Falando de Deus no post anterior, deu uma bruta vontade de ouvir a trilha de Magnólia, que ganhei de aniversário em 2000, ou 2001. No encarte do CD, PTA diz que escreveu seu roteiro a partir das letras de Aimee Mann, e aponta como alguns versos viraram diálogos inteiros do filme. A sugestão do diretor é essa: fazer com que a trilha lembre do longa, e o longa da trilha.
Dois anos depois de ter visto Magnólia pela última vez, acho que tenho o filme no máximo nível de estima desde que vi pela primeira vez. A trajetória do longa na cabeça é mais ou menos essa, a seguir.
Fase 1: choque e estarrecimento. Filme proporciona um mergulho de três horas nas guerras interiores de personagens cheios de vida. No mesmo ano de Magnólia, disseram que Beleza Americana era um filme profundo, porque o drama do personagem de Kevin Spacey era universal e existiam muitas famílias iguais àquela. É justamente essa universalidade de situações que enfraquece o filme, tornando tudo genérico e superficial. Magnólia, ao contrário, investe pesado em personagens específicos, um monte deles, e mostra que identificação não se consegue apenas com personagens iguais ao espectador. Eles podem ser diferentes, desde que haja força em seus dramas para que haja comoção. Parece óbvio, mas não há nada mais recorrente do que a idéia da identificação com o "homem comum", clichê cansado e surrado de metade do cinema americano dito independente. Divago, mas é esse impacto que Magnólia tem na primeira vez: puro e simples, um show de humanidade.
Fase 2: Linguagem. Durante a primeira vista, isso chama atenção, mas uma segunda sessão torna mais evidente a imensa sofisticação e o domínio de cinema do garoto PTA, na época, com apenas 29 anos. Há a introdução com um curta maravilhoso sobre coincidências, o clipe que apresenta todas as histórias logo em seguida, para desembocar no desenvolvimento de cada um dos contos paralelamente. Nesse miolo, a coisa mais atordoante são os planos-seqüência que acentuam uma impressão de que aquela angústia toda nunca vai acabar. Sensação ao ver Tom Cruise andando naqueles corredores falando no celular sem qualquer refresco é parecida, claro, com o inferno de Ray Liotta em Os Bons Companheiros, de Scorsese. Mesmo quando não usa os travellings, PTA alonga a angústia o tempo todo em situações que não levam a história a lugar nenhum, mas arrastam o espectador pro inferno que todo mundo está vivendo, mesmo assim. Exemplo: a magnífica cena da farmácia, com aquela frase dita por Julianne Moore que chega a dar frio na espinha. "Você já sentiu a morte na sua casa?".
Fase 3: Desconfiança. Já que quando a esmola é demais, o santo desconfia, provável reação na terceira sessão a tanto arrojo cinematográfico é a velha ilusão de que o objetivo de qualquer diretor jovem não é fazer um filme com alma, mas impressionar espectadores com seus talentos de prestidigitação. Por isso mesmo, as seqüências mais ousadas do filme, tão brilhantes, podem parecer problemáticas para os mais céticos. A canção na tv e a chuva, já perto do fim, tem todos os ingredientes para favorecer a acusação de exibicionismo. Teoricamente, bem teoricamente mesmo, são cenas inúteis, que não avançam a história; ao contrário, a deixam parada para uma exibição aparentemente gratuita de fogos de artifício cinematográficos. Discordo completamente disto, porque acho que essa visão de utilidade só é possível exigindo do longa uma estrutura que pertence aos manuais de roteiro, e não à lógica do próprio filme. Pareyson ajuda a entender a diferença.
Fase 4: Consagração e além. A idéia do pequeno gênio pretensioso cai por terra à luz dos seus filmes seguintes, sem que PTA tenha tirado um pingo de força do acelerador. Embriagado de Amor parece querer ser apenas um divertimento, e de certa forma também é, sem que o diretor deixe de, mais uma vez e impressionar. Não de forma gratuita: seu filme é o melhor pesadelo do cinema desde Depois de Horas, de Scorsese. No final do ano passado, a pá de cal em todos os detratores, Sangue Negro, mais uma prova de ambição e arrojo que não servem para mascarar falta de idéias. Ao contrário, o virtuosismo não gira em falso, mas ajuda a PTA se expressar. Não apenas isso, não é questão de forma-fundo: suas idéias só podem ser filmadas desse jeito, excessivo e exaustivo.
***
Mencionei a relação Deus-Magnólia porque ela existe, e é forte. Pablo Villaça fez uma dissecação das mensagens subliminares plantadas pelo diretor, que cita de forma oblíqua o Êxodo 8:2 em diversas passagens do filme, e espalha esses dois números em várias cenas. Acho isso tão interessante quanto irrelevante, porque, mesmo sem o conhecimento desses truques, é possível perceber a presença constante do tema paternidade em Magnólia. Se eu tivesse que definir Magnólia como um "filme sobre", a maneira menos redutora seria dizer que é um filme sobre pais e filhos e as complexidades dessa reação. Como não chegar a Deus depois daquela chuva redentora?
2 comentários:
Creio que você escreveu com grande lucidez e coerência sobre os atributos de Magnólia, do grande Paul Thomas Anderson (cujo Sangue negro é, realmente, um dos grandes filmes do cinema contemporâneo de impacto somente correspondente às obras do pretérito assinadas por grandes diretores). Desde quando vi Magnólia, este filme me surpreendeu e gostei imensamente do que vi. A crítica, sempre arrogante e rabujenta, chamou Anderson de um sub-Altman, mas isso não tem importância, pois, como escreveu Harold Bloom, em seu fundamental A angústia da influência, esta é uma coisa normal entre os artistas, sejam eles cineastas, literatos, pintores, dramaturgos, etc. O que existe, na verdade, são os diálogos textuais, a considerar que o artista é um leitor. E, como tal, recebe influências diversas. Creio também já lhe ter dito, ou ter escrito em blogs da vida e colunas da internet, do meu fastio do dito cinema da contemporaneidade, mas sempre se encontra uma agulha no palheiro. E Paul Thomas Anderson é uma agulha de ouro. Estou a fazer uma oficina fora da Facom sobre o cinema da atualidade e incluí Magnólia no que se chama Oito faces do cinema contemporâneo. É um filme polifônico, como os de Altman, aliás Anderson gosta muito dessa polifonia altmaniana que parece ter se libertado em Sangue negro, quando atinge a maturidade, a cristalização de um artista em momento de glória.
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