sexta-feira, junho 23, 2006

Crime e Castigo

Não se vocês sabem, mas abri um blog somente para registro dos filmes que vejo. É claro que é também um exercício de ego, mas sempre que dou uma passada de olhos pela lista percebo a validade de mantê-la no ar. Só de olhar o título, consigo reaver impressões do impacto e da força de alguns filmes.
Pois bem, revendo essa lista, não consigo tirar da cabeça a idéia de que A Sangue Frio, de Richard Brooks foi a melhor coisa que vi esse ano. Nada conseguiu me deixar tão estupefato, me pegar desse jeito. O final traz imagens pra levar pro resto da vida: as gotas de chuva escorrendo na janela e se refletindo no rosto de Robert Blake, como lágrimas; o baque surdo do enforcamento e fade-to-black, sem créditos finais.


A Sangue Frio é uma adaptação do livro clássico de Truman Capote sobre a chacina de uma família no interior do Kansas, onde o autor mistura técnicas de ficção com reportagem para criar (segundo ele) a novela de não-ficção. Capote tem um estilo agudo, seco, mas eu, pessoalmente não consigo achar esse livro a melhor coisa que o chamado novo-jornalismo produziu. Excelente, mas com certeza fica ofuscado diante dos textos de Gay Talese ou de Os Eleitos, uma senhora reportagem que também contou com elementos de ficção, escrita por Tom Wolfe.
O que Richard Brooks faz com essa matéria-prima é inventar a forma ideal de se filmar literatura russa (com a qual ele já havia lidado numa adaptação rara de Os Irmãos Karamazov): a radicalização do expressionismo realista (kammerspiel) característico de F. W. Murnau. O preto e branco cheio de extremos e a secura dramática que enche a tela de crueldade se adequam genialmente ao material. Poucas vezes a sombra no cinema realmente refletiu os abismos da alma - só nos melhores filmes noir, como Fuga ao Passado, também de influência expressionista.
Um off aparece no final, resumindo os anos de espera no corredor da morte, narrado por um ator que personifica outro escritor que não é Capote. Este off sugere uma das mais brilhantes uniões de eloquência cinematográfica com eloquência literária. A tragédia parece precisar da narração, deixando aí a impressão de que se existe um texto capaz de dar conta dessa tragédia, é o da literatura russa clássica. Capote não é Dostoievski, mas imagens de Brooks dão ao seu texto essa dimensão, em proporções fílmicas.
Escrever "imagens de Brooks" é injusto sem citar o nome do fotógrafo Conrad Hall, oscarizado por Butch Cassidy, Beleza Americana e Estrada Para Perdição. O que Brooks e Hall compõem é o melhor dos álbuns do meio-oeste americano, típicos dos anos 60, desde Os Desajustados e O Indomado. Esses filmam formam, junto com A Última Sessão de Cinema, Essa Mulher é Proibida, entre outros, a linhagem de investigação da vida em Utah, Kansas, Texas. O que aconteceu com o povo que não tem mais nada a conquistar, índios a matar, perdidos como engrenagens girando em falso nesse território estéril? Os recentes Brokeback Mountain e Três Enterros são digníssimos herdeiros desse clássicos.

Manoel vai pro inferno?

Já estão no ar as vinhetas de Páginas da Vida, nova novela de Manoel Carlos. Só ele pra me fazer assistir novela das oito: a última que tive estômago para assistir, e com todos os problemas, foi Mulheres Apaixonadas. Antes, Laços de Família, o melhor esforço do horário desde A Indomada. Isso acontece pela incrível sucessão de lixo produzida pelos nada inspirados Silvio de Abreu, Aguinaldo Silva, Gilberto Braga e até Benedito Ruy Barbosa.
Este último é de longe o melhor autor de novelas, o cara que fez Renascer e O Rei do Gado, mas nada produz de inédito - tanto Sinhá Moça quanto Cabocla são adaptações que as filhas dele fizeram de textos antigos, já filmados. Mad Maria, uma porcaria, havia sido escrita há vinte anos, e Esperança... Bem, Benedito estava tão doente que teve de abandonar o barco, mas tenho a solitária impressão de que, pelo que vi, Esperança foi uma novela subestimada. Luiz Fernando Carvalho, o diretor, fez experimentações ousadas, havia uma elaboração técnica de verdade (esqueça Jayme Monjadim, farsante). E apesar do sotaque de Ana Paula Arosio, o último capítulo começava de maneira incrível. Arosio nua, câmera a mostrando lateralmente, se levantava da cama onda havia se deitado com Reynaldo Gianechinni, um off cinematográfico inesperado explicava a separação.

Manoel Carlos

Mas voltando a Manoel Carlos e a Páginas da Vida: as impressões não são muito animadoras. É evidente a interferência da mão pesada de Monjardim na paleta do cores, em alguns ângulos, a música parece ficar mais alta. Manoel Carlos, que funcionava muito bem com Ricardo Waddington com o tom leve cotidiano, tudo muito azul e branco, bossa nova muito bem usada, agora corre o risco de ver sua novela transformada num melodramão cheio de lirismo de botequim, pseudo-artístico.
Regina Duarte também já não parece uma boa escolha pro papel habitual de Helena. Perfeita em História de Amor, a campanha do "eu tô com medo" desgastou sua imagem, ainda mais com a provável vitória de Lula no primeiro turno.
Bom, se não funcionar, o jeito é abandonar de vez a ficção televisiva, ao menos até Luiz Fernando Carvalho dirigir alguma coisa, ou quem sabe Carlos Lombardi entregar outra obra-prima revolucionária no horário das sete, como Kubanacan. Enquanto isso, tv só pra jornal e esporte.

sábado, junho 17, 2006

Um dia gatinha manhosa eu pego você

Depois de ver Meus Dois Carinhos confirmei a impressão que após Picnic, Vertigo e Sortilégio de Amor. Não há mulher como Kim Novak, a mais sexy do cinema. Não bastasse o corpão, os traços perfeitos, ela projeta uma vulnerabilidade irresistível. Sempre olha pra baixo, fala rouco, não encara nunca, insegura, cheia de problemas existenciais, como uma atriz francesa fazendo filme com Kieslowski. Talvez não. Seu tipo é exuberante demais pra isso. Ela merece diretores que registrem seu caminhar felino, manhoso, sua movimentação preguiçosa, blasè - no melhor sentido que esta palavra pode ter.
Vale ver qualquer filme com ela - mesmo Meus Dois Carinhos, que de bom só tem ela e a música, de Rodgers & Hart. Pobre Rita Hayworth, que completa um triângulo amoroso com Frank Sinatra. Hayworth só pega no P&B, e pouca gente foi tão deslumbrante quanto ela no striptease de Gilda, ou em Bonita Como Nunca. Competindo com Kim Novak, no colorido que lhe desfavorece, já sem o vigor da juventude e com alguns figurinos que demonstram sua inferioridade física, Hayworth não tem a menor chance.



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Outro tipo de beleza presente num filme que vi recentemente é a de Grace Kelly em Alta Sociedade. Menos humana, mais deusa, aristocrata, princesa. Elegante, num mundo ideal seria a esposa e Novak, a amante. Neste filme em particular ela atua direitinho, mas não tem a arrogância irritante que Katharine Hepburn imprimiu ao papel no original, Núpcias de Escândalo. Hepburn pode ser muito melhor atriz, mas isso não importa muito. Basta olhar pra Grace Kelly:


E ficar olhando.

Se bem que às vezes, quando o filme é muito ruim (Gilda?), ficar olhando pruma atriz bonita não basta. Alta Sociedade tem bons atores (embora todos sejam inferiores aos de Núpcias de Escândalo), e a música de Cole Porter. Now You Has Jazz e Little One estão entre as minhas canções preferidas de musicais.

sexta-feira, junho 16, 2006

A voz d'Ella

Hoje é aniversário de morte de Ella Fitzgerald. Morreu em 1996.
Posso escrever com segurança que a voz d'Ella é a minha preferida entre todos os cantores que já ouvi. Há uma história que Ruy Castro conta em Saudades do Século XX que não me lembro direito, mas é mais ou menos assim: um crítico preferia Billie Holliday a Ella Fitzgerald porque pensava que, quando ambas cantavam sobre a ausência do homem amado, Billie parecia abandonada para sempre enquanto o companheiro de Ella havia somente ido à padaria. Isso porque enquanto Billie era famosa por sua vida desregrada e sua voz sofrida, Ella era "correta" e era tecnicamente perfeita. Como se ser perfeita fosse demérito (!), como se a perfeição fosse incapaz de emocionar (!).
Na verdade, na sua habilidade, Ella conseguia comover interpretando desde a mundanidade de Love For Sale até a sofisticação de You're the Top - isso só pra ficar só no universo de Cole Porter. Por isso, mesmo maravilhosa, Billie Holiday foi preterida em seu favor para o projeto da Verve de gravação dos songbooks dos grande compositores americanos, como os irmãos Gershwin, Rodgers & Hart e Jerome Kern. O resultado é genial.

segunda-feira, junho 12, 2006

YES & NO

YES






NO



Na verdade nada contra o All Star por ele mesmo, nem a favor do Kichute. Não sei qual é mais confortável, nunca usei All Star e Kichute só há muito tempo atrás. O que quero fazer aqui é usar esse julgamento sem critério justamente para falar mal dessa praga de julgamentos sem critérios de música, filmes, etc, cujo símbolo máximo é esse tênis, o All Star.
Aliás, padrão de julgamento tem sim: o ser ou não ser pop. Não à toa, essa palavra de três letras anda pipocando no jornalismo cultural brasileiro e no pseudo jornalismo cultural brasileiro mais ainda. O grau de apropriação (diluição, na maioria das vezes), o nível de referência a outros signos, ou seja, o quanto uma obra é legal, o quanto ela é cool, é o que hoje anda determinando o que é bom ou ruim.
Não condeno aqui obras que por acaso caiam dentro dessa guarda-chuva all star. Vamos pensar, discutir, ver se ser pop realmente diz alguma coisa sobre qualidade. Pop pode ser muito bom ou muito ruim. Parece óbvio, mas dá uma lida na SET. Se for pra discutir os próprios padrões de avaliação críticos, melhor ainda.

quinta-feira, junho 08, 2006

Poe + Teshigahara

Só para registro:
Estou lendo em ritmo muito irregular as Histórias Extraordinárias de Edgar Allan Poe, edição capa dura da Abril, a mais completa. Depois de ter me decepcionado com as chatas aventuras de Auguste Dupin e ter me maravilhado com quase todos os outros contos (Berenice, principalmente), chego a O Poço e o Pêndulo.
Não quero conspurcar o conto com um comentário ligeiro e irrefletido, mas mesmo eu que leio muito pouco o formato conto consigo perceber porque muita gente diz que este é o melhor de todos, por todo o sempre.
Se o menciono aqui é por causa de uma pulga na orelha que não me deixa em paz: estou convencido de uma sintonia entre o conto e o filme A Mulher de Areia, de Hiroshi Teshigahara, tanto que no meu filme interior O Poço e o Pêndulo teria um ator japonês e seria em P&B. Deve ser porque são dois ensaios sobre confinamento e fuga quimérica, com os algozes no alto do poço / buraco com o controle absoluto da situação. No fundo, são duas narrativas que passam pela questão do sadismo em embalagem terror psicológico, seja lá o que isso for - mas eu sei que tanto o conto quanto o filme se encaixam perfeitamente no rótulo.
Tem mais coisa em comum, não sei o que é.

domingo, junho 04, 2006

O Japão está próximo

O mercado brasileiro de DVD ignora o cinema japonês clássico. Aurora e Versátil, as duas mais importantes distribuidoras de filmes "de arte" do país se dedicam somente ao cinema independente americano dos anos 40 e 50 e ao cinema italiano e alemão, respectivamente - o que já é grande coisa, sim. A Continental lançou uma coleção Akira Kurosawa, em três caixas. Estão disponíveis também Kwaidan - As Quatro Faces do Medo, de Masaki Kobayashi (também da Continental) e o box "Um olhar japonês", da Magnus Opus, com os filmes Bom Dia, de Yasujiro Ozu, Duplo Suicídio em Amijima, de Masahiro Shinoda e Cega Obsessão, de Yasuzo Masumura. E só.
Não é isso sobre o quero escrever. Escrevo porque consegui furar esse bloqueio, comprando duas raridades baixadas da Internet por um amigo do Orkut. Foram as melhores coisas que vi em muito tempo.
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Os críticos costumam mencionar, em relação ao cinema japonês, a existência de uma trindade de diretores, os três melhores que aquele país produziu. Akira Kurosawa, Kenji Mizoguchi e Yasujiro Ozu. Este último nasceu em 1903, morreu aos 60 anos e dirigiu 54 filmes a partir de 1927. Sua obra-prima seria Era Uma Vez em Tóquio, de 1953. No filme, um casal de idosos viaja a capital para visitar os filhos já crescidos.
Se fosse um cinema baseado no evento, na trama, no plot, Era Uma Vez em Tóquio teria 75 ao invés de seus 136 minutos. Ao contrário de Kurosawa, que se apropriou dos mitos japoneses a aprtir de uma perspectiva cinematográfica ocidentalizada, Ozu trabalha num campo alternativo a leis de progressão dramática. Sua direção é cheia de placidez, calma, contemplativa - quase o clichê da paciência oriental. A câmera está no nível do tatame, fixa, observadora.


O que a câmera de Ozu observa é a família. O Japão, em menos de 100 anos, passa do feudalismo à vanguarda industrial e tecnológica. Na família de Era Uma Vez em Tóquio há esse toque entre dois mundos, dois tempos. Os velhos, nascidos ainda no século XIX e os jovens, modernos, práticos. Todos os ritos, instituições e costumes de repente obsoletos, mas ainda praticados; a modernidade antiga. O kimono convivendo com o paletó e gravata. E há a Guerra, que levou um dos filhos.


A descrição parece boba e banal, mas o filme não é. Pouca gente captou com tanta delicadeza as relações humanas praticadas em uma família. Pouca gente conseguiu chegar nesse sentimento tão palpável do deslocamento temporal da velhice, de viver em um mundo diferente do que se conheceu quando jovem, da certeza de não pertencer a esse tempo, da consciência da finitude. Não à toa, Win Wenders se refere a Ozu como um anjo, na dedicatória de Asas do Desejo. Como disse Paul Schrader em livro nunca publicado no Brasil, Ozu é transcendental. É elevação espiritual.
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A Mulher de Areia, de Hiroshi Teshigahara, é algo completamente diferente. Apesar de não ser um filme "rápido", é cheio de tensão e erotismo. Um entomologista viaja por uma região isolada do Japão em busca de espécies novas de insetos de areia. Numa tarde quente, ele dorme no meio das dunas e perde o trem. Consegue hospedagem por uma noite, numa casa localizada num buraco, onde só se tem acesso por uma escada de corda. A dona da casa é viúva, mora sozinha e trabalha enchendo baús de areia que são vendidos pela comunidade a empresas de construção civil. Ela nunca sai do buraco. Os baús são erguidos por corda, como num poço, e a comida vem de cima.


O cara acorda e quer ir pra casa, mas não pode. Levaram a escada. Ele fica em cativeiro, obrigado a viver com a mulher e sustentá-la, porque ela não pode continuar vivendo sozinha. Ele tem que trabalhar com ela, senão a areia invade a casa e comida e água não são fornecidas. O filme é isso, essa convivência forçada - violência e sexo.
Na verdade, essa tensão é só uma parte do que Teshigahara, como cineasta, investiga. A Mulher de Areia é um filme clássico do homem absorvido pela natureza, arrebatadora. Há a luta constante e infinita contra a areia que pode soterrar a casa, a imagem do homem tentando fugir mas sempre frustrado pelos deslizamentos. Teshigahara vai explorando isso sempre filmando a pele bem de perto - o que além de realçar os elementos sexuais, mostra a areia já fazendo parte física daquelas pessoas.


Em segundo nível é que estão os conflitos entre o homem e a mulher de areia. O cientista, civilizado, cada vez mais animalesco, lutando pra manter a sanidade, entre explosões de sexo com aquela mulher tão ignorante e arquetípica de algumas lendas japonesas. A mulher associada a algum elemento da natureza, dominando o homem. Está no Kwaidan, a mulher de neve, no Trono Manchado de Sangue, de Kurosawa. O tratamento de Teshigahara é realista, no entanto. Lembra Herzog.
A Mulher de Areia é de 1964, e estava no mesmo Festival de Cannes que Deus e o Diabo na Terra do Sol. Muita gente ainda reclama do júri presidido por Fritz Lang, que deu a Palma a Os Guarda-Chuvas do Amor, de Jacques Demy. Se esse Os Guarda-Chuvas já era melhor mesmo, o filme de Glauber não teria a menor chance contra o filme de Teshigahara. Mais radical, cinematograficamente mais ambicioso, tecnicamente perfeito, A Mulher de Areia levou o Prêmio Especial do Júri. Foi indicado ao Oscar de filme estrangeiro e, absurdo dos absurdos, perde pra Ontem, Hoje e Amanhã, de Vittorio de Sica.

sábado, junho 03, 2006

Bom Dia Pra Nascer

Este é o primeiro post deste blog. Não sei como começar. Não tenho motivo imediato. Então transcrevo aqui dois excelentes primeiros parágrafos. O primeiro é o de Lolita, de Vladimir Nabokov, pela tradução de Brenno Silveira:
Lolita, luz de minha vida, fogo de meu lombo. meu pecado, minha alma. Lolita: a ponta da língua fazendo uma viagem de três passos pelo céu da boca, a fim de bater de leve, no terceiro, de encontro aos dentes. LO. LI.TA.
Esse segundo primeiro parágrafo é de Raymond Chandler. A Irmãzinha. Tradução de Caroline Chang.
Na porta de vidro rugoso está gravado com tinta preta descascada: Philip Marlowe... Investigações. É uma porta bastante surrada ao final de um corredor bastante surrado no tipo de prédio que era novo lá pelo ano que o banheiro inteiramente de azulejos se tornou a base da civilização. A porta está trancada, mas ao lado dela há outra, com a mesma inscrição, que não está surrada. Entre - não há ninguém aqui além de mim e uma mosca varejeira. Mas não entre se você for de Manhattan, Kansas.
Divirtam-se.