quinta-feira, julho 24, 2008

Franca violência

Eu amo os filmes de John Ford, que podem ser mesmo os melhores faroestes já produzidos. No entanto, não são os mais perturbadores. O autor do desconcerto é Anthony Mann. Para reduzir essa comparação ao básico. A violência fordiana tem seu impacto justamente no contraponto de uma felicidade passada ou possível, a memória de um lar ou o desejo de sua reconstrução. Anthony Mann, vindo do noir, criou um inverso completamente à prova do conceito de família, ao menos em sua face mais redentora. A relação entre pais e filhos na sua obra não difere em nada do jogo de traições dos bandidos. Bandidos, principalmente, porque mocinhos não há, muito menos o sentimento de nobreza que impregna os protagonistas fordianos, derrotados ou vencedores.

O pessimismo de seus faroestes sombrios e complexos me impressionou mais uma vez esta noite, após sessão privada (no meu quarto, evidentemente) de O Preço de Um Homem, um dos sete filmes que ele rodou com James Stewart. O ator, com voz grave difícil de reconhecer, é Howard Kemp, um caçador de recompensas no encalço do assassino Ben Vandergoat (Robert Ryan, perfeito como sempre), por quem a polícia de Abilene, Kansas oferece US$ 5 mil, vivo ou morto.

Para pegar Ben, Kemp vai contar com a ajuda de dois andarilhos, que acabam virando seus sócios: Roy e Jesse. Ben é capturado logo no início do filme, e passa o resto da projeção tentando jogar os três sócios uns contra os outros, incitando a ganância pela recompensa sem divisões. Com a ajuda da namorada (Janet Leigh, de Psicose, versátil), usa essa tática para tentar escapar.



James Stewart, falso herói

Estabelecido esse plot, uma coisa a notar. Apesar de ser normalmente incluído no pacote de faroestes psicológicos, The Naked Spur, como a obra de Mann em geral, não usa metáfora freudianas ou simbolismos psicanalíticos para dizer o que quer. Não me lembro qual crítico de Cahiers disse isso, acho que foi Godard (minha leitura é de segunda mão), mas o cinema de Mann é do exterior: o homem é revelado pelo que está à sua volta. (Por oposição, Nicholas Ray filma o homem pelo filtro de seus conflitos internos). Enfim, não tem firula, é tudo direto e franco.

Três exemplos de diálogos (reproduzidos de memória, mesmo que recente, embaralhados pelo áudio em inglês e as legendas em espanhol) que ilustram essa franqueza:

a) início do filme, o bandido Ben capturado. Howard Kemp o ameaça com um tiro, caso ele faça qualquer gracinha:

- Uma bala aqui ou a forca em Abilene, você que decide.
- Escolher como morrer não é importante, Howie, e sim escolher como viver.

A maior gracinha já está feita. O bandido desestabiliza nossa âncora do filme, escancarando o fato de que ele é um calhorda, um urubu, sem nenhum motivo pessoal para caçar o homem que está sob seu domínio.

b) Após uma tentativa de fuga, um dos sócios decide matar o bandido, já que não faz diferença na hora da recompensa. Howard decide desatar os punhos e colocar uma arma na cintura de Ben, para haver igualdade de chances. Ato honesto? Não mesmo.

- Howard, minhas mãos estão doídas, e você sabe que eu não tenho chances. Não tente fazer um assassinato a sangue frio parecer outra coisa, porque você não vai conseguir.

c) Todo mundo à beira do rio. Se os sócios atravessarem a correnteza com o corpo do bandido atado, ele pode morrer. Roy insiste, Howard se nega a correr o risco. O filme, habilmente, renega novamente a nobreza do herói na fala do sócio:

- Você está aqui pelo mesmo motivo que eu. Ele não é um homem, é um saco de dinheiro!

Fiz questão de citar esses diálogos porque esse me pareceu ser um dos faroestes mais bem escritos, perfeito e complexo em sua simplicidade, sem paradoxos. Deixar claro o que as coisas são de fato por meio dos diálogos é tática perigosa, pode fazer o filme tender ao didatismo, mas Mann e seus dois roteiristas evitam as metáforas. O resultado é limpo.

A clareza não está apenas no texto falado, mas nas situações filmadas. Dentre os diretores que conheço, Mann é claramente o mais violento. Vale lembrar que dirigiu a cena mais brutal da era Código Hays, na obra-prima Um Certo Capitão Lockhart, em que o mesmo James Stewart toma um tiro na mão, a sangue frio e imobilizado - tortura explícita, enfim.

Em O Preço de Um Homem, ele pode não ter atingido a mesma dimensão dramática, mas há alguns momentos de violência impensáveis, secos e desglamourizados. Citar a batalha com os índios pé preto e a morte pelas costas do chefe seria suficiente, mas ainda nesta cena vemos James Stewart, ele mesmo, o mocinho de Capra, matar um índio com pedradas na cabeça, esmagando seu crânio - imagem à distância, mas sem cortes.



O magnífico Robert Ryan, na pele do bandido Ben

Já perto do final, o cruel e galante bandido Ben mata um personagem querido sem quaisquer pruridos, o que causa surpresa. Mann não foi tão longe quanto Stevens na morte de Elisha Cook Jr, em Shane, em que bandido e morto estão no mesmo quadro, mas chega perto. Ben aponta a arma cotidianamente como sempre faz, e dispara contra um homem desarmado, sem qualquer chance de defesa, no peito. Talvez essa diferença entre Mann e Stevens seja mais reveladora que parece: enquanto o último prepara o público para a brutalidade da coisa (Jack Palance veste as luvas pretas, lembram?), Mann não faz alarde da coisa, e pega o público no contrapé. Morreu, morreu.

Se há alguma nota negativa neste filme, mais uma vez é a cena final, final feliz claramente imposto pelo estúdio, mesmo que não pareça muito absurdo. Assim como em Um Certo Capitão Lockhart, o happy end é passável, mas não tira o gosto de fel que as duas horas anteriores deixaram na boca. Filmão, e pena que não saiu em DVD.

Um comentário:

Marcelo V. disse...

Belíssimo filme.