domingo, junho 04, 2006

O Japão está próximo

O mercado brasileiro de DVD ignora o cinema japonês clássico. Aurora e Versátil, as duas mais importantes distribuidoras de filmes "de arte" do país se dedicam somente ao cinema independente americano dos anos 40 e 50 e ao cinema italiano e alemão, respectivamente - o que já é grande coisa, sim. A Continental lançou uma coleção Akira Kurosawa, em três caixas. Estão disponíveis também Kwaidan - As Quatro Faces do Medo, de Masaki Kobayashi (também da Continental) e o box "Um olhar japonês", da Magnus Opus, com os filmes Bom Dia, de Yasujiro Ozu, Duplo Suicídio em Amijima, de Masahiro Shinoda e Cega Obsessão, de Yasuzo Masumura. E só.
Não é isso sobre o quero escrever. Escrevo porque consegui furar esse bloqueio, comprando duas raridades baixadas da Internet por um amigo do Orkut. Foram as melhores coisas que vi em muito tempo.
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Os críticos costumam mencionar, em relação ao cinema japonês, a existência de uma trindade de diretores, os três melhores que aquele país produziu. Akira Kurosawa, Kenji Mizoguchi e Yasujiro Ozu. Este último nasceu em 1903, morreu aos 60 anos e dirigiu 54 filmes a partir de 1927. Sua obra-prima seria Era Uma Vez em Tóquio, de 1953. No filme, um casal de idosos viaja a capital para visitar os filhos já crescidos.
Se fosse um cinema baseado no evento, na trama, no plot, Era Uma Vez em Tóquio teria 75 ao invés de seus 136 minutos. Ao contrário de Kurosawa, que se apropriou dos mitos japoneses a aprtir de uma perspectiva cinematográfica ocidentalizada, Ozu trabalha num campo alternativo a leis de progressão dramática. Sua direção é cheia de placidez, calma, contemplativa - quase o clichê da paciência oriental. A câmera está no nível do tatame, fixa, observadora.


O que a câmera de Ozu observa é a família. O Japão, em menos de 100 anos, passa do feudalismo à vanguarda industrial e tecnológica. Na família de Era Uma Vez em Tóquio há esse toque entre dois mundos, dois tempos. Os velhos, nascidos ainda no século XIX e os jovens, modernos, práticos. Todos os ritos, instituições e costumes de repente obsoletos, mas ainda praticados; a modernidade antiga. O kimono convivendo com o paletó e gravata. E há a Guerra, que levou um dos filhos.


A descrição parece boba e banal, mas o filme não é. Pouca gente captou com tanta delicadeza as relações humanas praticadas em uma família. Pouca gente conseguiu chegar nesse sentimento tão palpável do deslocamento temporal da velhice, de viver em um mundo diferente do que se conheceu quando jovem, da certeza de não pertencer a esse tempo, da consciência da finitude. Não à toa, Win Wenders se refere a Ozu como um anjo, na dedicatória de Asas do Desejo. Como disse Paul Schrader em livro nunca publicado no Brasil, Ozu é transcendental. É elevação espiritual.
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A Mulher de Areia, de Hiroshi Teshigahara, é algo completamente diferente. Apesar de não ser um filme "rápido", é cheio de tensão e erotismo. Um entomologista viaja por uma região isolada do Japão em busca de espécies novas de insetos de areia. Numa tarde quente, ele dorme no meio das dunas e perde o trem. Consegue hospedagem por uma noite, numa casa localizada num buraco, onde só se tem acesso por uma escada de corda. A dona da casa é viúva, mora sozinha e trabalha enchendo baús de areia que são vendidos pela comunidade a empresas de construção civil. Ela nunca sai do buraco. Os baús são erguidos por corda, como num poço, e a comida vem de cima.


O cara acorda e quer ir pra casa, mas não pode. Levaram a escada. Ele fica em cativeiro, obrigado a viver com a mulher e sustentá-la, porque ela não pode continuar vivendo sozinha. Ele tem que trabalhar com ela, senão a areia invade a casa e comida e água não são fornecidas. O filme é isso, essa convivência forçada - violência e sexo.
Na verdade, essa tensão é só uma parte do que Teshigahara, como cineasta, investiga. A Mulher de Areia é um filme clássico do homem absorvido pela natureza, arrebatadora. Há a luta constante e infinita contra a areia que pode soterrar a casa, a imagem do homem tentando fugir mas sempre frustrado pelos deslizamentos. Teshigahara vai explorando isso sempre filmando a pele bem de perto - o que além de realçar os elementos sexuais, mostra a areia já fazendo parte física daquelas pessoas.


Em segundo nível é que estão os conflitos entre o homem e a mulher de areia. O cientista, civilizado, cada vez mais animalesco, lutando pra manter a sanidade, entre explosões de sexo com aquela mulher tão ignorante e arquetípica de algumas lendas japonesas. A mulher associada a algum elemento da natureza, dominando o homem. Está no Kwaidan, a mulher de neve, no Trono Manchado de Sangue, de Kurosawa. O tratamento de Teshigahara é realista, no entanto. Lembra Herzog.
A Mulher de Areia é de 1964, e estava no mesmo Festival de Cannes que Deus e o Diabo na Terra do Sol. Muita gente ainda reclama do júri presidido por Fritz Lang, que deu a Palma a Os Guarda-Chuvas do Amor, de Jacques Demy. Se esse Os Guarda-Chuvas já era melhor mesmo, o filme de Glauber não teria a menor chance contra o filme de Teshigahara. Mais radical, cinematograficamente mais ambicioso, tecnicamente perfeito, A Mulher de Areia levou o Prêmio Especial do Júri. Foi indicado ao Oscar de filme estrangeiro e, absurdo dos absurdos, perde pra Ontem, Hoje e Amanhã, de Vittorio de Sica.

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