terça-feira, janeiro 02, 2024

TOP 10 2023

 Como sempre, considerando o calendário de Salvador (e as inevitáveis ausências de filmes importantes que perdi), lá vão os meus filmes do ano. 


10 - Holy Spider, Irã, de Ali Abbasi - Filme preciso sobre misoginia, uma história de serial killer que matava prostitutas no Irã, mas que cresce ao se manter a reencenação da violência em modo não-espetacular e ao realçar a segunda morte das vítimas, brutalizadas pelo Estado e pela sociedade machista iraniana. Sessão dupla: Kinatay, de Brillante Mendoza. 

9 - Asteroid City, EUA, de Wes Anderson - Incrível como Anderson é sempre mais bem sucedido destacando seu cinema totalmente de qualquer referência ao mundo real, em universos controlados. É assim nas animações, ou em O Grande Hotel Budapeste. Todas as gags funcionam, e, para minha surpresa, pela minha vez experimentei uma dor real num filme de Anderson, cortesia de uma fenomenal Scarlett Johansson. Sessão Dupla: Duas Garotas Românticas, de Jacques Demy. 

8 - Retratos Fantasmas, Brasil, de Kléber Mendonça Filho - KMF dribla o óbvio ao filmar a sua paixão pelos templos - salas de cinema - do Recife e pela cidade em si esquadrinhando cada pedaço filmado da capital pernambucana, seja na própria obra, na de outros cineastas ou em arquivo. É menos um filme amoroso que obsessivo, uma verdadeira história de fantasma. Sessão Dupla: Adeus, Dragon Inn, de Tsai Ming-Liang. 

7 - Os Banshees de Inisherin, Irlanda, de Martin McDonagh - Esse diretor nunca foi a minha onda, muito pelo contrário, mas essa peça sobre isolamento, melancolia e masculinidade me parece ser uma das melhores coisas a pôr em filme a  ideia de depressão ultimamente, especialmente no seu ato reflexo de auto-flagelamento, e mais especialmente ainda se você o filme do outro lado da margem, depois dessa terrível travessia. A gente sobrevive aos pedaços. Sessão Dupla: Um Momento, Uma Vida, de Sydney Pollack. 

6 - Regra 34, Brasil, de Júlia Murat - Um anti-panfleto sobre ennui, sexo e política, nessa ordem. Realmente revigorante ver um filme subverter essa lógica atual do cinema militante power point que vivemos, dando ao espectador personagens tridimensionais em situações emocionalmente complicadas, sem que qualquer reflexão social achate a sua humanidade. Cinema brasileiro, tome nota. Sessão Dupla: O Beijo da Mulher-Aranha, de Hector Babenco. 

5 - Assassinos da Lua das Flores, EUA, de Martin Scorsese - Épico íntimo sobre um genocídio a conta-gotas, com Scorsese usando uma história em particular - a dos índios do Osage County - para refletir sobre toda a trajetória dos EUA. É um filme histórico que funciona bem melhor que seu Gangues de Nova York justamente porque, quando trazido ao nivel dos personagens, o filme continua funcionando, num dueto entre um perfeitamente grotesco Leonardo DiCaprio e a hierática Lily Gladstone, que se move com o peso de todo o seu povo sobre as costas. Sessão Dupla: Mães Paralelas, de Pedro Almodóvar. 

4 - EO, Polônia, de Jerzy Skolimowski - Corajosa tentativa de refazer o Au Hasard Balthazar de Bresson na Europa em guerra do século 21. À medida que o burro protagonista cruza fronteira após fronteira sofrendo brutalidade depois de brutalidade, cai a ficha de que esse é o filme mais pungente sobre essa era em que milhares estão mortos no fundo do Mediterrâneo ou vivendo vidas miseráveis no continente, como sub-humanos. Sessão Dupla: Em Trânsito, de Christian Petzold. 

3 - Sem Ursos, Irã, de Jafar Panahi. Continua impossível para Panahi não apenas não fazer cinema, mas os obstáculos que lhe são impostos pelo regime iraniano fazem com que ele seja obrigado a pensar sobre o ato de fazer cinema, a responsabilidade de filmar e os limites da arte num país sem liberdade - ou em qualquer país. Incrivelmente ele continua reinventando essas reflexões sem se repetir. Sessão Dupla: O Paraíso Deve Ser Aqui, de Elia Suleiman. 

2 - A Esposa de Tchaikovsky, Rússia, de Kirill Serebrennikov. Hoje no exílio após um período de perseguição política e prisão domiciliar, Serbrennikov mostra - hasteia - o dedo do meio contra o regime de Putin com um filme apaixonadamente queer. Curiosamente, a esposa de Tchaikovsky, cuja vontade de reverter a sexualidade do marido confunde-se com a erotomania à Adele H., é quase uma alegoria da decadência dessa Rússia que tenta esconder o que impossível, ou talvez uma mostra de que há paixões que nunca se apagam, não importa o tamanho do martírio. Emocionante e suntuoso. Sessão Dupla: Sedução da Carne, de Luchino Visconti. 

1 - Afire, Alemanha, de Christian Petzold. Mais um filme sobre o ocaso europeu, não apenas nesse top 10, mas na carreira de Petzold, que agora encena seu apocalipse continental como se num filme de férias de Rohmer. No fim das contas, e do filme, talvez seja essa a única possibilidade de redenção do europeu, a arte. É tudo o que lhe resta (e à Europa). Sessão Dupla: Estranho Acidente, de Joseph Losey. 

sexta-feira, dezembro 30, 2022

TOP 10 - 2022

Vamos lá. Com o "fim" da pandemia o circuito voltou à normalidade e muita coisa boa finalmente chegou aos cinemas. Então o TOP 10 do ano volta, seguindo o calendário comercial brasileiro/soteropolitano + streaming. Todos os filmes dessa lista passaram no cinema em Salvador. Para normalizar o top 10, não incluo aqui coisas que só entraram esse ano mas que listei no ano passado.

10 - Encontros, de Hong Sang-Soo, Coreia do Sul. Uma paixão de verão e várias possibilidades de realização ou não dessa paixão. O coreano dessa vez apresenta um esqueleto de dos seus filmes com apenas uma hora de duração, e deixa a impressão de que há várias cenas e sequências faltando, mas no fundo ele só está flexionando seus músculos ficcionais com elipses incríveis e deliberadas. Sim, é um "exercício de estilo", um mérito formal, mas continua impressionando. Pontos bônus pela estreia no mesmo ano de A Mulher Que Fugiu, o seu filme mais WoodyAlleniano.
Sessão dupla: Brigitte e Brigitte, de Luc Moullet.

9 - Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental, de Radu Jude, Romênia. Esse aqui é um ataque terrorista contra a Romênia, mas poderia ser contra o Brasil. É um filme frontal de um modo até infantil na desconstrução das instituições e costumes de um país a ponto de dedicar 1/3 da sua projeção a um dicionário de verbetes, mas a força da agressividade suplanta algumas simplificações. Como se não fosse suficiente, é o filme definitivo sobre a pandemia: enquanto gente morre como moscas, pessoas fazem uma inquisição a uma professora que teve um filme de sexo vazado.
Sessão dupla: O Fim do Homem Cordial, de Daniel Lisbôa

8 - A Mulher de um Espião, de Kiyoshi Kurosawa, Japão. Gélido thriller de espionagem na Segunda Guerra no Japão. O que chama a atenção aqui é que em geral esses filmes são um jogo de mentiras, mas aqui a surpresa vem do fato de que as personagens são sinceras nos seus sentimentos e motivações. A elegância suprema da forma-cinema.
Sessão Dupla: Desejo e Perigo, de Ang Lee.

7 - Elvis, de Baz Luhrmann, EUA/Austrália. Baz refaz o seu filme de sempre, usando Elvis como cavalo para suas meditações habituais sobre o pacto mefistotélico da celebridade (e do amor pela audiência), sempre selado com a frase mais cruel dos espetáculos: the show must go on. O controverso estilo do diretor encontra a figura perfeita para fugir da burocracia do mais chato dos gêneros, a biografia musical. Tudo em Elvis é maior que a vida e ainda assim não parece excessivo.
Sessão Dupla: Lola Montés, de Max Ophuls.

6 - Nope, de Jordan Peele, EUA. O amor pela parafernália do cinema num senhor filme sobre espetáculo, props, objetos de cena, com personagens que são dublês, contra-regra etc. É praticamente um faroeste sem armas, ou melhor, um faroeste cujas armas são máquinas de fotografar e filmar.
Sessão Dupla: Hatari!, de Howard Hawks.

5 - Il Buco, de Michelangelo Frammartino, Itália. Frequentemente descrito como uma "experiência espiritual", esse filme me parece o oposto. Ao recriar a expedição que chegou ao fundo do terceiro buraco mais profundo da superfície da Terra, Frammartino captura não um silêncio transcendente, mas materialista. O tempo que o diretor dedica a cada imagem é o necessário para que elas existem como são em filme, e não para extrair nenhum significado terceiro. Uma história paralela da morte de morador local não é uma metáfora religiosa, e sim uma confirmação naturalista: somos todos minerais.
Sessão Dupla: O Evangelho Segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini.

4 - Marte Um, de Gabriel Martins, Brasil. Os conflitos da família brasileira num cinema que encontra a sua escala emocional exata, desde a terrível vontade de escapar da realidade - o espaço sideral, o futebol - até os laços humanos que tornam a vida não apenas suportável, mas até mesmo bonita, apesar dos pesares. Trabalho de precisão.
Sessão Dupla: Eles Não Usam Black-Tie, de Leon Hirzsman

3 - Decisão de Partir, de Park Chanwook, Coreia do Sul. Um filme todo reciclado a partir de partes recicladas de origem evidente, mais uma prova evidente da permanência do Vertigo de Hitchcock, com sua femme fatale trágica e assassinatos em lugares altos. Park, no entanto, parece estar aqui em modo romântico, porque a sua história de amor entre o detetive e a criminosa, na qual um sabe os defeitos do outro mas não consegue se afastar, é hitchcockiana mas filtrada por Truffaut. Melhor final do ano.
Sessão Dupla: A Sereia do Mississipi, de François Truffaut.

2 - Memória, de Apichatpong Weerasethakul, Colômbia/Tailândia. Esse é quase um espelho de Il Buco: em vez de olhar para o centro da terra de forma materialista, o diretor olha pro céu pra expandir a sua espiritualidade, não mais contida ao budismo da sua Tailândia natal, mas livre de limitações geográficas, encontrando os mistérios da vida na Amazônia colombiana e no céu. É como se seu registro encontrasse o panteísmo total, abraçando o universo.
Sessão Dupla: Não consigo pensar em nada parecido.

1 - Avatar: O Caminho da Água, de James Cameron, EUA. Um simplíssimo jogo de gato e rato com um vilão psicopata-imortal, mas gloriosamente filmado por um dos maiores diretores de ação de todos os tempos. São três horas e 10 minutos de uma inacreditável montanha russa. Não sei como, mas Cameron mantém seu dínamo em movimento tirando da cartola as coreografias mais rocambolescas para filmar lutas, perseguições, corridas e, melhor de tudo, o assombro pela natureza, mesmo que seja construída em computador. É bizarro, mas Cameron é capaz de fazer a audiência chorar com uma espécie de monstro em forma de baleia num mar de videogame. Enfim, é o cinema reduzido ao essencial, mas paradoxalmente na sua forma mais excessiva.
Sessão dupla: A General, de Buster Keaton.

sexta-feira, dezembro 31, 2021

TOP 5 - 2021

 TOP 5 - 2021

2021 foi um ano de retomar a cinefilia, mas ainda não tenho muito a noção do que seja um calendário de filmes elegíveis. Só comecei a ir ao cinema há alguns poucos meses, e vi coisas com distintas datas de lançamento no mundo. Decidi, portanto, fazer um top 5 (roubando), cujo critério de elegibilidade se resume em dois itens:
a) lançamento mundial em 2020 ou 2021
b) vi pela primeira vez em 2021, não importa onde.
5) Nomadland, de Chloe Zhao, e Cry Macho, de Clint Eastwood
Dois faroestes (Zhao talvez não saiba disso) sobre a falência da América como lugar, como terra-natal, com cidades morrendo e personagens à deriva. Eastwood prefere o estrangeiro, e como tem o faroeste como gênero (e a própria imagem como mito) a explorar, prefere dar um final feliz a este e a todos os seus cowboys, mas longe de casa, do outro lado da fronteira. A protagonista de Zhao ecoa os anos longe de casa de Ethan Edwards em Rastros de Ódio, de John Ford. Fern e Ethan voltam à casa vazia onde seus amores morreram, e decidem voltar para a estrada, sem rumo. Filmes exemplares em iconografia.
Sessão tripla: esta é a mesma América da família errante de O Peso de um Passado, de Sidney Lumet.
4) Mães Paralelas, de Pedro Almodóvar, e O Que Ficou Para Trás, de Remi Weeks.
Almodóvar parte do melodrama mais raiz, o da mãe que não quer perder o seu filho e é capaz de tudo para isso. Weekes trabalha com o horror de uma família que muda para uma casa nova assombrada por espíritos. Dois exercícios de gênero bem básicos e bem feitos, elevados porque espelham os fantasmas da História, desaparecidos em valas comuns ou no fundo do oceano.
Sessão tripla: A Europa em seus loop de guerras e refugiados de Em Trânsito, de Christian Petzold.
3) Titane, de Julia Ducournau, e Ataque dos Cães, de Jane Campion
Dois contos sobre duos de personagens que tateiam para acessarem um ao outro. A ambiguidade sexual é uma vulnerabilidade transformada em arma em jogos que podem ser emocionais (Ducournau) ou eróticos (Campion). No comando dos dois filmes, mulheres que se negam a clichês de sutileza feminina na direção, com mão firme e pesada para servir com convicção a seus projetos estéticos.
Sessão tripla: Gente abrasiva que sequer consegue se tocar, apesar da atração, em O Homem Ferido, de Patrice Chéreau.
2) Drive My Car, de Ryusuke Hamaguchi
O bem japonês processo de elaboração do luto, mas aqui instrumentalizando a arte, fundamental porque nos dá narrativas de espelho à vida, guia a cura das feridas, sem no entanto representar uma fuga. Curiosamente, o carro do filme onde os personagens conversam e acertam as contas é uma metáfora de um consultório de psicanálise, mas também de um palco.
Sessão dupla: O caminho é através da dor, não ao redor, como em Poesia, de Lee Chang-Dong
1) Benedetta, de Paul Verhoeven
Nada como a catarse de ir ao cinema e em vez de ver um filme, encarar uma montanha russa de duas horas. O jogo de poder, sexo e fé entre as mulheres de um convento é um excelente material para as provocações de Verhoeven, mas o impacto do filme é sobretudo formal, da sustentação de uma narrativa no último volume, em que cada cena reconfigura o filme do modo mais inesperado, sem qualquer medo do ridículo, com convicção absoluta na carnalidade que movimenta as peças desse jogo de xadrez. Verhoeven é isso, o triunfo do cinema como experiência à flor da pele.
Sessão dupla: Explosões na cabeça e no coração entre pessoas confinadas, como em Paixões Que Alucinam, de Samuel Fuller.
(Eu vi ano passado e só estreou agora, inesperadamente. Não consegui colocar no top 10 deste ano, não consigo pensar como uma experiência 2021, mas que GRANDE filme é Undine, de Christian Petzold. Está em cartaz em Salvador).

domingo, março 17, 2019

A Casa Que Jack Construiu:


1) Espero sinceramente que Lars Von Trier esteja em suicide watch. É um filme final com todas as letras, como o 24 Frames de Kiarostami, ou o A Prairie Home Companion, de Altman, com a diferença de que LVT parece estar se esvaindo sem nenhuma paz. É um filme agônico pra ele.
2) E é um filme agônico para nós, também. É provavelmente o pior filme dele, mesmo contando o computadorizado The Boss of it All - parece que agora ele está fazendo um filme ruim, mas com todo o empenho possível, algo que nem sempre é o caso. Ele disse que escreveu Anticristo com apenas 10% da inteligência que tem, se não me engano.
3) A Casa Que Jack Construiu é um filme de síntese, mas são duas horas e meia de reafirmação da crueldade humana e de um niilismo juvenil, tudo isso num formato de diálogo grego entre o protagonista e o diabo, algo que coloca a obra nessa leva de nouvelle vague do power point, em que diretores montam uma tese e usam a dramaturgia quase como uma concessão para ilustrar essa tese, apenas porque não queriam mostrar ao público apenas uma Ted Talk (faltam a todos a coragem de Malle e seu Meu Jantar Com André). Comparem o LvT com Vice, de Adam McKay - são basicamente o mesmo filme. Só falta o laser sobre os slides travestidos de ficção.
4) É curioso como LvT pode estar na merda, mas o ego continua gigantesco. A "autocrítica" aqui não de fato é uma autocrítica; o tom autodepreciativo é mais uma qualidade, "vejam como não me levo a sério". No final das contas, até isso se esvai quando ele escancara que está fazendo uma defesa da própria carreira, com um medley de cenas de seus filmes anteriores, sempre das cenas mais cruéis - quanta cabotinagem! Nem a queda ao inferno é um julgamento de verdade, é um acidente.
5) Acho que não vale a pena cobrar o diretor pela falta de sutileza ao comparar seus filmes com assassinatos. LvT nunca foi sutil. Ele é o tipo de gente que faz um filme sobre depressão e transforma a doença num planeta gigante que vai provocar o apocalipse, planeta esse chamado de MELANCOLIA, um filme bem ruim, aliás. Ele botou sinos no céu para sinalizar um milagre, e o filme - Ondas do Destino - era brilhante.
6) A questão não é a qualidade da metáfora - que, aliás, já rendeu um dos melhores filmes do mundo, A Tortura do Medo, de Michael Powell -, mas a falha completa em transformar essas ideias em cinema. Depois de 15 minutos de masturbação intelectual sobre temas batidos e rebatidos nos filmes dele mesmo, a sensação é de um gigantesco "quem se importa?", e ainda faltam duas horas e meia.
7) No mais, deixo vocês com Douglas Sirk.


quarta-feira, dezembro 26, 2018

Melhores de 2018


Ia ver mais alguns filmes antes de fechar a lista de fim de ano, mas acho que não teria o distanciamento para avaliar bem esses retardatários em relação aos que já se consolidaram na minha cabeça. Então fica aqui o registo dos meus filmes preferidos do ano, tendo em conta o que passou nos cinemas em Salvador (é o calendário que eu sigo). Não conto streaming, e claro, perdi coisas importantes devido ao rarefeito mercado caboverdiano.

Meus dez filmes:

10) Projeto Flórida, de Sean Baker - O grande humanismo americano travestido de filme infantil. Excluídos filmados com paixão, mas sem romantismo. Sessão dupla: A Noite dos Desesṕerados, de Sydney Pollack.

9) Piripkura, de Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge - O ponto de partida é o "documentário indígena", mas a chegada é num filme profundo e filosófico. Aqueles dois índios Piripkura que vivem sem dominar o fogo e mantendo-no aceso não deixam de representar toda a humanidade vivendo num planeta extremamente frágil. Sessão dupla: First Reformed, de Paul Schrader.

8) Burning, de Lee Chang-Dong - O filme mais misterioso e hipnótico do ano, forte como um sonho ruim. É de se admirar a virada de chave do diretor, um mestre do melodrama que deixa de usar a violência como catalisador de lágrimas, substituindo-as por calafrios. Sessão Dupla: Cure, de Kiyoshi Kurosawa.

7) Me Chame Pelo Seu Nome, Luca Guadagnino - Mais um tijolinho na parede de grandes histórias de amor queer que o cinema americano trouxe nessa década, como Carol e Moonlight. Esse aqui lembra mais o filme de Van Sant, em que a riqueza e o isolamento de classes propiciam a alienação necessária para uma paixão dedicada. O mundo fica do lado de fora mesmo. Ultra sensorial. Sessão Dupla: Felizes Juntos, de Wong Kar-Wai.

6) As Boas Maneiras, de Marco Dutra e Juliana Rojas - Esse aqui é a posta do ano. Dutra e Rojas ficaram conhecidos pelo cinema de planos medidos a régua e precisão absoluta de roteiros. Aqui, eles pegam esse controle todo e mandam à merda no meio do filme, se arriscando num terror barroco e sem limites. O final é a cara do Brasil 2018. Lindo. Sessão dupla: Psicose, de Alfred Hitchcock.

5) O Amante Duplo, de François Ozon - Nada mais divertido que thriller sensual, aqui tirado diretamente do manual Instinto Selvagem. Se o filme já é insinuante na sua trama sexual sem limites, quando vampiriza a psicanálise para justificar viradas delirantes de roteiro, fica melhor ainda. Sessão Dupla: Vestida Para Matar, de Brian de Palma.

4) Visages Villages, Agnes Varda e JR - Nenhum filme amou tanto gente quanto esse, uma exaltação do sentimento de pertencimento das pessoas a seus lugares, e como esse pertencimento define a identidade de uma comunidade. Varda lucidíssima aos quase 90, com um coração enorme. Sessão Dupla: Aquarius, de Kleber Mendonça Filho.

3) Ilha dos Cachorros, de Wes Anderson - Para um cineasta tão obcecado por controle como Anderson, nada melhor que a animação para que exercite todos os seus TOCs de simetria. O filme é um espetáculo visual apuradíssimo, ainda mais radical do que o padrão Anderson, extraindo um crescendo de gags incríveis a partir de nada mais que enquadramentos e composição. Filme-lego. Sessão Dupla: Playtime, de Jacques Tati.

2) Deixe a Luz do Sol Entrar, de Claire Denis - Parece uma comédia romântica, mas é um filme muito triste sobre errar e errar - nos dois sentidos - , de relacionamento e relacionamento, em busca de uma completude. É baseado em Barthes, mas lembra Woody Allen. O final, um encontro inédito entre Juliette Binoche e Gerard Depardieu, é a a cena mais bem atuada da década. Sessão Dupla: Barata Ribeiro, 716, de Domingos Oliveira.

1) Arábia, de Affonso Uchôa e João Dumans - É difícil dizer isso com precisão num país que produz mais de 200 longas por ano, como o Brasil, mas esse aqui é o filme político mais bem logrado no país nesse século. Um filme com a câmera na altura do olhar do povo, e não de cima pra baixo, maior que ele, ou de baixo pra cima, condescendente. É preciso. Aliás, é gritante a qualidade do texto disso aqui - sincero, humano, mais jamais "superescrito". E a direção de tudo, que não quer ser realista, ou transparente - é um filme cujos recursos narrativos são deliberados, evidentes, mais ou menos como em As Boas Maneiras. Sessão Dupla: As Maravilhas, de Alice Rohrwacher.

segunda-feira, dezembro 18, 2017

Melhores de 2017

Scorsese disse certa vez que nunca termina o filme. Ele simplesmente o abandona. Com listas é a mesma coisa - cansei de ver filmes deste ano e estou oficialmente abandonando 2017. Minha lista de melhores do ano segue abaixo, e pronto. Normalmente eu escrevo um ou dois parágrafos sobre cada filme, mas olha, esse ano eu comecei a escrever e só saiu Moonlight. Os outros que me perdoem.

(Eu tava guardando notas sobre o filme para um ensaio posterior, mas também estou abandonando essa pretensão agora. Vamos ver se o filme sai do sistema)

*

1 - Moonlight, de Barry Jenkins

Passei o ano inteiro querendo escrever um texto que dê conta desse filme sem glorificá-lo pela sua importância extra-cinematográfica, e muito menos puni-lo por isso, mas chega o momento em que simplesmente nos conformamos com a existência dessas reações extremas e esperamos que o tempo ilumine a sua pujança.

Ainda assim, cabe pontuar que pra mim o mérito de Moonlight foi cinematográfico desde o dia 1, já que a administração da tensão insuportável entre os corpos no quadro e da tensão interna que cada um desses corpos carrega é, no meu, entender, a definição exemplar de uma mise-en-scene vigorosa.

Essa tensão é isolada como um gene no DNA, e trazida para o primeiro plano da experiência do filme em todas as suas cenas - é como se 122 anos depois, com milhares de tentativas, alguém tenha conseguido expressar cinematograficamente a sensorialidade da experiência queer (ou de certa experiência queer), resumida nesse "não caber no corpo" que o filme explora tão bem.

(A tensão a que me refiro é perfeitamente ilustrada em ONe Step Ahead, na trilha, cantada por Aretha Franklin: Just one step ahead is a step too far away from you.)

Vejam, citar esse ponto de vista específico não é desautorizar outros pontos de vista que não veem Moonlight em primeira pessoa, e sim tentar iluminar as decisões cinematográficas de um filme muitas vezes visto (apressadamente) como publicitário, sobretudo devido à homenagem aberta do filme ao cinema de Wong Kar-Wai e Hou Hsiao-Hsien.

Cada ruído de imagem, cada anteparo que nos separa dos personagens, cada distorção de som imagem - tudo isso é muito mais que um ímpeto de edulcoração, e sim um reflexo natural de um plano coerente de ilustração de uma experiência, a de não estar em paz de dentro para fora e de fora para dentro. O cinema é o caleidoscópio eu-mundo dessa relação.

Quando o filme avança violentamente em direção a seu desfecho, essa tensão é reduzida a seu essencial, e, portanto maximizada. Há um trecho lindo no Antes de Pôr-do-Sol em que Julie Delpy e Ethan Hawke estão numa van pelas ruas de Paris, e a Delpy vai encostar a mão no cabelo do Hawke, mas recua.

O último ato de Moonlight é esse minuto do filme de Linklater amplificado à última potência, com outros fatores bem específicos impedindo o toque, com as palavras que não saem sem dor da boca de Trevante Rhodes, e com esses corpos, fartos de não caberem em si, transbordando em suores numa mesa de restaurante ou, de modo marcante, numa polução noturna, talvez o momento mais romântico visto numa tela de cinema desde As Pontes de Madison.

Ah, os outros filmes?

2 - Z - A Cidade Perdida, de James Gray
3 - Silêncio, de Martin Scorsese
4 - Toni Erdmann, de Maren Ade
5 - Personal Shopper, de Olivier Assayas
6 - Corra, de Jordan Peele
7 - Até o Último Homem, de Mel Gibson
8 - Joaquim, de Marcelo Gomes
9 - Fragmentado, de M. Night Shyamalan
10 - Martírio, de Vincent Carelli

Calendário de estreias comerciais em Salvador, claro.

segunda-feira, novembro 20, 2017

A Velocidade Terrível da Queda



Em resposta a um repórter da Folha de S. Paulo que lhe perguntava se o verdadeiro massacre sofrido pelo protagonista do seu novo livro era uma reação aos homens estúpidos do mundo artístico da zona sul carioca, Fernanda Torres disfarçou, e foi existencial: "Eu castigaria qualquer um. As coisas me vêm com ironia; a vida é trágica". A Glória e Seu Cortejo de Horrores, o seu segundo romance, é de uma virulência sem fim, mas a sua navalha, ao ferir os seus personagens, não os despe de humanidade. A vida é trágica - este violência não é nada pessoal.

Admirador ferrenho de Fim, a estreia quase acidental de Fernanda Torres na literatura, eu cheguei a essa obra nova com o medo terrível de estar diante de uma fraude, da evidência de que a qualidade estarrecedora do livro anterior fosse sorte de principiante. Não é. Acompanhando a imprensa, até agora não achei nenhuma crítica de verdade ao livro, como se até o resenhismo mais maldoso tivesse medo de se aproximar. Como lidar com o fato de que uma atriz talentosa, filha de dois "monstros sagrados" da tv, teatro e cinema brasileiro, ainda por cima escreva de modo espetacular e publique dois dos melhores romances deste século no país? 

Não é uma hipérbole, é disso mesmo que estamos falando, e já que estamos no terreno do reconhecimento do talento e do privilégio que esse talento - mais um - representa, é bom dizer que o misto de desencanto carioca e ironia perturbadora faz com que Fernanda Torres mereça ser mencionada como pertencente ao mesmo veio literário que Machado de Assis. 

Não se trata aqui de comparar os dois - não seria justo - mas de perceber como esse romance pontiagudo opera de modo muito parecido ao do mestre da Rua de Matacavalos. No fundo, a tragédia da vida é mais evidente quando uma existência é contada em fast-forward, como Machado e Fernanda fazem, em cenários parecidos, mas separados por pouco mais de um século. O humor que transborda do texto parece bater em falso, propositadamente - em vez da gag, o que se evidencia é um profundo entendimento do patético. 

É como se os eventos da vida, reduzidos ao essencial, revelem sempre a sua face mais deprimente, por melhores que sejam os momentos isolados, ou mais vívida a lembrança de alegrias marcantes. Um grande momento do livro é o transe do protagonista, um ator, na memória do seu maior sucesso no teatro, num papel em uma peça de Tchekhov. É embriagante, mas é um átimo, e as consequências mostram que até mesmo as alegrias acabam por reverter-se para o mal. Um casamento de 15 anos, espetacularmente narrado em algumas páginas, rompe-se num segundo, num momento preciso, sem que o texto faça qualquer esforço para torná-lo um grande momento. Até os lances decisivos da vida têm a marca da banalidade.  

Além dessa nuvem massiva de pessimismo que se abate sobre as nossas cabeças durante a leitura, chama muito a atenção o fato de Fernanda Torres ser tão desenvolta narrando em primeira pessoa as agruras de um personagem tão masculino. É incrível - parece que o fato de ser atriz faz com que ela se ponha precisamente no lugar de qualquer outra pessoa, e o gênero nem de longe é uma barreira. Apesar da familiaridade do cenário - Rio, artistas, teatro - o texto tem uma precisão muito específica do que é ser homem, algo que ela já tinha logrado com maestria em Fim.   

Essa precisão, por outro lado, não se manifesta em diálogos, como se esperaria de uma atriz que começou a escrever ficção como uma peça de teatro. A ação é interna, mas cheias de marcas de oralidade. O livro é um relato não dito, represado. Está todo na mente do seu protagonista, como se Fernanda, antes de escrever um romance, estivesse compondo uma personagem e levando essa composição às últimas consequências. Há atores que criam histórias para as personagens que interpretam - Fernanda desenvolve romances inteiros para personagens que nunca vai interpretar. 

A marca da tragédia sem sentido - sim, ela cita a passagem shakespereana do som e a da fúria no romance, por sinal, muito erudito em referências, mas jamais reverente - pode não desaparecer em nenhuma página, mas se há algo que redime a experiência dessa leitura de ser um mergulho unidimensional na depressão é o entendimento de que se a arte não muda o fato de que a existência é um horror, ao menos dá as pessoas algum alento para enfrentar a vida. O epílogo dessa história de derrocada - mais uma vez, espetacularmente bem escrito - mostra que esse alento não é pouca coisa. É tudo o que temos.