sábado, abril 26, 2008

A Vida Esportiva

Há alguma coisa de muito similar entre um dos meus preferidos, Desafio à Corrupção, e uma jóia que vi esses dias, mais ou menos da mesma época: This Sporting Life, de Lindsay Anderson. Acho que deve ser a relação entre o talento esportivo e uma certa angústia existencial dos personagens principais.

Alguns atletas tem esse olhar triste, expressão meio trágica, que às vezes se mostra não apenas na derrota, mas também na vitória. Dia desses li numa piauí atrasada aquela seção "O Que Aprendi", por George Foreman. Emocionante e melancólico.



Richard Harris em This Sporting Life

A ficção se aproveita muito bem disso. Rapidamente, lembro do início de Jubiabá, num ringue. Também no mundo do boxe, num dos planos mais perfeitos da história do cinema, as luzes se acendem no ginásio, pouco antes da grande luta do protagonista de Rocco e Seus Irmãos. Que clima, hein?

Nem Desafio à Corrupção nem This Sporting Life passam pelo mundo do boxe, mas tem esse mesmo registro. O primeiro é sobre sinuca; o segundo sobre rúgbi. This Sporting Life tem mais a levada do boxe, com um contraste incrível entre a rudeza do protagonista Frank Machin e sua vulnerabilidade emocional. O cara é um monstro no campo - interpretação incrível de Richard Harris -, mas, entre quatro paredes, sofre de uma dor de amor brutal.

Paul Newman em Desafio à Corrupção
Sinuca pode ser um esporte mais sofisticado, que exige do atleta mais precisão e menos força, mas o diretor Robert Rossen consegue na cara de Paul Newman esse mesmo equilíbio entre a consciência do próprio talento (desvalorizado pelos outros) e os problemas psicológicos que isso causa. O personagem tem uma arrogância do bem, dos que sabem do que são capazes mas não têm a chance. Todo underdog é um pouco pretensioso, não?

segunda-feira, abril 21, 2008

Velho-novo

Sabem da velha história, não? Até porque todo mundo repete, e eu já devo ter escrito aqui umas três vezes. Em 1960 e poucos, William Wyler, mestre dos mestres do cinema clássico, anadava de saco cheio de Godard, Resnais e cia. Para mostrar sua insatisfação mandou confeccionar espirituosos cartões de visita. No verso dos cartões, duas letras: A. V. Ancienne vague.

Wyler podia fazer os filmes mais brilhantes, mas era tão tolo quanto os críticos que dispensavam sua obra como "acadêmica". Não tem coisa mais chata do que regras arbitrárias: cinema deve ser assim, cinema deve ser assado. Novo vs velho, etc, quanta besteira. Essa velha história da carochinha só me passou pela cabeça porque, em menos de 24 horas, acho que cheguei bem perto de tocar os dois extremos da dicotomia moderno vs clássico.

Nunca estreou aqui em Salvador, mas quem já viu Mal dos Trópicos sabe na hora: é cinema do futuro, daqui a 50 anos ainda vão estar falando do filme. O diretor é tailandês e tem um nome impronunciável: Apichatpong Weerasethakul. Por alguma espécie de talento nato, o sujeito é dotado do poder de filmar imagens ultra-impactantes, sem que isso passe propriamente pelo conteúdo do que ele filma. É tão natural quanto inexplicável: pode ser um bloco de gelo sendo cortado ou um close-up de um tigre, o cinema de A.W. exige olhos bem abertos.



No meio da floresta em Mal dos Trópicos

Já que ele tem o dom, não se esforça em fazer nada muito compreensível, mas também não é complicado. Entenda - o cara só não usa de artifícios tradicionais para se fazer compreender/sentir, mas funciona. Mal dos Trópicos é um filme de dois episódios. A primeira parte é um romance gay entre um soldado e um desempregado na Tailândia moderna. Não acontece muita coisa, mas acontece tudo.

Na segunda parte, os dois atores voltam em outros moldes: o soldado agora sai em busca do espírito de um tigre no meio da floresta. O outro ator é uma das formas do próprio espírito caçado. Praticamente sem diálogos, a caça mata adentro poderia se confundir com algum Herzog mais radical, mas o silêncio e o misticismo, aliada à já comentada força natural das imagens do diretor, leva o filme a um território praticamente alien, sem possibilidades de comparação. É o pesadelo mais cinematográfico da década.

***

Na Alemanha, com as cores mortas típicas de um clichê de cinema germânico, tem o frio e extremamente clássico A Vida dos Outros, vencedor do prêmio de filme estrangeiro no penúltimo Oscar. O filme é hit em Salvador no circuito de arte, vem sobrevivendo muito bem, gerando boca a boca. O motivo é, ao mesmo tempo, a aura séria que garante o respeito de quem assiste, e a acessibilidade total de um cinema sem qualquer novidade.

Nada contra; aliás, tudo a favor quando o resultado é bem-sucedido desse jeito. Para uma crítica cada vez mais fascinada com os desvios de rota propostos por "outros" cinemas, como o coreano e o romeno, A Vida Dos Outros nos lembra todos os méritos de ser filmado com elegância, ter bons atores, e um roteiro indestrutível de tão sólido.



Ulrich Mühe, ator de A Vida dos Outros, recém-falecido

A história - burocrata da Alemanha Oriental espiona dramaturgo, por quem começa a sentir simpatia - também ajuda a estebelecer essa sensação de conservadorismo. Com os dois pés bem firmes no mundo capitalista, o diretor tem o distanciamento para revisitar o período pré queda do muro de Berlim, e colocar todos os pontos nos is da História.

Há quase algo de elitista no todo, uma vez que os perseguidos são os que, numa economia de mercado, teriam todos os privilégios possíveis. São artistas, astros e estrelas, gente fora do normal, algo totalmente deslocado da idéia de massificação das ditaduras operárias. No entanto, seria tolo dizer que é A Vida dos Outros é um filme de "direita". Não é - é um filme sobre fazer o que é certo. Sem firula, o cinema do estreante Florian Henckel von Donnnersmarck parece fazer a defesa máxima da correção. Enquanto ele tiver esse domínio tão forte do que já foi feito, tudo bem. Filmão. (Dica: Mephisto, de Istvan Szabò, dá uma excelente sessão dupla).

segunda-feira, abril 14, 2008

Detalhismo

No último post, havia mencionado que o começo de minha leitura de A Estrada foi atrasada. Nada demais: num ímpeto, comprei o Ensaio Sobre a Cegueira, de Saramago, e fiquei refém do livro por uma semana. Já havia lido Memorial do Convento, e, por mais que os parágrafos imensos ainda estejam lá, o ritmo é completamentre diferente.

Memorial deve ser lido na companhia de uma picareta, para que se possa, pouco a pouco, captar a imensa poesia, beleza e tristeza do romance. Proporciona um prazer lento e difícil - dá vontade de abandonar, mas, se for possível chegar ao fim, a recompensa é gigantesca.

Ensaio Sobre a Cegueira, ao contrário, é praticamente um thriller apocalíptico, narração cinematográfica, ágil, veloz. Li em espanto constante, em algumas poucas sessões. Perdi noite inteira, até, porque não conseguia parar. É forte.



Fernando Meirelles já filmou e está montando a adaptação. A essa altura, todo mundo já viu o teaser e leu sobre o processo de construção do filme no blog do diretor, blog, aliás, que parece ter sido abandonado.

Gosto do tom esbranquiçado da fotografia, e, especialmente, de Julianne Moore como a mulher do médico. Moore andava mal das pernas, mas parece ter se reencontrado. Esse projeto é bom, e, ainda esse ano, outro filme bem bom com ela estréia por aqui: Savage Grace, de Tom Kalin.

Já vi numa pré-estréia, e, mesmo com os defeitos que o longa tem na parte final, nada consegue empanar a qualidade do todo, e principalmente, da ionterpretação genial, intensa, sofrida e vulgar de Moore. Melhor trabalho dela desde Boogie Nights, acho.

***

Finalmente vi todo Asas do Amor, adaptação de 1997 de um dos livros mais magistrais que já li, The Wings of the Dove, de Henry James. Vejamos novamente como essas reduções de complexidade nos títulos podem nos dizer bastante sobre a qualidade dos filmes. O Reparação virou "Desejo e Reparação". A pomba do livro de James, bela metáfora para uma das personagens, é substituída pelo 'Amor'. Asas do Amor... Parece título de livros de Sabrina, vendidos em banca de revista.

Falando assim, parece que o filme é um desastre, mas não é bem assim. O filme sai da lama por causa de duas qualidades inquestionáveis. Primeiro, a encenação da coisa. O diretor Iain Softley tem esmero admirável na condução de cada momento, sem pressa, construindo cada seqüência com bastante delicadeza, atores falando baixo.



Para o trabalho de Softley, é fundamental a contribuição do extraordinário fotógrafo português Eduardo Serra, que embala o sofrimento da história em ângulos sempre inteligentes, ancorado em cores esmaecidas, como o azul claro. Com direção de arte de primeira e Veneza como locação, não tem como errar. O filme tem visual arrebatador.

A outra qualidade do filme é Helena Bonham Carter, no papel principal. Infelizmente já se passaram dez anos desde esse filme e a atriz está cada vez mais presa no mundo insano e gótico de Tim Burton, que parece ter obsessão em transformá-la num cadáver em cada um de seus filmes. Em Asas do Amor, Helena nos relembra outra face: a dama de época, de fala mansa, cheia de camadas em baixo da carcaça de mulher da sociedade.

A personagem é difícil, mas ela se vira sem aparente esforço na administração de todos os sentimentos ambígüos de sua Kate Croy. É uma atuação infinitamente sutil, e isso talvez explique porque ela perdeu o Oscar para a Helen Hunt de Melhor É Impossível. Difícil chamar a atenção sem chorar e gritar um pouco. Chorar e gritar pode ser necessário num papel, claro, mas é preciso notar atuações cujos requisitos emocionais são menos chamativos.



Com esses dois fortes trunfos, porque o filme parece problemático quando sobem os créditos? Difícil explicar, mas volta a impressão de menos complexidade sugerida pelo título nacional. Mesmo sendo um bom trabalho, a impressão de aplainamento de conflitos é flagrante, ainda que tudo seja fielmente adaptado do livro, com uma ou outra exceção de trama.

Esse aplainamento se mostra justamente na diferença no volume entre o texto do livro, quase nas 60o páginas, e o tempo de projeção do filme, pouco mais que hora e meia. No original, Henry James sustenta uma trama simples por tanto tempo se baseando apenas na técnica narrativa que desenvolveu, principalmente no fim de carreira.

Escrever sempre de maneira indireta, ser ultra-detalhista na descrição de pensamentos, sensações e alguns momentos isolados, mas limando justamente o que é essencial em termos de trama. Alguns experimentos são famosos: a elipse dos primeiros anos de casamento do Retrato de Uma Senhora, o adultério completamente removido do primeiro plano assim que consumado, em A Taça de Ouro.



Iain Softley e seu roteirista, Hossein Amini, conseguem flashes do estilo James aqui e ali. Quando determinado personagem morre, em vez da cena ou da comunicação do acontecimento via diálogo, a imagem de uma pessoa próxima à morta, de luto fechado, resolve a cena de maneira inteligente.

O problema é que, no todo, apesar dos conflitos do original terem sido mantidos, não há justamente esse detalhismo que tornava a mesma história tão exasperante no livro. O filme é lento, cena a cena, mas, no conjunto, acaba rápido demais, sem que a angústia e a tristeza da situação mostrada tenha tempo de se alojar com força na cabeça do espectador.

Muito mais acertada é a adaptação feita por Jane Campion para o Portrait of a Lady, Retrato de Uma Mulher, no Brasil. Há ali um maravilhoso vagar, extremamente opressivo, que parecia afundar a pobre da Nicole Kidman no estupor de uma dose de cicuta-maior, aquela que paralisa os músculos e matou Sócrates (diferente da cicuta-aquática, a que causa convulsões e morte violenta).



Falei aqui sobre a situação mostrada, mas não descrevi. Em linhas gerais, The Wings of The Dove é centrado em Kate Croy, jovem aristocreata e pobre, amparada por uma tia rica, que deseja que a sobrinha faça um bom casamento. Kate quer ficar com Merton Densher, um jornalista sem dinheiro. Para viabilizar a união, Kate joga o namorado para cima de uma herdeira americana em viagem pela Europa, Milly Theale. Milly está morrendo, mas, assim que Kate descobre o segredo, planeja transformar o namorado em herdeiro da americana.

Parece rocambolesco, mas não é - justamente por que James recusa a atração fácil dos conflitos de melodrama. Os personagens são complexos, principalmente a protagonista: Kate divide-se em amor intenso e nobre, a amizade verdadeira pela herdeira e o oportunismo vil de seu esquema de ascensão social. Uma criação memorável.

sábado, abril 05, 2008

Se apenas meu coração fosse de pedra

Dez páginas de A Estrada, de Cormac McCarthy, são suficientes para acabar com o princípio de sono depois de uma madrugada de vigília. São suficientes também para levantar algumas idéias:

>>> Dia desses entrei em argumento com Setaro e Vítor Pamplona sobre a peça que o Oscar nos pregou recentemente. Dois filmes geniais, Onde os Fracos Não Têm Vez e Sangue Negro - qual o melhor? Difícil pensar na utilidade dessa discussão, mas já que a questão foi levantada, eu fico fácil com os Coen. O principal motivo: o filme me parece brilhante não apenas no todo, mas também quadro a quadro, fotograma a fotograma. Não há frame que não seja tenso.



Javier Bardem em Onde os Fracos Não Têm Vez

O filme dos Coen, vocês sabem, é adaptado de outro livro de McCarthy, No Country For Old Men. Não li, mas dá para perceber que os Coen fizeram a transposição de forma não apenas brilhantem mas fiel ao tom do que deve ser o original. Lendo este A Estrada, percebo a mesma coisa - o livro vai ser brilhante frase a frase, palavra a palavra, sílaba a sílaba. Cada período é violento, angustiante.

>>> O próprio texto da capa da edição de A Estrada da Alfaguara traz a idéia de apocalipse. Nunca li uma crítica de livro de McCarthy, mas esse tom apocalíptico é ultra-evidente. Foi, aliás, a coisa mais espantosa no filme dos Coen. A alma da coisa superava a desolação mais ou menos típica de autores ou cineastas que escarafuncharam a triste América Central.

(EDITADO: Óbvio que é apocalíptico, o livro se passa num futuro próximo. Antes de pegar o livro, não havia lido absolutamente nada, nada sobre a trama do romance, justamente porque queria ler, ora. [Trama? Engraçado isso] Estranho, quase nunca faço isso. Quanto à palavra apocalipse na capa, foi só isso mesmo, uma palavra, não li o texto. Enfim, chego desavisado, e percebo, algumas páginas depois que o fim de mundo não é só uma questão de tom - é de verdade mesmo. )

Posso estar errado, mas não há me parece haver qualquer resquício de melancolia, daquela que, mesmo discreta, tende à auto-comiseração (e ainda assim pode ser muito boa): dos contos de Sam Shepard ou catataus de Steinbeck a filmes como, sei lá, A Última Sessão de Cinema, somos todos tristes nessa terra de ninguém.



Cormac McCarthy

McCarthy me parece mais que isso, 100% implacável. Vejamos, no pequeno trecho que li, há a memória de um dia feliz na infância do personagem principal. Se o livro tem um momento desse e consegue ainda ser inequivocadamente árido, não há mais como ceder a qualquer tipo de artifício sentimental ou melancolia de comercial da Marlboro. A depuração me parece ser máxima, mesmo nessa apreciação prematura.

A apreciação é prematura, mas não há jeito de não escrever, de não registrar essa primeira impressão. Não tem coisa que tenha ido tão longe, não que eu conheça ou lembre. O livro vai ser adaptado para o cinema por um diretor australiano que não conheço.

Mesmo em filme, com todo o acervo de pós-faroestes feitos desde os anos 60, só mesmo o longa dos Coen me parece ser pós-pós-faroeste, com o Oeste filmado quase que como distopia, espécie de fim de mundo, coisa de depois da Terceira Guerra Mundial ou do domínio do demônio (E Onde os Fracos Não Têm Vez ainda é só o início da vinda do Anticristo). Parando para pensar, o cinema só foi mais longe que isso com Gerry, de Gus Van Sant, um dos sérios candidatos a filme da década.

(EDITADO: Tem outra coisa parecida em cinema. Possuídos, de William Friedkin. Filmão desafiador e imperfeito, deve estar perdido em alguma prateleira de terror em qualquer locadora. Ano passado, quando passou no Multiplex, ninguém entendeu nada.)

Enfim, divago. Deixa eu voltar para essas cidades fantasmas e esse tempo sem futuro. Em algum dos próximos posts eu falo porque demorei de começar a ler A Estrada, já que havia mencionado o livro em um dos posts anteriores.