domingo, agosto 27, 2006

Hong Kong, Meu Amor

Depois de passagem apressada pelos cinemas baianos no início do ano, 2046 - Os Segredos do Amor, de Wong Kar-wai, volta a cartaz, na Sala Walter da Silveira. Para quem não conhece o diretor, a carta de apresentação é um romantismo sem fim, que foge de modelos melodramáticos tradicionais para apostar em uma relação com os sentidos do espectador. Mais uma vez nos anos 60, Kar-wai nos apresenta as várias histórias de amor de Chow Mo-Wan, jornalista estilo café, cigarro e ventilador de teto que busca em todas as mulheres a sua paixão não resolvida por Su Li Zhen - paixão mostrada em Amor à Flor da Pele, de 2000. Da complicada tapeçaria dessas histórias de amor, ficam o cheiro, o som, o clima... Nesses dois filmes - e no seu episódio para Eros - o diretor está praticamente fundando um movimento artístico de um homem só, o sessentismo.
Essa tendência extrapola trilha e decoração de interiores e passa para o campo referencial - revisão de diretores revelados mais ou menos nessa época. Amor à Flor da Pele tinha um forte teor Truffaut, em sua metade Hitchcock, filmando o amor como a tensão e rigor de um crime: A Mulher do Lado é uma referência, também por causa da relação adúltera entre vizinhos. 2046 vai em direção a Alain Resnais. Em seus filmes mais famosos, Hiroshima Mon Amour e O Ano Passado em Marienbad, Resnais conta histórias de amor com tempo e espaços estilhaçados, histórias narradas segundo a lógica da memória. 2046, na mesma escola, perde a noção temporal (viajando pra passado, futuro e futuro distante) e geográfica (Cingapura, Tailândia, quartos de hotel), desafiando qualquer tentativa de arrumação linear. O motor do filme é a recordação.


O interessante disso tudo é que o vocabulário cinematográfico sofisticado de Kar-Wai não o restringe a fazer um cinema de citações, como alguns filmes de Brian de Palma. Cada imagem é completamente autoral, ficando a semelhança com outros autores em nível temático e estrutural. Por autoral, nesse caso, entenda-se o detalhismo fotográfico, de cores que parecem inventadas em cenários e figurinos ultra-texturizados, recursos de edição que quase sempre atrasam o olhar, para que possamos ver com mais atenção cada uma das deusas orientais que passam pela vida do protagonista. Cabe destacar o apuro visual da concepção das histórias futuristas de Chow Mo-Wan, capaz de gerar uma imagem que fica para sempre: a andróide que aprendeu a amar, somente para fracassar, olhando pela janela, triste. Acusações de super-estetização devem ser descartadas, pois todo a minúcia na composição de cada imagem converge pra conteúdo humano do filme – não há excesso, distração.
Por toda essa fome de imagem, a Sala Walter não é o melhor lugar pra ver o filme, embora seja muito melhor do que uma tevê, por exemplo. Numa sala com projeção e som impecáveis, o filme não acontece só na tela; dá pra sentí-lo nas mãos, pés, ao redor da cabeça. De Amor à Flor da Pele para 2046, Kar-wai passou a adotar o formato Cinemascope, em que a largura é 2,35 maior que a altura - cinema totalmente retangular. A imagem crescem para os lados e pra frente; meio que abraça o espectador. 2046 tem o poder espacial de uma instalação. É pra esse tipo de filme que serve o adjetivo "sensorial", tão banalizado.
Na verdade, a eloqüência com que Kar-Wai entende a memória através desse tipo de detalhe físico tem tanto poder que é capaz de alterar a perspectiva de um espectador mais propenso à experiência do filme. Um olhar trocado por um casal amigo durante um almoço cotidiano; a tristeza de um amigo em fim de caso; a mulher com a cabeça encostada no vidro do ônibus, ao seu lado. Por algum tempo (dias? meses?) dá pra viver num mundo 2046.
Em tempo: O título é uma referência ao quarto que abrigou o romance secreto de Amor à Flor da Pele, projetado por Chow Mo-Wan em suas histórias sci-fi como o ano onde elas acontecem.

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