capítulo. 

quinta-feira, outubro 04, 2012

A Vida de Pi





Tem mais ou menos um ano que eu li A Vida de Pi e são raros os dias em que o livro não volte pra me atormentar um pouco, e parece que agora mais ainda, com a adaptação de Ang Lee chegando aos cinemas nos próximos meses e muitas pessoas voltando ao livro, ao que ele é e ao que tenta dizer.


"Tentar dizer" é uma coisa importante aqui, já que o livro é construído como parábola: uma fábula para chegar a uma moral. Temos uma história de aventura narrada com tintas fantásticas e um epílogo que reajusta tudo escrito anteriormente, como no Reparação, de Ian McEwan.

Pi Patel, o protagonista, é um adolescente criado no zoológico do pai, fascinado pela natureza, mas completamente fisgável por religiões. Ele se interessa e envereda ao mesmo tempo pelo hinduísmo, pelo cristianismo e pelo islamismo, para estranhamento da família ("meu pai era secular como um sorvete").

Uma virada do livro põe Pi e um tigre sozinhos num barco salva-vidas, à deriva, após o naufrágio do navio que levava a família Patel e os animais do zoológico rumo ao Canadá. São 200 e poucos dias no mar, não desprovidos de eventos espetaculares primorosamente narrados. Como alguém já escreveu, é como se Edgar Allan Poe houvesse escrito o livro de Jó.

Depois dessa aventura chega o polêmico epílogo, enfim, uma marreta de realidade sobre op relato fantástico visto anteriormente. Há quem descreva esse final como artificial, tirado da cartola, decepcionante, mas é ele quem projeta essa "moral" a algo bem mais profundo e fascinante do que o antevisto no preocupante e arriscadíssimo primeiro capítulo, que promete: "Este é um livro que te fará acreditar em Deus". 

No entanto, quando o livro se reconstrói, estamos diante de uma falsa promessa. Não há qualquer certeza da existência de um Deus além da própria escolha de se acreditar Nele. O ponto aqui, dentro de um zeitgeist completamente materialista, é que o livro parece simpático a essa escolha teísta e manifesta um entendimento de que a busca de qualquer transcendência é pessoal: cada um acredita no que lhe faz bem, fortalece, e dá força para sobreviver. É assim que aquela jornada num barco transforma-se numa vida inteira, em qualquer vida.

Mais além, ao imbuir a crença de uma responsabilidade (acredita-se porque quer) e ao abraçar todas as possibilidades de "espiritualização", Martel purifica a religião dos dogmas que as fazem atuar umas contras as outras e contra as próprias pessoas que nelas procuram refúgio. Com responsabilidade, castigos e salvação não têm sentido.

O que passa a importar não é restrição específica, mas a interseção de ideias - o amor, a celebração da existência e a gratidão por estar vivo -, algo que pode afetar mesmo ateus e agnósticos afeitos a essa sensibilidade universalista. A responsabilidade, no entanto, impede a relativização. Cada um sabe o que faz e até onde vai e até onde segue um caminho que contradiga esses princípios gerais.

A relação religiosa é corrigida: deixa de ser uma adesão por osmose e passar a ser uma busca ativa, voluntária, algo primal, nos modelos dos primeiros homens que buscavam respostas não para obedecer a regras antepassadas, mas pela busca em si.

No fundo, o que Martel (entre garçom e segurança, uma de suas ocupações foi ter estudado filosofia em Ontario - ele é canadense) faz com a alegoria da vida de Pi é apresentar uma alternativa, uma possibilidade de conciliação e de reposicionamento da crença para o século 21.

O truque de gênio, no entanto, é não ceder à auto-ajuda nem oferecer conforto fácil a partir dessa possibilidade: a construção aparente da vida com uma presença divina, no livro, não deu um passo sequer além da ficção. Deus continua a ser impasse: quão real é uma felicidade construída que se sente como real?

Depende da força dessa construção. Daí a força do livro. Mais do que uma meditação teológica, ele é uma afirmação da poder sem limites do storytelling. De volta ao citado Reparação, de McEwan, a ficção às vezes é o único instrumento de redenção que se tem à mão.