quarta-feira, outubro 11, 2017

Cineastas que odeiam pessoas infestaram a programação de Cannes 2016

(O texto abaixo seria originalmente publicado num projeto de jornalismo em Portugal, mas a coisa não andou e o texto ficou velho. Hoje Lembrei dele, e como os filmes já começaram a circular, resolvi publicar)

Se o cinema pode ser considerado um termómetro dos sentimentos do mundo e se o festival de Cannes permite, por amostragem, encontrar padrões dentro destes sentimentos, o diagnóstico encontrado a partir da última edição do evento, no mês passado, sugere uma sensação colectiva de desencanto e falência da crença nas instituições que mantêm a nós, humanos, organizados em sociedade. Os flashes e os vestidos continuaram lá em todo o esplendor, mas a cada vez que as luzes do Grand Théatre Lumière se apagaram, foi reforçada uma ideia muito consistente de que esta humanidade já se encontra numa curva descendente, muito próxima do seu apocalipse.

O pessimismo generalizado desse festival, no entanto, não é apenas uma constatação sobre o estado das coisas no mundo, mas sim o reflexo de um gesto activo de cineastas - especialmente da Europa - de culpar o homem pelo seu próprio ocaso. Nos filmes apresentados em competição em Cannes, inclusivamente no vencedor da Palma de Ouro, The Square, observa-se um empenho em pôr a espécie humana no microscópio, no seu pior ângulo. Foi um festival de realizadores-deuses, a julgar personagens segundo a sua superioridade moral desencantada, num esforço que transcende a misantropia e tende ao sadismo.

Tal empenho foi valorizado pelo júri presidido por Pedro Almodóvar (de quem se esperaria escolhas mais humanistas, aliás), em suas diversas formas de apresentação. O sueco The Square, de Ruben Östlund, o vencedor da Palma de Ouro, é uma comédia sobre brancos privilegiados de classe média alta que frequentam o universo da arte moderna. São todos ridículos, sem excepções, mas bom, o ridículo talvez seja a forma mais leve de descrença.

Por exemplo, o austríaco Michael Haneke, um veterano nessa técnica de moer pobres humanos para extrair pontos de visto, ressurgiu com Happy End, um filme no qual, ainda na sequência de créditos iniciais, uma criança mata um hamster de estimação e atenta contra a vida da própria mãe. É só o começo das actividades nessa máquina de tortura de duas horas, e desta vez, ao contrário do que ocorre em alguns dos seus filmes, como Caché, não há a mínima possibilidade de empatia. O russo Andrey Zvyagintsev, que apresentou Loveless (o título já diz tudo), aposta na mesma seara: o ser humano não presta.

Nenhum desses filmes, no entanto, se iguala ao monstruoso húngaro Jupiter’s Moon, uma fantasia que foi um passo além e deu o nomes aos bois causadores de tanto mal-estar: a situação política da Europa. No filme, de Kornel Mundrunczó, um refugiado sírio que tenta atravessar a fronteira da Hungria, é alvejado duas vezes por um polícia, mas em vez de morrer, adquire o super-poder da levitação. Um médico em desgraça que conhece o refugiado vai usar o milagre como forma de ganhar dinheiro.

Jupiter’s Moon, de todos, pinta um cenário de horror na Hungria, que parece aqui rivalizar com as Filipinas do realizador Brillante Mendoza como o pior lugar da Terra - só que em plena União Europeia. Não basta a canalhice generalizada. Tudo ainda precisa ser sujo e miserabilista como nos primeiros filmes de Alejandro González Iñarritu. Alegorias bíblicas que quase igualam os refugiados a versões de Jesus Cristo só pioram a situação, por sua obviedade.

Entre todos esses filmes de horror, no entanto, é preciso salvar o também russo A Gentle Creature, de Sergei Loznitsa, outra longa-metragem infernal sobre burocracia, mas que consegue não dirigir a sua fúria contra pessoas ao transformá-las apenas em ícones de um mal maior, o Estado. Não é uma alegoria subtil, especialmente quando os representantes do Estado partem para a violência física contra os cidadãos, mas dado que o objectivo de A Gentle Creature não é falar sobre gente, e sim sobre confronto entre instâncias de poder, o filme é muito bem-sucedido ao mostrar todos os dentes, de forma feroz, contra o regime Putin. É um grande filme político.

Todo esse universo de descrença, no entanto, ganhou síntese num filme mais humanista, mas que retrata bem este momento em que a Europa está sob ataque. Em In The Fade, de Fatih Akin, uma mulher casada com um turco perde o marido e o filho num atentado perpetrado por neonazis. A justiça lhe falha, e ela parte para a vingança. É uma história simples, digna de Charles Bronson, mas mostra como o pensamento liberal e de esquerda se aproxima perigosamente do vale-tudo e da retaliação não institucional quando é ameaçado.

Esse bloco de filmes do mal acabou por minimizar outras expressões artísticas avulsas surgidas na competição do festival, e também fora dela, em mostras paralelas. As duas únicas longas-metragens em português do festival, o português A Fábrica do Nada, de Pedro Pinho, e o brasileiro Gabriel e a Montanha, de Fellipe Barbosa, tiveram pouca repercussão. Filmes africanos passaram em branco.

E mesmo dentro do mainstream do festival, a discussão tecnológica a respeito da não exibição nos cinemas dos dois filmes da Netflix empanou a discussão sobre a qualidade dessas mesmas obras. The Meyerowitz, de Noah Baumbach, pode ir directo para o inferno das comédias sub-Woody Allen, mas Okja, do coreano Bong Joon-Ho, é uma joia, que vai perder muito ao ser visto apenas em televisões, tablets e telemóveis.

Nenhum dos filmes da competição, no entanto, igualou-se a três doces filmes fora de concurso. A primeira grande lufada de bom gosto veio na abertura da Quinzena dos Realizadores, com Um Beau Soleil Interieur, da francesa Claire Denis, adaptado dos Fragmentos de um Discurso Amoroso, de Barthes. Trata-se de um filme lindo sobre amar, ver os relacionamentos falharem e continuar tentando amar. Juliette Binoche, toda coração, sexo e lágrimas, prova mais uma vez ser a melhor actriz do mundo.

Entre os veteranos, aos 88 anos, a também francesa Agnès Varda uniu-se ao fotógrafo JR (o seu nome verdadeiro nunca foi confirmado) para o belo documentário Visages Villages, na qual ambos reproduzem em grande escala em paredes e muros imagens das pessoas que habitam os seus locais. É um filme sobre memória e permanência, num mundo que insiste em transformar em efêmeras as relações das pessoas e dos seus lugares. Por fim, acima de tudo, houve o filme póstumo de Abbas Kiarostami, uma coleção de 24 tableaux abstratos que pode ter, sem exageros, o final mais belo da história do cinema.
Tais obras, na sua convicção de filmar gente e arte de coração aberto, foram o que fizeram o Festival de Cannes ser um pouco mais suportável diante de tanta vontade de afirmar o fracasso humano. Que bom que há quem pense que nós, enquanto espécie, ainda temos jeito.



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