Poucos dias depois da entrega do Oscar, o assunto já virou embrulho de peixe, e a única coisa que fica é a desagradável pecha a algum vencedor – para sempre, ilegítimo proprietário de um troféu que não prima pela qualidade de suas escolhas. Este ano, a carapuça parece ter caído infelizmente para Os Infiltrados, de Martin Scorsese, que levou montagem, roteiro, direção e filme. Batata – virou o prêmio de consolação para o diretor, que nunca venceu com as obras-primas pelas quais foi anteriormente indicado: Touro Indomável, A Última Tentação de Cristo & Cia.
Esta última empreitada do realizador pode não ficar no mesmo nível de trabalhos passados, mas é bom desconfiar de outro motivo para essa reação negativa: Clint Eastwood. O ex-astro de western está vivendo a segunda melhor fase de sua carreira, e, com o já clássico Menina de Ouro, bateu no Oscar o suntuoso O Aviador, tentativa anterior de Scorsese de levar a estatueta para casa.
Quem via Menina de Ouro como apenas um melodrama descarado e vulgar tomou a defesa de Scorsese. Uma parte dos amantes do filme de Eastwood passou a invocar a decadência de Scorsese como argumento contra Os Infiltrados antes mesmo de seu lançamento, e mesmo antes de tê-lo visto.
Motivo: os dois diretores voltariam a se enfrentar no Oscar deste ano, já que Clint puxou da última hora Cartas de Iwo Jima da manga. O filme é mesmo magnífico, mas a discussão é frívola. Na semana do oba oba, jornalistas escreveram automaticamente sobre como Os Infiltrados é um filme "menor" e pronto, sem parar pra vê-lo além da carreira do diretor. Também engoliram com facilidade o muito discutível mérito do filme de Eastwood, a humanização do "outro lado". Acho que nem é por aí.
Pessoalmente, acho que Cartas de Iwo Jima excelente, mas a recepção favorável parece já automática, uma vez que Eastwood parece ter preparado terreno não somente com suas duas obras anteriores (descontando aqui A Conquista da Honra – que vê a mesma batalha de Cartas... do lado americano). Ajuda também ter a face de 70 e tantos anos esculpida na pedra, ter feito uma improvável transição de ator cult para diretor artesanal e ostentar aquele ar de outsider discreto-desconfiado-cético tão típico de diretor queridos, quase sempre associados ao faroeste e o filme de ação. Clint seria um último John Huston, Samuel Fuller, Howard Hawks.
Maravilhosamente, Eastwood tem impresso em cada fotograma de seus filmes essa discrição para filmar a sensação estranha e incontornável de envelhecer e ver o passado projetado na sua frente, no que você é, no que fez. É um cinema sem muita alternativa, árido, mínimo, limpo.
Em Cartas de Iwo Jima, dá para lembrar de um episódio na vida de Ingmar Bergman, quando ficou extremamente perturbado com a opinião de um crítico sobre Sonata de Outono. O jornalista escreveu algo no estilo “O filme é Bergman sendo Bergman”, o que correspondia à opinião de que não havia nada especialmente brilhante no filme a não ser o que o diretor sempre colocava em suas obras – visão desolada do mundo e das relações humanas, dramaturgia à prova de fogo, direção de atores soberba. Com isso, Bergman não podia mais errar, mas também poderia cair num piloto automático.
Não é o que acontece com Eastwood desta vez. Ele se propôs a um grande desafio técnico, logístico, humano e político, mas o resultado final me soaria quase que como uma falha, não fosse a presença dessa nobre assinatura Clint, que já garante nível acima da maior parte dos filmes, da mesma maneira que Sonata de Outono era um grande filme.
Curiosamente, a hora em que o diretor parece atirar no próprio pé tem muito a ver com um aspecto muito bem-sucedido em Os Infiltrados. Em ambos os longas, está o interesse de enxergar os dois lados de uma disputa, seja da jogo polícia e ladrão em Boston, ou das trincheiras da segunda Guerra Mundial, mesmo que Eastwood faz isso em filmes separados.
Scorsese abre vantagem justamente pela capacidade de dominar completamente essa intenção. Leonardo DiCaprio e Matt Damon estão fingem estar em posições opostas às reais, e são confrontados não somente numa batalha espetacularmente narrada, mas num jogo de nervos insuportável. Difícil se render a essa pecha de fake que puseram no filme, quando, mesmo trabalhando num filme de ação de alto orçamento, consegue contrabandear (para usar expressão do próprio Scorsese) a confusão emocional que deixa seus personagens sempre à beira da explosão, de New York New York a Cabo do Medo. Esse perigo de explosão, aliás, dificulta qualquer relacionamento duradouro.
Resultado, temos um filme absolutamente balanceado que não somente passa longe de qualquer maniqueísmo, mas deixa no público a perturbadora sensação de não ter muito com o que se pegar. A desconfiança generalizada pode ter vindo originalmente de um filme de Hong Kong (Os Infiltrados é remake), mas casa perfeitamente com a sensação de insegurança coletiva americana. Não se trata de conservadorismo, mas de pânico – como se fôssemos Teresa Wright naquele close-up genial de Hitchcock em A Sombra de Uma Dúvida, descobrindo um monstro em um parente próximo.
Já Eastwood parte para “humanizar o lado japonês”, frase que vai piada tanto pela imprecisão quanto pela repetição por parte da crítica. Que o diretor tenha, num impulso, filmar o ponto de vista do inimigo parece uma decisão interessante, movida pela vontade de não se contentar com explicações rasas, mas ainda assim nada original. A Grande Ilusão, de Jean Renoir, no final dos anos 30, já havia tirado de letra. Gente é gente dos dois lados da trincheira. Qualquer diretor que valha a pena discutir aprendeu a lição.
Pois bem, vai Eastwood filmar os soldados sitiados na ilha de Iwo Jima, com a guerra perdida diante do poder de fogo americano. Humanos todos são, com dor de barriga, saudade de casa e vontade de fugir, mas onde estão as diferenças, o que é particular daquela cultura? Eastwood bem sabe que, praticamente no meio do século XX, o Japão ainda carrega peculiaridades que foram abandonadas séculos antes pelo Ocidente, como o direito divino ao poder. A queda do imperador Hiroíto ao fim da segunda guerra provocou desespero, suicídio.
Uma parte dos soldados da ilha tem comportamento parecido, ainda feudal, baseado na derrota honrosa e na impossibilidade de rendição. Estão opostos ao comandante Tadamichi Kuribayashi (Ken Watanabe), homem educado e culto que viveu nos Estados Unidos, de visão mais equilibrada. Watanabe nem precisa fazer muito esforço para parecer um Gregory Peck japonês. Daí o equívoco de Eastwood: os soldados mais “radicais” são estupidamente transformados em vilões, fala 100% impostada, olhos firmes e esbugalhados, estilo psicopata. Não entendem a razão do terno comandante.
Filmando o outro lado, a generosidade de Eastwood passa como falácia: ele está com os dois pés bem firmes em seu ponto de vista americano. O diretor parece não entender a natureza mundana das atitudes dos soldados “honrados”. A humanidade só está reservada àqueles que parecem mais modernizados, o estilo de vida feudal parece-lhe incompatível. Pouco razoável para um diretor deste calibre artístico. Talvez, por influência de Sergio Leone, tenha visto demais os magníficos filmes de Akira Kurosawa e se esqueceu de que sua vocação hierática tinha mais a ver com influências ocidentais, como Shakespeare e John Ford.
Ainda assim, sorte de Eastwood que talento seja item fundamental de sua assinatura. Numa abstração da localidade ou da referência política e geográfica do filme, fica a tristeza extrema de uma situação que lhe é muito cara. Mais uma vez, o beco sem saída, mas com fim lento, sofrido, e o tipo de laço estabelecido entre as pessoas nestas situações-limite. É no Japão, mas poderia ser no Álamo, batalha tantas vezes filmada, ou em Canudos. No seu colorido quase preto-e-branco, Cartas de Iwo Jima é mesmo um grande filme. Que suas qualidades não sejam apreciadas às expensas das do filme de Scorsese.
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