terça-feira, agosto 21, 2007

Pornochanchada Globo Filmes

No Festival de Gramado no ano passado, o crítico pernambucano Kléber Mendonça Filho perguntou ao diretor estreante Marcelo Santiago o que achava de exibir o filme recém-lançado (“Sonhos e desejos”, com Mel Lisboa e Felipe Camargo) no rádio. É uma boa pergunta, e cabe perfeitamente a “Primo Basílio” (Brasil, 2007) . Esse produto Globo Filmes tem imagens tão indigentes e encenação tão rasteira que chega a ser ofensa chamá-lo de TV. Passaria muito bem numa radionovela AM, afinal, só importam aqui os diálogos caricatos e a trilha com cara de sonoplastia.

Daniel Filho, diretor que manifestou desgosto pela transposição de material direto da TV para o cinema (“Os normais”, “Antonia”, “O auto da compadecida”) filma o mesmo Eça de Queiroz adaptado pela Globo há quase 20 anos, em tom aparentemente distinto. A história de tédio, adultério e chantagem portuguesa no século 19 cruzou o Atlântico para São Paulo, 1958. Visão original, portanto, mas nada adianta não fazer o mesmo produto da televisão, quando o que se faz no cinema tem não somente tratamento da imagem displicente, mas também alma de TV (ruim): conflitos aplainados, diálogos falsos, personagens de papelão.

Desde os primeiros minutos, Daniel Filho pisa no acelerador com sua novela do SBT/radionovela. A produção de época é barata, figurinos provavelmente requentados de alguma minissérie e aquelas referências históricas que chegam com sutileza elefantina e impostação teatralíssima: “Fui ao casamento da Grace Kelly”, ou “Brasília é um delírio de JK!”. Já bem disse o editor de Nacocó Diego Damasceno, os personagens entram em cena parecendo estar segurando plaquinhas explicativas sobre a época, como num Telecurso 2000 História.

Essa estrutura chata e inofensiva ganha um pouco de pimenta quando o diretor começa a explicitar, infelizmente, sua paixão por Nelson Rodrigues, principal causa para a mudança da história para os anos 50. Chega a surpreender ver Simone Spoladore, vestida de vermelho, com batom vermelho berrante e fumando muito, dizer em uma de suas primeiras falas algo do tipo: “Não gosto de homem que tem nojo de xoxota!”.

A partir daí, o tom de pornochanchada seqüestra temporariamente o filme, durante o envolvimento de Luísa (Débora Falabella) e Basílio (Fábio Assunção). É engraçado ver, com esses cenários de época, vitrola e telefone de disco, Basílio conquistar a prima com um agá barato e mal escrito rumo a uns 10 ou 15 minutos de sexo — desde já, um dos momentos mais constrangedores dessa geração Globo Filmes.

O sexo constrange não por pudicícia, mas por parecer uma caricatura de comercial de motel, que certamente são mais elegantes. Vejamos. Câmera desce da cara de mau de Fábio Assunção até a cintura, ele desata o cinto. Débora Falabella geme, se encolhe na cama, ele puxa a coberta e se deita sobre ela. A tela passa a escurecer no ritmo da respiração: close no seio de Débora, fade, bunda de Assunção, fade, boca de Débora.

E tem o fecho, a câmera girando em volta da cama enquanto o casal se pega, quase um efeito Matrix — os últimos filmes que tiveram a coragem de usar isso, pelo que me lembro, foram os da série “Emanuelle — A nova geração”. Tudo isso, claro, com música bem alta de Guto Graça Mello, algo entre Kenny G e George Michael.

O filme tem mais um cena de sexo, não tão forte, mas igualmente surpreendente pela grosseria: Jorge (Reynaldo Gianecchini, terrível, corno com cara de bobo), fica por baixo de Luísa, e enquanto a mulher o cavalga, ele solta a pérola: “Que bom te ver tão solta hoje à noite!”.

Pena que “Primo Basílio” não seja comédia, e tanto não é, que a novela do SBT retoma o controle com a trama de chantagem que deveria garantir a tensão do último ato: Juliana, a empregada megera na pele de Glória Pires, rouba as cartas do casal de amantes e ameaça a patroa. O filme segue então em piloto-automático rumo ao mesmo desfecho da trama original. Há ainda algumas levantadas de sobrancelha: Guilherme Fontes dando as caras e salvando o dia, os letreiros manuscritos de “paixão”, “amor”, “sexo” que invadem a tela quando Jorge descobre que é traído (grande cena de Tony Ramos na minissérie), e a música de Graça Melo em versão suspense.

No final, a impressão apocalíptica de que estava tudo errado, desde o que já se podia esperar de Daniel Filho, até tragédias menos óbvias, como a atuação de Débora Falabella, histérica, banal, longe da “beleza láctea das louras” de Eça.

Invocar Nelson Rodrigues pode ser coerente (Daniel Filho fez muito bem “A vida como ela é” na TV), mas não deixa de ser um insulto transformar tanto o dramaturgo brasileiro quanto o escritor português nessa mistura de melodrama e pornochanchada sem qualquer vestígio de complexidade. Infelizmente, o padrão de comparação fica mesmo com o velho “O amante de Lady Chatterley”, de 1981, em que a obra-prima de D.H. Lawrence virou um softcore com Sylvia Kristel. Pelo menos o sexo não cabe no rádio.

Um comentário:

Gustavo disse...

Zero de coragem e de expectativa pra me aventurar vendo um filme desses, Saymon.

E pensar que Daniel Filho na pré-estreia deste cita Truffaut como um de seus inspiradores... coitado do mestre frances.