Memorial deve ser lido na companhia de uma picareta, para que se possa, pouco a pouco, captar a imensa poesia, beleza e tristeza do romance. Proporciona um prazer lento e difícil - dá vontade de abandonar, mas, se for possível chegar ao fim, a recompensa é gigantesca.
Ensaio Sobre a Cegueira, ao contrário, é praticamente um thriller apocalíptico, narração cinematográfica, ágil, veloz. Li em espanto constante, em algumas poucas sessões. Perdi noite inteira, até, porque não conseguia parar. É forte.
Fernando Meirelles já filmou e está montando a adaptação. A essa altura, todo mundo já viu o teaser e leu sobre o processo de construção do filme no blog do diretor, blog, aliás, que parece ter sido abandonado.
Gosto do tom esbranquiçado da fotografia, e, especialmente, de Julianne Moore como a mulher do médico. Moore andava mal das pernas, mas parece ter se reencontrado. Esse projeto é bom, e, ainda esse ano, outro filme bem bom com ela estréia por aqui: Savage Grace, de Tom Kalin.
Já vi numa pré-estréia, e, mesmo com os defeitos que o longa tem na parte final, nada consegue empanar a qualidade do todo, e principalmente, da ionterpretação genial, intensa, sofrida e vulgar de Moore. Melhor trabalho dela desde Boogie Nights, acho.
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Finalmente vi todo Asas do Amor, adaptação de 1997 de um dos livros mais magistrais que já li, The Wings of the Dove, de Henry James. Vejamos novamente como essas reduções de complexidade nos títulos podem nos dizer bastante sobre a qualidade dos filmes. O Reparação virou "Desejo e Reparação". A pomba do livro de James, bela metáfora para uma das personagens, é substituída pelo 'Amor'. Asas do Amor... Parece título de livros de Sabrina, vendidos em banca de revista.
Falando assim, parece que o filme é um desastre, mas não é bem assim. O filme sai da lama por causa de duas qualidades inquestionáveis. Primeiro, a encenação da coisa. O diretor Iain Softley tem esmero admirável na condução de cada momento, sem pressa, construindo cada seqüência com bastante delicadeza, atores falando baixo.
Para o trabalho de Softley, é fundamental a contribuição do extraordinário fotógrafo português Eduardo Serra, que embala o sofrimento da história em ângulos sempre inteligentes, ancorado em cores esmaecidas, como o azul claro. Com direção de arte de primeira e Veneza como locação, não tem como errar. O filme tem visual arrebatador.
A outra qualidade do filme é Helena Bonham Carter, no papel principal. Infelizmente já se passaram dez anos desde esse filme e a atriz está cada vez mais presa no mundo insano e gótico de Tim Burton, que parece ter obsessão em transformá-la num cadáver em cada um de seus filmes. Em Asas do Amor, Helena nos relembra outra face: a dama de época, de fala mansa, cheia de camadas em baixo da carcaça de mulher da sociedade.
A personagem é difícil, mas ela se vira sem aparente esforço na administração de todos os sentimentos ambígüos de sua Kate Croy. É uma atuação infinitamente sutil, e isso talvez explique porque ela perdeu o Oscar para a Helen Hunt de Melhor É Impossível. Difícil chamar a atenção sem chorar e gritar um pouco. Chorar e gritar pode ser necessário num papel, claro, mas é preciso notar atuações cujos requisitos emocionais são menos chamativos.
Com esses dois fortes trunfos, porque o filme parece problemático quando sobem os créditos? Difícil explicar, mas volta a impressão de menos complexidade sugerida pelo título nacional. Mesmo sendo um bom trabalho, a impressão de aplainamento de conflitos é flagrante, ainda que tudo seja fielmente adaptado do livro, com uma ou outra exceção de trama.
Esse aplainamento se mostra justamente na diferença no volume entre o texto do livro, quase nas 60o páginas, e o tempo de projeção do filme, pouco mais que hora e meia. No original, Henry James sustenta uma trama simples por tanto tempo se baseando apenas na técnica narrativa que desenvolveu, principalmente no fim de carreira.
Escrever sempre de maneira indireta, ser ultra-detalhista na descrição de pensamentos, sensações e alguns momentos isolados, mas limando justamente o que é essencial em termos de trama. Alguns experimentos são famosos: a elipse dos primeiros anos de casamento do Retrato de Uma Senhora, o adultério completamente removido do primeiro plano assim que consumado, em A Taça de Ouro.
Iain Softley e seu roteirista, Hossein Amini, conseguem flashes do estilo James aqui e ali. Quando determinado personagem morre, em vez da cena ou da comunicação do acontecimento via diálogo, a imagem de uma pessoa próxima à morta, de luto fechado, resolve a cena de maneira inteligente.
O problema é que, no todo, apesar dos conflitos do original terem sido mantidos, não há justamente esse detalhismo que tornava a mesma história tão exasperante no livro. O filme é lento, cena a cena, mas, no conjunto, acaba rápido demais, sem que a angústia e a tristeza da situação mostrada tenha tempo de se alojar com força na cabeça do espectador.
Muito mais acertada é a adaptação feita por Jane Campion para o Portrait of a Lady, Retrato de Uma Mulher, no Brasil. Há ali um maravilhoso vagar, extremamente opressivo, que parecia afundar a pobre da Nicole Kidman no estupor de uma dose de cicuta-maior, aquela que paralisa os músculos e matou Sócrates (diferente da cicuta-aquática, a que causa convulsões e morte violenta).
Falei aqui sobre a situação mostrada, mas não descrevi. Em linhas gerais, The Wings of The Dove é centrado em Kate Croy, jovem aristocreata e pobre, amparada por uma tia rica, que deseja que a sobrinha faça um bom casamento. Kate quer ficar com Merton Densher, um jornalista sem dinheiro. Para viabilizar a união, Kate joga o namorado para cima de uma herdeira americana em viagem pela Europa, Milly Theale. Milly está morrendo, mas, assim que Kate descobre o segredo, planeja transformar o namorado em herdeiro da americana.
Parece rocambolesco, mas não é - justamente por que James recusa a atração fácil dos conflitos de melodrama. Os personagens são complexos, principalmente a protagonista: Kate divide-se em amor intenso e nobre, a amizade verdadeira pela herdeira e o oportunismo vil de seu esquema de ascensão social. Uma criação memorável.
2 comentários:
Gostei muito da “picareta”. A imagem realmente é sensacional. Para ler saramago é sempre preciso um pouco de paciência e imersão. Minha tia, que é portuguesa, está a ler “As pequenas memórias” e me relatou que o livro é adorável. Descreve a vida do escritor em sua aldeia natal. Disse que a obra é emocionante e a fez lembrar de sua infância. Amália Rodrigues foi a voz de Portugal, Saramago é a pena contemporânea de Portugal, que renasceu após a Revolução dos Cravos. Desejo ler em breve essas memórias, lógico, sempre com uma picareta por perto.
oi...eu adorei sua discriçao do filme The Wings of the Dove (asas do amor)eu adoro o filme. Voce se lembra da poesia escrita no bracelete...no fim do filme ? enao lembro bem so lembro q era linda...se vc lembrar pelo menos um trexo q seja...me fale...
carolcircu@gmail.com
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