sexta-feira, dezembro 28, 2012

A Vida de Pi, o filme

Nessa adaptação de A Vida de Pi em cartaz, Ang Lee me pareceu bem desconfortável ao lidar com o ponto de vista do livro a respeito de crenças, religiões e Deus. Todas as cenas em que o Pi mais velho aparece contando a sua história me pareceram duras, pesadas, rangendo - ou talvez seja a ideia dos indianos falando inglês com sotaque e soando tão mal, algo que na leitura não fazia diferença alguma.

Ainda que seja isso, Lee me pareceu pisar em ovos em toda a primeira parte da história, na qual acompanhamos em breves pinceladas a trajetória do garoto Pi até o dia em que se vê náufrago num bote salva-vidas com a companhia de Richard Parker, um tigre de bengala. 

Da cena do naufrágio em diante, no entanto, Ang Lee se solta e mostra porque é um dos maiores encenadores do cinema contemporâneo. Cada movimento é preciso, cada ângulo impressiona, e toda a virtuose de Yann Martel na criação de seu conto fantástico de sobrevivência chega intacta e potente na tela, em impressionante 3D. O filme é um triunfo visual absoluto.

Uma cena em especial, se destaca, a segunda tempestade que Pi enfrenta, já no bote, na qual Pi parece numa batalha de resistência contra Deus, perfeitamente encarnado em trovoadas, relâmpagos e muita chuva. Nesse momento de puro animismo (me lembrou muito a chuva de Japão, obra-prima de excesso de Carlos Reygadas, sem ter que apelar para A Paixão de São Mateus na trilha), Lee consegue finalmente conjurar uma magia que no livro existe fácil através de palavras assertivas e labirintos de discurso, mas que é difícil de transpor pra tela.

O livro era um conto fantástico dentro de uma estrutura quase de ensaio argumentativo - justamente o que lhe deu a fama de inadaptável. Quando lida apenas com o fantástico, Lee detona, mas só nesse momento da tempestade e no reflexo de todo o universo no fundo do mar ele consegue conciliar essas duas dimensões do livro, religar a história de sobrevivência à tese que a motiva.


Ao fim, no entanto, o final ambíguo insiste em não prestar-se à encenação, mesmo mal que acometia a adaptação de Reparação, de Ian McEwan. Quando o filme volta a seu ponto de partida para fechar suas ideias, aquela sensação de dureza na encenação também retorna, massacrando o filme, e sem render o gambito literário genial que fazia do livro uma fonte de ideias realmente profundas sobre a relação das pessoas com as narrativas que as fazem sobreviver, estejam essas narrativas na forma de religião, de arte, ou da religião como uma forma de arte.

O seu ponto de que há mistérios indecifráveis na vida e várias possibilidades de lidar com isso chamava o leitor à responsabilidade de criar a narrativa da sua própria vida, como uma escolha pessoal. Muito embora o livro advogasse claramente um ponto de vista a respeito (Pi prefere acreditar em Deus, sim), Lee patina tanto nessas cenas que acaba praticamente pregando uma coisa que não sei se ele acredita - o que acaba por vulgarizar uma ideia muito mais pungente que a mera evangelização.

Eu estava bem confiante na habilidade de Lee em se virar com esse pepino, já que boa parte da sua obra é baseada em uma dualidade entre instinto e razão. Basta pensar em Razão e Sensibilidade, Tigre e Dragão, Desejo e Perigo, Bruce e Hulk, Jack e Ennis... A história de um biólogo fascinado por religiões parecia-lhe uma oportunidade única de acrescentar mais um aspecto a essa preocupação autoral, mas ele foi traído pela estrutura. Enquanto todas as dualidades anteriores repousavam confortavelmente no terreno da trama, A Vida de Pi é alicerçado numa dicotomia em sua própria tessitura narrativa, e Lee não segurou a onda o tempo todo.

Dito isso, esse éo meu ponto de vista com base em um amor declarado pelo original de Yann Martel. Para quem vê o filme sem essa referência, muito provalmente o que está na tela é um belo filme espetacularmente bem narrado com uns problemas de indecisão no roteiro e de dureza no texto e no estabelecimento de uma moral para a sua história.

Moral da história: não deixa de ser, ainda, um belo filme.

PS: Já escrevi sobre o livro aqui

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