Uma crítica a Tropa de Elite é o tipo de texto que não precisa de apresentação do objeto para o leitor. Mais de um mês depois do vazamento do filme no mercado informal, é bem possível que boa parte do público pagante vá ao cinema somente para conferir mais uma vez o longa impressionante que viram na tela da tv, em busca de uma experiência ainda mais potente. Já há uma semana em cartaz no Rio e em São Paulo e expandindo no feriadão para outras capitais, os bons resultados de bilheteria só confirmam o fato de que a pirataria fez muito bem ao boca a boca do produto.
Por outro lado, talvez essa asserção seja injustiça com o filme, que tem méritos suficientes para ser um grande sucesso. Méritos, além dos artísticos, de comunicação. Houve muita coisa boa nessa década no cinema brasileiro, mas pouca coisa dentre esses bons lançamentos que tivesse tanto apelo. Além do fator Zezé di Camargo e Luciano e do esquemão da Globo, Tropa de Elite e Cidade de Deus provam que só mesmo a questão da violência e da segurança pública embalada no formatão policial faz o brasileiro tirar a bunda do sofá e ver filme nacional.
Não é só a similaridade de alcance de público e os tiques de edição que unem os filmes de José Padilha e Fernando Meirelles. Nos dois casos, a crítica parece reconhecer as qualidades cinematográficas, mas fica presa em questões de representação. Os longas usariam sua fluência narrativa a serviço de uma ilustração pobre e perigosa de classes sociais menos favorecidas. Enquanto a discussão de Cidade de Deus ficou mais ou menos retida na dicotomia entre a estética glauberiana da fome e a suposta cosmética publicitária da geração 02 Filmes, o debate tomou dimensões maiores com Tropa de Elite: o filme virou fascista.
Já que chegamos até aqui, vamos usar essa chave para entrar no filme de Padilha. Como se sabe, a tropa de elite do título é o Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro, grupo conhecido pela incorruptibilidade e pela truculência. Quando o resto corrupto da polícia faz merda, parceiro, quem vai limpar a sujeira é o Bope. O Capitão Nascimento (Wagner Moura, perfeito) é símbolo do batalhão. Acredita que quem está em guerra (no caso, contra o tráfico) pode passar por cima de convenções sociais em nome de um bem maior. Vale então agressão, tortura e execução sumária.
O diretor conhece e filma vários ângulos da questão – os traficantes, a classe média ongueira e hipócrita, os policiais corruptos e os justiceiros implacáveis, o Bope. Daí a acusação de fascismo: o filme tomaria partido do Batalhão. A platéia vibra com o Cap. Nascimento, promovido a herói.
No fundo, essa aproximação míope entre o Bope e o pensamento do diretor decorre de uma imprudência de Padilha e de seus roteiristas Bráulio Mantovani (Cidade de Deus) e Rodrigo Pimental (ex-Bope) no uso da narração em off, justamente do Capitão Nascimento. Da primeira à última cena, a voz de Wagner Moura está no ar, mostrando a visão do mundo do militar, suas táticas de guerra e justificações para o abuso de poder. Não raramente, a presença do “voice-over” se dedica aos detalhes mais bestas, como se explicasse aos espectadores mais burros o que está acontecendo na tela. Ao fim de duas horas de narrativa exemplar, o espectador completamente imerso nesse mundo, uma certa identificação com o cicerone é inevitável.
Padilha justifica sua escolha como uma abordagem contra-intuitiva. Em geral, o espectador espera identificar rapidamente em um filme a âncora a que vai se apegar e torcer. O diretor prefere uma aproximação mais complexa. Assim como no espetacular documentário Ônibus 174, não cola o filme num herói. No documentário, associava a narrativa do seqüestro do coletivo à história de Sandro Nascimento, o bandido que acabou morto em junho de 2000.
O método é arriscado. Em Cidade de Deus, Meirelles preferiu filtrar o crime organizado na favela usando um personagem de fora da ação, não por acaso, um fotógrafo. Padilha se atira contra um histórico de narrativas nacionais sem muita exploração da vilania para além da telenovela. No Brasil, cineastas sempre tiveram interesse em gente, mas muito pouca visão para perceber o quanto há de humano na maldade.
Independentemente da louvável ambição de Padilha, o excesso da narração em off ou o fato de que o capitão é a única pessoa que tem “vida pessoal” compromete sua vontade de fazer um filme nuançado. Chegamos perto demais de Nascimento, a um ponto em que, por mais que se consiga registrar as relações complexas e sociais a que se dedica Tropa de Elite, a visão geral se perde diante da identificação com o protagonista.
Por outro lado, e apesar do off, o capitão não é construído de maneira profunda o suficiente para que o filme se sustente como análise dessa mente doentia. Não se trata aqui da diferença entre Brasil e Estados Unidos, onde Coppola nos faz torcer por Michael Corleone e é gênio. Padilha não poderia ter usado esse exemplo no Roda Viva, porque está sempre claro que o horizonte de expectativas do diretor é outro. Ele quer ser relevante socialmente, mas diminui seu próprio alcance flertando com um quase-psicopata. Nessa indecisão, temos um Taxi Driver com engrenagens girando em falso nos dois lados da questão – o privado e o público.
Para uma crítica já com os dois pés atrás em relação a esse estilo 02, chamar Padilha de fascista é daqui pr'ali. Acusação, que, por mais que o diretor brinque com fogo deliberadamente, é falsa. Há sempre, mesmo nos momentos em que Padilha está mais próximo da chama, uma reserva de segurança que impede que tudo vire propaganda institucional da tortura e do abuso aos direitos humanos. Como bem disse o crítico Luiz Zanin Oricchio, distanciamento faria muito bem ao filme.
Pena que, diante dessa polêmica, os méritos narrativos de Padilha fiquem em segundo plano, como se fossem banais ou desimportantes. Não. O filme pode ter seus problemas, mas ainda é avis rara no que se refere a poder de envolvimento em grande escala e de qualidade. Pode não haver aqui muita novidade em relação ao que vem sendo feito desde Cidade de Deus em termos técnicos, mas nada mais desejável que a competência estável. E, claro, a excelência estrutural do roteiro, sempre um problema maior no cinema brasileiro.
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