quinta-feira, maio 24, 2007

Sarcasmo, até o ponto da dormência

A história adora desmentir frases feitas, mas é muito difícil que um cineasta apresente um segundo longa satisfatório depois de estrear com um desastre absoluto. O Cheiro do Ralo, de Heitor Dhalia, entrou em cartaz sob a sombra de Nina, releitura de Dostoievski à luz de Kafka, cheio de tons expressionistas, mas com peso e superficialidade de videoclipe do Evanescence. Dhalia, neste novo longa, baixa a bola e adapta Lourenço Mutarelli. O resultado é menos pretensioso, mas sem muito ganho em qualidade.

Selton Mello, também produtor do filme, interpreta Lourenço, dono de antiquário, que passa os dias sendo sarcástico e estúpido com as pessoas que o procuram em busca de dinheiro rápido. Automaticamente em posição superior, Lourenço lança aos clientes olhares desagradáveis, às vezes compra o que lhe oferecem, sempre por muito menos do que os objetos valem. Depois manda os desesperados pastarem, quando não os agride fisicamente.

Deveria haver alguma profundidade nisso, camadas e camadas em baixo da carcaça de sarcasmo, mas Dhalia prefere não levar o personagem além do clichê de vilão malcriado hollywoodiano – a criança mimada e irônica em tempo integral, provavelmente com problemas psicológicos, que precisa urgentemente de uma palmada para se consertar. Talvez nem precisasse de profundidade, desde que esse tipo cômico funcionasse.

Ver Selton Mello sendo intratável pode deixar o espectador dormente, depois da quarta ou quinta vez. Ele será assim até o fim. Dhalia acredita que isso é tão engraçado que monta o filme numa estrutura auto-indulgente de câmera escondida de Silvio Santos. Filme é isso – uma vítima atrás da outra, todos na arapuca da mesma pegadinha.

Não ajuda o fato de que Mello, tão aclamado, pareça aqui uma versão muito esmaecida de seu notável João da Ega, da minissérie Os Maias, ou mesmo um primo infeliz de seu papel fixo em Os Normais. Mello insiste numa nota só, e já declarou em entrevistas que esse é papel mais difícil, cômico e dramático ao mesmo tempo. A muito custo, ele arranca umas risadas, mas não por muito tempo. Para os momentos dramáticos que Dhalia e Mutarelli criam, Mello se esforça, mas o material é muito ruim. Ver aqui a cena do desabafo para a empregada – talvez por culpa de direção roteiro e interpretação, a carapaça de sarcasmo não desmonta, personagem continua inexpressivo, plano.



Nos intervalos desse joguinho mórbido, Lourenço se comporta do mesmo jeito com as mulheres de sua vida. Logo no início, dispensa a noiva, sem qualquer vestígio de humanidade. Poderia ser muito forte, mas é tudo reduzido à fórmula da pegadinha, muito longe em alcance do momento idêntico de Ligações Perigosas, em que o mestre da ironia John Malkovich se livra de Michelle Pfeiffer. Mais tarde, a noiva de Lourenço reaparece, faca em punho, caricatura grosseira de um personagem que nem saiu do rascunho.

A outra mulher da vida de Lourenço tem uma bunda grande - o atributo anatômico da moça torna-se a obsessão do anti-herói. Mais uma vez, o comportamento vilão de pegadinha se repete, e vêm outra lembrança cinematográfica: Jack Nicholson, maravilhosamente indelicado na excelente sitcom estendida Melhor é Impossível, também atraído por uma garçonete simplória. A lembrança é ruim para o filme de Dhalia – no longa havia certo desenvolvimento de conflitos; aqui, temos idiossincrasias imbecis tentando movimentar o que já não tem solução.

Enfim, como bem escreveu Eduardo Valente na Cinética, Dhalia erra, mas é coerente. Continua fazendo cinema de superfície, árido, sem pathos. Por falar na camada exterior desse bolo sem graça, o filme é competente tecnicamente, e pode se orgulhar do orçamento de R$ 350 mil. Ainda assim, esses atributos não alcançam o grau de brilhantismo que façam o todo sair do lugar ou mesmo chegar a um nível de relevância, como muita coisa de Brian de Palma.

Imagens de fachada podem ser hipnotizantes, ao ponto de que um filme permaneça completamente à parte de qualquer conflito humano, sem prejuízo estético qualquer. Não é o caso. Ser superficial aqui é questão de imaturidade, frivolidade. Até por isso, Dhalia deveria ter contido seus instintos cinéfilos e tirado os pôsteres de Os Implacáveis e Acossado do cenário.

segunda-feira, maio 21, 2007

O Turbilhão da Vida

Provavelmente já disse isso aqui, mas Jeanne Moreau é das atrizes mais impressionantes da história. Obviedade, sei, mas não como resistir à força daquela boca amarga quando se descobre, filme a filme, sua grande fase. Acho que foi Milton Nascimento - ele viu Jules e Jim quatro vezes seguidas e conseguiu inspiração para compor durante um mês, ou viu o filme uma vez só e compõs por quatro dias, sem parar, não importa. O filme de Truffaut é definitivo.

Vi Jules e Jim pela primeira vez num VHS Alpha Filmes, que mutilava os enquadramentos em Cinemascope. No dia, lembro que aconteceu um problema barra pesada em casa, mas minha cabeça não saía das imagens de Truffaut, do clima, da força. Revi o filme no cinema, e durante boa parte da projeção, tinha uma mancha de óleo na fita. Chorar vendo um filme é fácil. É ato reflexo de drama, como uma risada em piada de banheiro numa comédia ruim. Às vezes, no entanto, uma lágrima sincera que não vem define as conseqüências de um filme na nossa mente, da mesma maneira que a mancha de óleo na película. O filme vira parte de você, até o túmulo.

Jules e Jim, mesmo com todo o brilhantismo de Truffaut em dia endemoniado, não seria o mesmo sem Moreau. A extrema sensibilidade de sua personagem, Catherine, joga Moreau em abismos de doçura, amor, sensualidade, e por fim, amargor e loucura. Não há personagem feminino tão complexo. Na minha opinião, está é A atuação da história do cinema.

Mesmo com tanto área coberta por Catherine, ainda não vi Moreau passar em branco, oferecer pouco a um personagem. Ela está sempre na tela de corpo e alma. Sua beleza difícil lhe rendeu papéis difíceis, não exatamente simpáticos. Vi Moreau impressionante em Ascensor Para o Cadafalso e Os Amantes, de Louis Malle. No primeiro, arma um plot para matar o marido; no segundo, decide fugir da vida em direção ao nada com um desconhecido.



A maldade na alma que seus traços sugerem a levaram a As Relações Amorosas, de Roger Vadim. Filme é adapatação das Ligações Perigosas de Chordelos de Laclos, nos anos 60. Não presta. Moreau, no entanto, sai incólume na pele da Mme. de Merteiull. Glenn Close viveu depois o papel interpretanto com os seios - alguém já disse isso, não lembro quem - e maravilhosamente. Moreau joga a dimensão toda do personagem no sorriso.

Hoje (ontem, 20/05), vi Moreau em mais um grande papel, desta vez como a Eva de Joseph Losey. O diretor renegava o resultado final, com uma hora a menos do que o planejado. Provavelmente os produtores tinham razão. As lacunas, ao invés de enfraquecerem o filme, o tornam infinitamente complexo, cruel, insinuado, enigmático. Moreau tem essas mesas qualidades do filme.

O que poderia ser uma falha vira mérito, já que tudo se sustenta no poder de fogo da superfície de Losey, via enquadramentos, montagem, trilha, e Moreau, impondo um magnetismo exacerbado, imponente, ainda que discreto. Ela domina o outro personagem masculino, sem mais nem porquê, ou explicação. Mérito completo da atriz - tornar situações incontestáveis, à prova de questionamento.

***

Eva se passa em Veneza, cidade fatal, fria, gélida. Obviamente, não conheço in loco, mas, não importa quão maravilhosa seja a celebração da cidade de David Lean em Summertime, fico sempre com a impressão assustadora e mórbida impressa na memória por Visconti, Roeg, e agora Losey. Embora este último diretor não tenha falado especificamente de morte, o clima doente (uma doença moral, provavelmente) da cidade chega imenso com um caixão numa gôndola, já nos minutos finais.

A associação da cidade com a morte também vem forte em Asas da Pomba, obra-prima do escritor Henry James, que aliás, tem crueldade discreta bem parecida com a de Losey. Os dois são americanos expatriados, mas isso não explicaria a violência sofisticada de suas narrativas.

***

Gostei muito do muito imperfeito Maria Antonieta, de Sofia Coppola. No momento, tentando pôr idéias em ordem sobre o filme. Longe de ser maravilhoso, é ainda assim extremamente estimulante, levanta muitas questões, dá vontade de discutí-lo.

***

Brinde: Jeanne Moreau canta Le Tourbillon de La Vie, em Jules e Jim.

terça-feira, maio 08, 2007

Guerra e humanidade

Estava no meio de uma sessão tripla sobre Leste Europeu e Segunda Guerra. Já havia visto Trens Estreitamente Vigiados, de Jiri Menzel, e A Ascenção, de Larissa Shepitko. O primeiro é tcheco, de 60 e poucos, vencedor do Oscar de filme estrangeiro. O segundo venceu Berlim em 76 ou 77, russo. Talvez entre em detalhes sobre eles depois. O que vale dizer é que são emocionalmente muito exigentes, e não quis passar direto para o terceiro da lista, Vá e Veja, do também russo Elem Klimov, marido da Sheptiko.

Pois bem, resolvi fazer um intermezzo com Lola, de Jacques Demy... O diretor é conhecido principalmente por Os Guarda-Chuvas do Amor, um musical todo cantado com Catherine Deneuve, vencedor da Palma de Ouro em Cannes no mesmo ano em que Deus e o Diabo Na Terra do Sol estava em competição. Bom, Fritz Lang, presidente do júri, sabia muito bem o que estava fazendo.

Os Guarda-Chuvas, por vezes tido somente como uma obra lírica e excessiva, tem aquele veneno que transforma todo o cor de rosa de cenários, direção de arte e da música de Michel Legrand em fel puro. Catherine Deneuve tem um namorado, que é convocado para lutar na guerra. Na noite de despedida, eles transam, ela fica grávida e ele parte sem saber. Desaparece, pode ter morrido. Ela casa com outro. Ele volta. Final feliz?

A guerra... Fujo da guerra do leste europeu e vou logo em direção a Demy! Ela também estava lá em Duas Garotas Românticas, como pano de fundo. Já disseram que Minnelli usava o excesso técnico de seus filmes para reconstruir o mundo doente, refazê-lo ao seu prazer. Essa qualidade cabe a Demy. A doçura cheia de cicuta também está em Lola.

Nas historinhas desta falsa comédia romântica, Lola é a personagem do título, mas não a principal. Quem protagoniza o filme é seu amigo de infância Roland. Lola ficou grávida de um homem que a deixou para fazer fortuna, e nunca mais voltou. Roland poderia estar lá no momento, revelar seu amor e ajudar a mulher desamparada. Foram separados pela guerra. Uma personagem com quem Roland se envolve ficou viúva. Outro personagem importante é um marinheiro americano, amante de Lola.

A guerra é pano de fundo, mas está lá, inscrita no cotidiano dessas pessoas – talvez não de modo tão perverso quanto em Os Guarda-Chuvas do Amor, mas com poder suficiente para imprimir nessa pessoas o toque de melancolia que Demy precisa para transcender excesso do tratamento que dá a seus filmes.

Assim, Lola faz parte de uma lista muito especial de filmes que mostra com diferentes graus de atenção os efeitos retardados dos conflitos bélicos na vida. Os Melhores Anos das Nossas Vidas, O Franco-Atirador, Conspiração do Silêncio, O Casamento de Maria Braun, Os Girassóis da Rússia... Ou mesmo a cena mais bela de pós-guerra que me lembro agora, os dois velhinhos que reconhecem os traços no campo de batalha nos rostos um do outro, no recente História Real, de David Lynch.

***

Durante o fim de semana, outra sessão tripla: Descalços no Parque, Adivinhe Quem Para Roubar e California Suite, Jane Fonda em três papéis cômicos. Ela atua sempre do mesmo jeito, mas, incrível, os personagens não se repetem. Isso não é tipo, ou limitação – é estilo. Firme, forte, com autoridade. Aliás, falava de pós-guerra. Jane Fonda venceu seu segundo Oscar por Amargo Regresso. No filme, ela interpreta uma mulher que recebe o marido do Vietnã paralítico. Não vi ainda.

domingo, maio 06, 2007

Jane Fonda

Depois de 15 anos parada, Jane Fonda voltou recentemente ao cinema com A Sogra. Não vi, nem quero. Esse ano, outra comédia feminina, Georgia Rule. Deve ser melhor, mas nem tanto. O que importa é que parece (bem, de acordo com o trailer) que teremos a velha presença da Hanoi Jane.

Nem conheço tanto sua carreira, mas, nos filmes que vi, fiquei impressionado com seu poder de intimidação. Cena a cena, ela parece sólida como uma rocha, invulnerável. Ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo à volta. Mesmo em comédias. Talvez por isso são tão impactantes os minutos finais de A Noite dos Desesperados, de Sydney Pollack.

Sem mais tempo, deixo uma amostra de 41 segundos de Klute, o Passado Condena, que uma boa alma colocou no YouTube. Volto ao assunto depois.