quarta-feira, junho 24, 2009

Streep 60

Fernanda Montenegro e Katharine Hepburn, duas das melhores atrizes de todos os tempos, já manifestaram sua opinião não muito lisonjeira sobre Meryl Streep, que seria mecânica, fria, gelada, sem a emoção que caracteriza os grandes intérpretes. Concordo discordando: Streep é mesmo maquinal, mas é genial desse jeito, e sua força camaleônica vem justamente da sua precisão técnica. Ver alguns de seus melhores trabalhos é algo parecido com experimentar o espanto causado por um prodígio arquitetônico. É um fascínio pelo rigor, mas é ainda assim emocionante, estético.

Essa característica está cada vez mais evidente no trabalho da atriz, acho. Em O Diabo Veste Prada ela mói um texto ruim sílaba a sílaba, pegando aquele seu bordão "That's All" e o desdobrando em mil entonações e variações, cada uma com efeito diferente. Seu discurso sobre o "cerúleo" é um primor desse tipo de coisa, com aquele fff pronunciado em stuff, surpresa, desprezo e arrogância. No início do ano, outro trabalho fenomenal no mesmo estilo, em Dúvida, que deveria ter levado o Oscar sobre o trabalho de Kate Winslet em O Leitor, bom, mas inferior a outros grandes momentos da inglesa. No meio dessas atuações, para desmentir Hepburn e Montenegro, Streep relaxou o quanto pôde e pôs muito coração no derradeiro filme de Robert Altman, A Última Noite.

Estou falando de Streep porque ela completou 60 anos dia 22, e, apesar de alguns tweets sobre a data, senti necessidade de um top ten. O melhor de Meryl Streep em dez filmes:


10 - Entre Dois Amores


9 - Ironweed


8 - Dúvida


7 - Kramer vs Kramer


6 - O Franco Atirador


5 - O Diabo Veste Prada


4 - Um Grito no Escuro


3 - A Mulher do Tenente Francês


2 - A Escolha de Sofia


1 - As Pontes de Madison

quarta-feira, junho 17, 2009

Sexo e sangue

Embora seja frequentemente subestimado, acho que Ang Lee tá numa fase tão boa que ao ver seu último filme lançado comercialmente, Desejo e Perigo, senti aquele tipo de expectativa do erro de um grande artista, algo que tenho encarado nos filmes de Almodóvar desde que Fale Com Ela teve a dura missão de seguir Tudo Sobre Minha Mãe.

Depois de seu inebriante musical hollywoodiano O Tigre e o Dragão, do arrojada subversão do blockbuster em Hulk e da delicadeza infinita de O Segredo de Brokeback Mountain, Lee fez mais um filmaço. Desejo e Perigo é uma cacetada capaz de suspender a respiração em longos e lentos 156 minutos, dotados do mais fino classicismo presente no cinema atual.

É um filme que honra uma velha escola de épicos calculadamente contidos, cheios de uma suntuosidade de silêncios, luxuosos cenários e corpos enquadrados em planos fixos que nos melhores momentos lembram O Poderoso Chefão Parte II, de Coppola, ou O Inocente, de Visconti. Detratores podem chamar esse show não-ostentatório de academicismo. O conceito, no entanto, passa pela obediência estúpida a padrões consagrados, mas não pelo uso desses cânones com a expressividade típica da assinatura Ang Lee.



Não por acaso, esse cabo de guerra entre épico e íntimo que o filme tão bem administra é quase uma metáfora do impasse em que vivem os personagens filmados pelo diretor em todos os seus filmes. Impasse, aliás, roubado de Jane Austen, sense e sensibility, Razão e Sentimento, como no romance que Lee filmou, maravilhosamente. O filme se equilibra na corda bamba entre filmar o interno (as emoções) e o externo (a política, a sociedade e a guerra), que é a mesmo conflito da espiã da resistência chinesa e do militar colaboracionista.

Ironicamente, em seu filme mais rico e luxuoso, Lee se desvia de abordar esse conflito com os pés do lado das convenções, como fez em Razão e Sensibilidade, O Tigre e o Dragão ou Tempestade de Gelo. Por mais que pareça o contrário na primeira hora e meia, desta vez, assim como em Hulk, Lee está mais interessado no poder do corpo, da paixão e do sexo, invertendo o sentido de influência na relação público-privado.

Tony Leung e Tang Wei podem não ficar verdes, mas se entregam às mais belas e necessárias cenas de sexo em muito tempo, desgastantes batalhas sobre a cama, mais tensas que qualquer cena de ação vistas na última década. Maravilha.

>>> Deixe Ela Entrar, o tal filme sueco de vampiros que se tornou o maior cult do último ano, é mais uma reapropriação recente de histórias de trancoso off-Hollywood, e das mais felizes. Se O Orfanato partia rumo à gótica "casa do terror" e REC em direção aos zumbis, Deixa Ela Entrar revive mais uma vez o vampirismo com lentidão e lerdeza de dar inveja em M. Night Shyamalan.



O filme é um arraso de direção, cena após cena, um intrigante jogo de esconder e mostrar a violência. O diretor Tomas Alfredson investe pesado em planos abertos para acentuar o realismo de sua história fantástica e torná-la crível, mas, ao mesmo tempo, consegue não ser gráfico dentro do quadro, quase como se marcasse suas cenas de modo teatral. As sequências são todas inteligentes, principalmente a última explosão de sangue numa piscina, e o resultado final é um primor de elegância. Mesmo para quem não tem paciência para o fantastique.

quinta-feira, junho 11, 2009

John Wayne

John Wayne Pictures, Images and Photos

Esse post aqui vai pra Gabriela, que me ensinou a gostar de John Wayne ao me abrir os olhos para Rastros de Ódio. Pois é, eu vi de primeira e não entendi, e essa minha amiga que já foi definida como barbie indie (por Zezão Castro, que foi colega de redação dela no A Tarde, e mais tarde, meu colega também), de voz baixa e cabelo vermelho, ex-repórter do Dez e fanática por misses, leitora de Colette, Dostoievski, Anita Loos e F. Scott Fitzgerald (hoje ela mudou de gostos), me mostrou como aquele faroeste violento com um protagonista racista era um dos melhores filmes já feitos. Revi várias vezes o filme depois, e a cada vez mais o admiro.

(Depois desse parágrafo Gabriela podia me responder a mesma coisa que aquela garota que o personagem de Woody Allen em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa atormenta numa festa, enumerando seus círculos pessoais: "No, that was wonderful. I love being reduced to a cultural stereotype")

Pois bem, hoje é o aniversário de 30 anos de morte de John Wayne, esse ator maravilhoso, com sua cara talhada em pedra, cheia de rasgos trágicos, que foi ganhando impacto na tela não pela diferença de papéis, mas pela acumulação dessa sua presença única e inimitável, mesmo que pensemos os filmes de fora de ordem.

Como não associar a campanha militar de Marcha de Heróis à destruição do casamento de Rio Grande? O amor não-realizado de Ethan Edwards, de Rastros de Ódio, não é o mesmo de Tom Doniphon, de O Homem Que Matou o Facínora? John Wayne não era versátil, mas conseguiu criar múltiplas dimensões de um mesmo tipo, e era por isso que quanto mais filmes como ele a gente vê, mas ele parece real.

Gabriela, versada em John Wayne, me disse algumas vezes que ele parecia de fato uma pessoa conhecida, e é por isso que sentimos tanto carinho por ele na tela. Eu, ao menos, sinto, e a dor transmitida por ele quando sua voz metálica grita Martha depois daquela chacina promovida pelos índios é das maiores emoções do cinema.

sexta-feira, junho 05, 2009

Apresentação de personagens

Ida:

A única jaça na beleza de Ida era o comprimento excessivo dos braços, graças ao qual, talvez, ela derrotara o ex-marido tantas vezes na mesa de bilhar, jogo em que ela manifestava uma superioridade que era, em sua opinião, uma das causas do ressentimento manifestado por Beale através de atos de violência física. O bilhar era a maior realização de Ida, e a primeira distinção mencionada sempre que seu nome vinha à baila. Fora algumas linhas muito alongadas, tudo que poderia ser grande, e que embelezava muitas mulheres por sê-lo, nela era, com uma única exceção, mencionado e admirado por sua pequenez. Esta exceção eram os olhos, que, embora medíocres quanto ao tamanho, conseguiam extravasar as modestas medidas naturais; sua boca, por outro lado, era quase imperceptível, e com freqüência faziam-se apostas referentes à medida de sua cintura. Era uma pessoa que, quando saía - e saía sempre - causava, onde quer que fosse, a impressão de ser vista com freqüência, ou mesmo de abusar do direito de ser vista, de modo que, nos lugares habituais, seria um tanto vulgar admirá-la abertamente. Apenas os estranhos o faziam; porém estes, para o deleite dos habituados, faziam-no com ênfase: era uma manifestação inevitável da condição de forasteiro.

Beale:


Beale Farange dispunha de adornos naturais, uma espécie de fantasia composta de uma barba loura e abundante, brunida como um peitoral dourado, e dentes sempre reluzentes, que os longos bigodes eram penteados de modo a não ocultar e que lhe davam, em todas as situações possíveis, um ar de alegria de viver. Na juventude fora encaminhado para a diplomacia, e estivera temporariamente vinculado, sem salário, a uma missão diplomática, circunstância essa que lhe permitia dizer, com freqüência: "No tempo em que eu estava no Oriente...". Porém a história contemporânea, ao que parecia, não precisara de seus préstimos, passara por ele célere e deixara-o perpetuamente em Piccadilly. Todos sabiam o quanto ele tinha - apenas duas mil e quinhentas libras. À pobre Ida, que já dera cabo de tudo que tinha, agora só restavam a carruagem e o tio paralítico. Este velho desgraçado, como costumava ser qualificado, era supostamente dono de uma fortuna considerável. O futuro da menina estava garantido, graças a uma herança deixada por uma madrinha astuta, uma falecida tia de Beale: os pais só tinham acesso aos rendimentos.


Estou aqui roubando a ideia de Gabi, e seus trechos da semana / quinzena / mês. Os dois trechos acima estão no mesmo parágrafo, logo nas primeiras páginas de Pelos Olhos de Maisie, de Henry James. Tradução de Paulo Henriques Britto.