Luiz Carlos Merten tem falado muito sobre a necessidade do espectador (ou leitor, ouvinte, etc) ser co-autor do filme. Fazer pontes, criar referências que talvez só sejam válidas para ele próprio, mas que estimulam o raciocínio e apuram o olhar. Desde que vi O Novo Mundo, de Terrence Malick, não consigo deixar de associá-lo com Henry James, escritor norte-americano do século XIX. Ele passou seus últimos anos na Inglaterra, e, na fase final de livros gigantescos, criou prosa muito peculiar. Escrevia grande volume de texto para acontecimentos mínimos. Passava à margem de eventos, pulava os fatos mais importantes da trama, somente para insinuar o invisível. Nesta página, Paulo Francis, provavelmente inspirado por Thomas Hardy, fala da fúria escondida em monossílabos, subentendidos e entrelinhas.
Chego ao filme de Malick, a princípio, pela narrativa. Abstraindo as diferenças entre cinema e literatura, O Novo Mundo apresenta a mesma desarticulação linear, pela montagem. Não se trata de confundir a historinha de maneira formalista, mas de conseguir provocar o máximo de sentimento com o máximo de economia, sem escrever/filmar menos. Quase tudo da última fase de James tem mais de 500 páginas; O Novo Mundo tem 135 minutos, e, se não fosse o corte do estúdio, teria quase três horas.
No filme, o romance entre a nativa Pocahontas e o britânico Capitão Smith (cenário: início da colonização inglesa nos Estados Unidos) existe praticamente sem diálogo, no idílio e no abandono. Quando há o reencontro, a comunicação acontece sem a intervenção inútil da palavra. O ponto alto desta sensação jamesiana é o relacionamento de Pocahontas com John Rolfe, o marido que a acolhe depois da volta de Smith para a Europa. Eles convivem carinhosamente com o fantasma de outro amor fracassado, em silêncio, amparados pelo carinho que sentem um pelo outro.
Pensei que a comparação ficava nisso, mas o tipo de conflito mostrado aqui, de amor, inocência e dever social no século XVII, é muito parecido com o que se vê em livros como Retrato de Uma Senhora ou A Taça de Ouro, 200 anos depois. Nestes romances, americanos ingênuos são manipulados amorosamente por ingleses inteligentes ou compatriotas escolados. A relação, claro, passa longe do maniqueísmo, porque algozes são sempre suscetíveis a paixões mortais, e vítimas tomam o controle da situação, revelando inteligência insuspeita. Mesmo fazendo mal aos outros, ninguém é ruim – e todo mundo perde, discretamente. James, cosmopolita e quase apátrida, é cínico; Malick, “americanamente”, limpa essa perfídia relativa, mas os incidentes internacionais ainda estão lá. O final é perfeito: o amor enterrado para sempre a partir de um acordo calado.
Dias de Paraíso, de 78, também reforça minha viagem. Apesar do cenário Faulkner, a trama é idêntica à de Asas da Pomba. No romance, Kate Croy e Merton Desher precisam de dinheiro para ficarem juntos. Kate aproxima o amante de uma ricaça americana em fase terminal, para que ele possa herdar sua fortuna. No filme, Bill (Richard Gere) aproveita a paixão de um fazendeiro por sua namorada Abby, e planeja um golpe arriscado. No livro e no cinema, o mesmo paradoxo: o understatement excessivo e arrebatador.
Vejam, leiam. Se não concordarem, ao menos terão visto/lido coisas inesquecíveis.
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