Há algo suspeito em um filme que tenta arrancar lágrimas do público com menos de cinco minutos de projeção. Antes dos créditos de “Depois do casamento” (Efter brylluppet, 2006, Dinamarca e Suécia), a diretora Susanne Bier já põe o personagem principal num dilema. Ativista na Índia, deve voltar para a Dinamarca para negociar patrocínio para um projeto social que comanda. Com câmera na mão, vem aquela imagem de garotos indianos adoráveis em ruas sujas, o protagonista já com saudades de seu exílio voluntário, fumando com olhar perdido. Sobe som, com world music.
A primeira impressão só é equivocada em relação aos fins. “Depois do casamento” não sofre da síndrome de espanto globalizado que aflige Alejandro Gonzalez Iñarritu, mas o tom da narrativa é igualmente pouco sutil. Assim que a ação é movida para a Dinamarca, o filme entra na trilha do mais banal dos melodramas familiares, com alguma gritaria e “segredos do passado”. Nem o visual com resquícios do Dogma 95 consegue disfarçar.
O centro da intriga é Jacob (Mads Mikklesen). Com andamento de novela das oito, ele rapidamente descobre que, por uma coincidência dos demônios, a mulher que amou no passado está casada com o empresário que vai financiar o tal projeto na Índia. No casamento da filha do casal, uma revelação no discurso: Jorgen, o grosseiro self-made man, não é o pai da noiva, mas há mais de 20 anos acolheu Helene, grávida desamparada de um homem supostamente morto. Basta uma troca de olhares, e pronto, Jacob descobre que tem uma filha.
No desenvolvimento do roteiro, Susanne Bier provavelmente tinha consciência do tom rocambolesco dessa trama, resolvida antes da primeira hora. A justificação do absurdo vem em forma de uma segunda reviravolta, com mais gritos, acertos de contas e lágrimas histéricas. Quanto mais a diretora-roteirista cava, mais se enterra. Isso chega ao ponto de que, para fragilizar um dos personagens e conseguir um pouco mais de tensão do público, Susanne aplica um golpe baixo e inesperado em uma das criações mais certinhas do roteiro — não cabe dizer aqui do se trata, mas envolve um chororô de madrugada num quarto de hotel.
Contra essa dramaturgia claudicante, “Depois do casamento” só tem a favor os atores, completamente aplicados em seqüestrar o filme da diretora e torná-lo um pouco mais digno. Os nomes são difíceis, mas os rostos ficam na cabeça: Sidse Babett Knudsen é Helene, dura, autoritária e determinada a não pôr a perder o amor conquistado; Stine Fischer Christensen é Anna, a filha delicada, incapaz de administrar as provações que a vida (e o roteiro) lhe infligem; Rolf Lassgard é Jorgen, o pai expansivo, controlador e bonachão.
Ainda assim, o ponto mais forte do elenco é mesmo o Mads Mikkelsen, o protagonista. Ao contrário dos colegas de filme, opta por um trabalho discreto e contemplativo, e consegue miraculosamente driblar a trilha sonora para momentos de comoção genuína. Ajuda também a sua cara estranha, meio cubista, angulosa. Mikkelsen já usou esse tipo para ganhar dinheiro no papel de vilão do último James Bond; nesse “Depois do casamento”, a face de quebra-cabeça garante um enigma constante no ar, e faz o personagem ficar mais interessante do que devia ser no roteiro.
De qualquer jeito, não tem elenco que segure um filme tão determinado a extrapolar. Enquanto os atores ou a imagem crua insinuam complexidade de sentimentos, o núcleo é inegavelmente oco. Em “Brothers”, estréia de Susanne Bier em longas, há o mesmo problema: a busca de honestidade nas relações humanas versus roteiro pobre e direção sem controle. Nessa segunda empreitada, não há muita evolução: Susanne continua vendendo emoções a preço de banana. “Depois do casamento” foi indicado ao Oscar de Filme estrangeiro e garantiu à diretora um ticket pra Hollywood, onde dirige Things we lost in fire, drama sobre uma viúva tentando fazer a vida ao lado de um amigo. Boa sorte.
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