terça-feira, novembro 22, 2011

A Pele Que Habito

Lá pelo meio de A Pele Que Habito, após o filme parecer bambear pra lá e pra cá e até afundar de vez na própria estranheza, caiu a ficha de que Almodóvar chegou a um ponto da carreira de que não é mais apenas um autor de cinema classe A, e sim um cineasta cuja sensibilidade pode instigar reflexões profundas sobre praticamente qualquer coisa, por mais estranha que pareça à sua obra. É um grande cérebro, um pensador.


Nem sempre foi assim. Até A Flor do Meu Segredo, de 1995, Almodóvar parecia restrito a um cinema engraçado e extravagante, com fortes pulsões sexuais e olho muito bom para a reciclagem da comédia clássica americana. Na sua fase seguinte, ele cortou os excessos, tornou-se um dos narradores mais precisos do mundo e abriu a mente para um escopo de ideias realmente fascinante sobre o homem, o tempo, a memória e arte, do ponto de vista de quem cria, vê, ouve e sente.


Tudo Sobre Minha Mãe, Fale Com Ela, Má Educação e Volver pareciam já ter esgotado tudo o que Almodóvar era capaz de dizer. Essa sequência foi tão arrasadora que o cara entrou em crise: Abraços Partidos já capengava, torto, como produto de uma fórmula mal executada, a despeito de suas lindas ideias, mesmo que reiteradas.


Com A Pele Que Habito, suspeito, a crise terminou com a decisão de abrir um veio novo a partir de uma ideia aparentemente antiga. Almodóvar já havia trabalhado com as relações sentimentais surgidas a partir de uma situação de cativeiro e dominação física/emocional, tanto em Abraços Partidos quanto em Ata-me. Agora, ele recicla esse mote para ideias novas e tom completamente inédito, mesmo na sua fase noir. O seu novo filme nada mais é que a crônica de uma sessão de tortura, arrastada por anos a fio, mas sem os rastros de generosidade típicos do diretor.


O tom é insuportavelmente cruel, e o corpo brutalizado como só se costuma ver em obras de diretores como David Cronenberg, na referência clara a Georges Franju e seu Os Olhos Sem Rosto, ou na sem-cerimônia de realizadores orientais, de Yasuzo Masumura e Takashi Miike. Isso tudo, no entanto, dentro das especificações adequadas à recente sofisticação do diretor: não há sangue, não há gore, mas a violência agoniante do seu sadismo é inequívoca.


Se o travesti de Tudo Sobre Minha Mãe dizia que somos mais autênticos quanto mais parecemos com o que queremos ser, A Pele Que Habito aparece na contramão, reafirmando a inviolabilidade da identidade, da essência e da consciência humana, que não muda nem sai do lugar se assim não o quiser, independentemente do que aconteça com o corpo.


O filme é quase um relato de resistência, um primo distante no tempo e no décor do velho Desejo Profano, de Shohei Imamura, em que uma mulher luta contra todo o tipo de abuso, vindo de todas as partes, especialmente sexuais, apenas para poder respirar aliviada ao final, apesar de todos os danos.


O caminho novo deste Almodóvar, que torna esse filme tão especial, é justamente o fato de que ele parece único, isolado, fechado, sem que seus questionamentos pareçam superficiais. Ao mesmo tempo, os “temas”, a “mensagem” ou que quer que esse filme tenha que “faz pensar” tanto, se beneficiam dessa sua sofisticação narrativa conquistada com muita luta na sua carreira, não cabendo aqui então os desejos de uma loucura ou escracho de tom típicos do início de sua carreira. Simplesmente porque o Almodóvar dos anos 80 não seria capaz de fazer um filme tão “profundo” quanto esse, com o perdão da palavra.


Com essas armas na mão, um cinema capaz de tudo e uma eloquência de pensamento que destrincha como um cientista mesmo reflexões que não lhe são familiares, Almodóvar parece ter resolvido de vez o seu cinema. Ele não precisa mais de uma linha condutora mestra para a sua filmografia, não há mais crise. Cada filme poderá ser surpreendente, inédito, tanto para ele quanto para o público. Enfim, Almodóvar agora é um autor que conseguiu ser alforriado da própria obra.

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