domingo, março 26, 2017

A Mais Longa Jornada


Muitas vezes as obras-primas são descobertas por acaso. Comprei esse livro há quase 15 anos, num antigo sebo de Salvador, o Berinjela. Havia visto filme Retorno a Howards End, comprei o livro, e achei esse do mesmo autor. Nesse ínterim, li Howards End, Passagem Para a Índia, e, pra mim, o até então melhor livro de Forster, Um Quarto Com Vista.

Há uma semana, depois da experiência desastrosa de um romance nebuloso de um fluxo de consciência incrivelmente mal escrito - O Ocaso dos Pirilampos, de Adriano Mixinge - lembrei da limpidez absoluta do texto de Forster e tirei esse livro da estante.

O Que A Mais Longa Jornada tem a oferecer é muito mais do que um texto de primeira qualidade. O livro é uma bela meditação sobre a nossa passagem nesse mundo, o conceito de legado e obra, e o quanto vale a pena dedicar o único tempo que temos à construção de algo que fique para a posteridade.

Os pólos dessa meditação são dois irmãos, um legítimo, outro bastardo, que não sabem da existência do parentesco. Há certamente intriga nesse drama familiar clássico, mas Forster dedica muito mais que metade das mais de 300 páginas do seu livro às ruminações das suas personagens a respeito de cada momento da vida.

Lugares, tempo, costume e pessoas são descritos com um indolente e arguto senso de observação. Fatos importantes que mudam as peças de lugar nesse jogo vêm sempre abruptamente, em cortes secos, como um choque deliberadamente calculado para refletir as surpresas da vida e a sua falta de lógica.

A oposição entre os irmãos, antes de um antagonismo, é sobretudo o abismo de diferença entre dois pontos de vista. De um lado, um acadêmico de filosofia obcecado em escrever ficção, que cede às convenções da vida e enterra os seus planos justamente por aderir a instituições que refletiriam a segurança da existência: Deus, o casamento, um emprego, dinheiro. Do outro, a explosão sensorial e anti-convencional do bastardo, bêbado, libertino, impulsivo, ateu convicto.

Apesar de estruturar o seu romance como uma oposição clássica austeniana (razão e sensibilidade, orgulho e preconceito), Forster ambiciona mapear o que une os irmãos, não o que os separa, os pequenos detalhes indispensáveis que fazem do mundo um lugar muito mais cinza do que os extremos de uma discussão existencial.

No fundo, sobra a santidade dos sentidos, a terra sagrada, a aproximação possível entre a finitude ("quando um homem morre é como se nunca houvesse existido") e o caráter milagroso desse pequeno intervalo de vida que existe fragilmente, e que pode acabar a qualquer momento, e de forma aleatória, como frequentemente acontece no livro.

Entrando na esfera da especulação, não deixa de ser um resumo da vida do próprio autor bem antes que ela tivesse se desenvolvido. Forster escreveu o seu último livro 46 anos antes de morrer. Segundo os seus diários, perdeu a inspiração logo após perder a virgindade, já perto dos 40 anos, com um soldado ferido na I Guerra Mundial (apesar disso, ainda publicaria, anos depois, Passagem Para a Índia).

O desfecho do livro, portanto, parece antecipar a vida posterior do autor, que largou a ficção e escolheu a militância humanista secular ateísta e uma intensa vida sexual pelos bas-fonds de Londres. No entanto, ao contrário do seu protagonista, cujos contos são recusados por deixarem claro que quem os redigiu não viveu a vida de verdade, Forster foi capaz de entender e escrever sobre a existência antes de usufruir dela com plenitude. E quando a plenitude chegou, sobrou o silêncio na arte.

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