sexta-feira, outubro 06, 2006

A imagem da imagem da imagem da imagem

(texto provavelmente cabeção e pessoal demais pra justificar minha admiração por Vestida Para Matar. não tenho ainda as palavras para melhor definir as idéias. então, caro leitor, considere essas linhas como um ensaio de um texto melhor, que escreverei daqui a dez anos)
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Brian de Palma não filma, edita. Do mesmo modo que um editor de televisão buscando imagens para um programa jornalístico, ele trabalha sempre com material já visto, retrabalhando o arquivo. Vestida Para Matar, de 1980, é o maior exemplo desse comportamento. Há uma mulher de meia-idade esfaqueada (Angie Dickinson) no elevador do prédio de seu amante. Keith Gordon, o filho nerd, investiga o crime com a ajuda da única testemunha (Karen Allen) e do psicólogo da morta. Puro pretexto. Desde a primeira tomada, propondo perigo no chuveiro, De Palma guia o espectador através de cenas inteiras de Hitchcock.
Um Corpo Que Cai, A Sombra de Uma Dúvida e Janela Indiscreta passam pelos olhos, além de Psicose o tempo todo, em estrutura de roteiro, imagens, música. O ritmo sinfônico vem da obra-prima Marnie, com travellings atrás de mulheres criminosas em contra-plongée. Não se trata mais de citação: Vestida Para Matar existe no território da reciclagem precisa de peças avulsas. Quem não tem o repertório, verá um policial meio absurdo e muito tenso, mas não terá acesso ao essencial do diretor.


De Palma não oferece mensagens ou interpretações psicanalíticas, como o mestre Hitchcock. O americano fica com a preocupação com a forma e o tesão por objetos ópticos e de gravação. Em Um Tiro na Noite, ele usa Blow-Up, o filme-forma de Antonioni, para falar de si mesmo: técnico de som em busca do grito perfeito. Recria a cena de O Passageiro - Profissão: Repórter em que uma câmera gira sem parar num quarto, e confunde três tempos de ação através do áudio.
Vestida Para Matar é só imagem. Parte da contribuição para o desvendamento do crime vem das máquinas fotográficas programadas do garoto geek. O testemunho do crime é filtrado por um espelho. Daí a diferença entre criador e criatura. Hitchcock, artificial ao extremo, é obcecado pela instrumento óptico orgânico, o olho. Veja a primeira tomada de Vertigo, projeção do filme dentro do globo ocular. James Stewart não vai acreditar nos sentidos – vê o que é impossível, sobrenatural.


De Palma, por sua vez, situa suas obras dentro da câmera, pondo em dúvida o velho clichê de que um artista usa a vida real como matéria-prima de expressão. De Dublê de Corpo a Femme Fatale, o importante é mediado por espelhos, lunetas, radares e redes de circuito interno. Imagem da imagem da imagem da imagem. Roteiro, atores, diálogos, verossimilhança? De Palma ri na cara disso tudo, colocando helicópteros em túneis e coisas do tipo.
Fica a pergunta: por que tanto formalismo não é esterilizante? Há a resposta fácil. Domínio do ofício, que lhe permite convencer com filmes de gênero de grande apelo. Por outro lado, Deus me perdoe por citar Marshall McLuhan em público, mas os sentidos colonizados tecnologicamente já são pão dormido teórico – o que reafirma o clichê citado no parágrafo anterior. De Palma não faz nada extra-terreno. Um Tiro na Noite, Dublê de Corpo e Vestida para Matar são obras onde esse pensamento é expresso com maior eloqüência – em especial, o último, pela carga de paixão. Um filme para o mestre, um filme para o cinema.


Depois dessa trilogia, vieram os anos 80 e 90, onde “fazer referências” virou praga tão grande quanto o All Star ou Backstreet Boys. Filmes sem graça tentam distrair o público parando tudo para “citar”. Há honrosas exceções, mas demorou até 2002 pra termos um longa tão interessado em forma(tividade?). Moulin Rouge é ainda mais ambicioso que Vestida Para Matar – além do cinema, arrebanha música, teatro, ópera e literatura. Mas isso é outra história.

4 comentários:

Pondé disse...

O avesso do avesso do avesso!

Assisti recentemente Vestida para Matar, no Telecine Cult. O filme, assim como Olhos de Serpente, são exemplos de thrillers às avessas. Me explico: começam bem, bem demais até. A ordem natural típica desse gênero, que vai da proposição da trama ao clímax final, se inverte.
Decresce. Ou seja: oferta-se primeiro o presente, depois a embalagem. Criança alguma aprovaria. Adultos muito menos. Neste sentido, é que Vestida para Matar comete um pecado grave. Sua trama desanda em direção a um desfecho óbvio e em slow motion. Pretendo reassisti-lo em DVD e de trás pra frente. Talvez, assim, mude minha opinião. O avesso da sua.

Pondé disse...

"é um exemplo de thriller"

Saymon Nascimento disse...

Bom, Pondé, não acho que Vestida para Matar desande rumo ao final, mas é certo que seu ponto alto é mesmo no meio. A opção é a mesma de Psicose: acompanha-se a heróina criminosa só para matá-la no meio do filme. Depois vem a investigação, que, nos dois filmes, seguram o nível lá em cima em tensão. Quanto à obviedade da trama e do desfecho, isso não deveria ser um problçema porque a base é toda de outros filmes, o tempo todo, e o filme deixa isso bem claro. A retirada da peruca, enquanto alguém observa pela janela - logo depois, a explicação da patologia do assassino... Psicose, Janela Indiscreta... As ambições aqui são outras.

Pondé disse...

Entendi a questão das referências, mas ainda acho um filme médio. Pelo menos, concordamos em relação a Dália Negra.