Arnaldo Jabor, especial para Esperando Godard*
Ninguém escreveu nada sobre esse matadouro kitsch que é o maior sucesso de bilheteria da América? Ninguém se incomodou com o espetáculo brutal que o filme 300 nos oferece? Será possível que, com o chamado 'fim das ideologias', os críticos fiquem constrangidos de condenar o óbvio, que esse filme só tem o objetivo de nos vender um show de decapitações e estripamentos, com corpos esquartejados em câmera lenta, se aproveitando de um fato histórico para legitimar uma picaretagem sangrenta? Hoje, ficou feio para a crítica colocar um freio ético aos filmes. 'Ah... na pós-modernidade, seria ideologismo de minha parte...' Não. Uma das funções principais da crítica é a localização e a defesa do 'humano'; é a denúncia da traição às conquistas da razão. Já se criou também nas bordas da cultura de massas uma periferia 'cult', com seu panteon de intocáveis: 'Ahh... porque esse filme é baseado no Frank Miller, o mesmo de Sin City (aquela aula de estripamentos 'cult'). Ahh... porque Will Eisner, ahh... porque o fulano, ahh o Elmore...' E os nomes pingam das boquinhas dos articulistas dos cadernos de cultura. Eu cag... solenemente para Frank Miller. A arte também foi enxotada pelos efeitos tecnológicos da moda: 'Ahhh... foi tudo filmado em blue screen e depois eles puseram as paisagens...' O resultado é uma ridícula folhinha de coloridos kitsch, pores-do-sol tingidos de lirismo cafajeste, penhascos góticos laranjas e azuis, trigais românticos, tudo para ornamentar o grande campo de concentração, o 'Auschwitz' digital do desfiladeiro. Muita gente boba pensa: 'Ahh... que efeitos lindos...' Não são. São horrendas aquarelas de subacadêmicos.Eu me pergunto: por que a morte vista, nua, os membros voando, as cabeças decepadas, por que isso faz tanto sucesso? Por que o jorro de sangue tem tal poder sobre o público? As hipóteses sociopsicoanalíticas são muitas. Não as quero convocar, pois seria muita colher de chá para esse show vagabundo. Talvez não possa deixar de dizer que há no mundo um voyeurismo banalizador crescente diante da morte violenta, como a nos preparar para o 'horrorismo' que vem por aí, do qual o Iraque, Bush, o aquecimento global, o terrorismo sem trégua já são indícios. Os jorros de sangue parecem orgasmos de um filme pornô de guerra. Temos de tudo no matadouro das Termópilas: há até pilhas e muralhas de cadáveres que evocam nitidamente as valas comuns da 2ª Guerra nos campos de concentração e tudo 'embelezado' com os eternos contraluzes e os filtros polarizadores. É uma vergonha... O mercado tem a capacidade de antever a bosta que vem, a shitstorm que ronda, para fazer pré-vendas. Falo isso porque mais de 100 milhões de pessoas vão ver. Em breve veremos, em vez de protocolos de Kyotos assinados, aparelhos protetores para os ricos se livrarem do aquecimento que vai torrar os miseráveis. Aliás, vocês, jovens, verão, porque eu, graças a Deus, estarei quentinho debaixo da terra.
Na Ilíada, o maior monumento da história da literatura (no Brasil, com a única tradução decente, feita por Carlos Alberto Nunes - Ediouro), há também muita morte e sangue. Mas, lá, escrito há 2.500 anos, em outro contexto, esses momentos não são como o exibicionismo sádico do filme; as mortes são rituais trágicos, com as armaduras caindo com fragor nas lutas dolorosas. Há o pranto, a dor, o amor, há o desespero de Aquiles pela morte de seu amante Patroclos, há a dor de Heitor, tudo é um tratado maravilhoso da uma humanidade que nascia com uma esperança de grandeza ética. No filme, convocam meia dúzia de 'valores' para justificar os espartanos, como defensores da 'tenacidade pela liberdade' parecendo o treinamento dos fuzileiros americanos, representados por uma academia de 300 halterofilistas boçais. Que saudades dos grandes épicos humanistas, como o genial Spartacus ou mesmo Ben Hur, Quo Vadis, tantos...
O massacre sádico é narrado por uma voz off 'clássica', falando em 'glória e coragem' com lugares-comuns que parecem os discursos de Wolfowitz ou Rumsfeld, justificando a invasão ao Iraque ou até indiretas referências ao Irã (a antiga Pérsia, lembram?) Os espartanos, militaristas, totalitários, que seriam os 'republicanos' da Grécia Antiga, são elevados ao ápice da cultura grega, ao contrário de Atenas, onde se aninhavam 'filósofos e pederastas', como diz o próprio Leônidas no filme, ele que parece um paralelepípedo falante. Não há um ator decente entre os americanos.
Sem ufanismo, o único que cria alguma arte é Rodrigo Santoro, que surge numa espécie de alegoria de escola de samba (será que os inspirou?) e que nos passa uma personalidade ambígua, entre a piedade e o ódio, entre delicadeza e violência, uma duplicidade até sexual, diante dos brutos que o olham como ursos boçais.
Os americanos amam o espetáculo da morte, não há dúvida. O 11 de Setembro teve algo de realização de desejo, já previsto nos Godzillas da vida.
Ninguém criticou a violência do filme. Os filmes que foram mais combatidos pela crítica americana como 'violentos' foram os de Tarantino ou o Blade Runner, o genial clássico de Ridley Scott, quando o que se dá é o contrário.
A violência em Tarantino é ilógica, paródica. Para Tarantino, não há mundo real; real para ele são as imagens de sua cabeça de cinéfilo. O cinema comercial de Hollywood transforma a vida humana em clichês ridículos e Tarantino usou os clichês para falar da vida humana. Ele mostra que somos todos clichês. Ao ser cínico e violento, ele expõe nossa ausência de compaixão. Ao adotar o debochado cinismo, ele nos faz saudosos de alguma humanidade perdida. Ao não dizer nada, ele diz tudo.
Tarantino conseguiu poluir a limpeza do mainstream com a dúvida de uma linguagem herdada de Godard e Sergio Leone. Em seus filmes, temos prazer de rir da superficialidade da violência, o que expõe e condena o problema maior da sociedade americana: a violência da superficialidade.
*Texto retirado do Caderno 2 do Estadão de terça. Ah, não vi o filme, mas o texto vale mesmo que Jabor esteja errado sobre 300. Muito boas as opinões colaterais sobre jornalistas, Tarantino, etc,
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