quinta-feira, julho 31, 2008

América

Ando numa fase de fascinação com filmes sobre os Estados Unidos, coisa que depois explico (já explicando: deve ser a proximidade das eleições). De todos as obras que o cinema produziu sobre o país, acho que a mais impactante, mais que qualquer faroeste, é o Nashville, de Altman - filme que tem mais da metade da projeção cantada, com música country. Não é apenas pela facilidade icônica trazida pelo country que os EUA se revelam em Nashville.

Na cena final, ao som de It Don't Worry Me, a uma síntese da busca pela liberdade mesmo no cotidiano (a música), e a celebração dos valores mais tradicionais da América no rosto das pessoas: pais e filhos, enfim, a família. Como uma obra desse quilate não existe em dvd eu não sei explicar, mas segue vídeo da música coberta com outras imagens, sem spoilers. Filme que me comove profundamente.

terça-feira, julho 29, 2008

Mais Batman

O backlash já chegou. JP Coutinho, ótimo, ótimo, chuta o balde na Folha de hoje. Já que exageraram de um lado, deixa ele exagerar de outro. Só para assinantes.

EDIT: Eu não tinha lido, mas dois dos melhores críticos do país, Inácio Araújo e Pedro Butcher, também não gostaram. (Eu gosto do filme, mas é preciso equilíbrio. Por isso a lembrança).

EDIT 2: Link para Inácio.

segunda-feira, julho 28, 2008

Devagar com o andor

Se o atraso de três semanas tiver servido para alguma coisa, ver o Batman agora foi útil porque me sintoniza melhor com o backlash que está por vir, tenho certeza. Por quanto tempo esse filme vai conseguir manter o status de salvação da lavoura, filme da década e melhor de todos os tempos? Bom, a essa altura a Warner já terá arrecadado mais do que planejava, mas tenho sérias dúvidas em relação à durabilidade dos rótulos de obra-prima largados a torto e a direito por aí.

Não que eu deteste o filme, ou ache que ele é ruim, ou mesmo médio. É ótimo; só não justifica tamanho alarde. O amigo Adolfo Gomes afirma que o novo Batman acaba de vez com a idéia de filme de arte vs Hollywood. Assim como na era de estúdios, o melhor cinema do mundo volta a ser feito dentro das fronteiras californianas, e com muito dinheiro.

Eu concordo com a idéia geral, uma vez que muita coisa cara tem aparecido nos cinemas com excelente qualidade. Não é mais o caso de se esperar o esforço solitário de um James Cameron em seus extraordinários Terminators, a cada cinco, seis anos. Mas, enfim, mas por que esperar tanto para declarar essa mudança de ares?

Eu tenho uma teoria sobre isso. Nessa última década, ou desde o Missão: Impossível, de Brian de Palma, para usar o mesmo marco de Adolfo, a qualidade dos blockbusters evoluiu e foi reconhecida, mas a fachada desses filmes caros nunca foi tão... séria.

Vejamos três exemplos de sucessos altamente rentáveis: King Kong, O Senhor dos Anéis e Homem-Aranha 2. A trilogia - cinema excepcional, eu diria - raspou as bilheterias mundo afora e ainda ganhou o prestígio industrial do recorde de todos os tempos nos prêmios Oscar, mas seu template fantasia ajudou a minar o respeito com o qual o filme deveria ter se mantido, até hoje.

King Kong e Homem-Aranha 2, ainda melhores, geniais até, nem chegaram tão longe, porque nunca tiveram a ambição obsessiva de conquistar o mundo adulto, como quer Batman. E olha que nem mencionei a Pixar, estúdio que cravou coisas como Procurando Nemo, Os Incríveis e Ratatouille, e tem um grande exemplo de sofisticação ainda em cartaz: Wall-E.

O fato de que nenhum desses filmes foi visto como o "ponto de virada" só pode ser explicado por uma questão de "demographics". Há ainda, a idéia de que a infantilização do cinema americano pós-Star Wars é a grande culpada por uma suposta decadência da qualidade.

Claro que o público adulto ficou em segundo plano, mas é isso é culpa de filmes como Caçadores da Arca Perdida, De Volta Para o Futuro ou E.T.? Eu acho que não. Mas se este pensamento existir no meio da crítica, parece quase óbvio que a qualidade de um blockbuster só seja reconhecida se tal filme for "adulto".



Pois bem. O flerte de The Dark Knight com o mundo adulto foi amplificado de uma maneira mórbida, com a morte de Heath Ledger, o Coringa. Não que o diretor tenha qualquer culpa sobre isso, mas não há como negar que ele saiu beneficiado disso, ainda mais quando Ledger está tão chamativo (não exatamente melhor do que o cowboy de Brokeback Mountain, apenas mais "visual").

Fora isso, o que há de tão profundo e complexo na mente de Christopher Nolan? Eu acho que o filme não é um pires, mas de certa forma a aura de entretenimento adulto vem da forma como ele se apropria do gênero que está no topo hoje em dia nos EUA, na liderança de qualidade: o policial.

O Cavaleiro das Trevas sintetiza razoavelmente a nova brutalidade evidenciada em coisas como Os Infiltrados, Munique, e especialmente, Colateral e Miami Vice, de Michael Mann. São todas obras urbanas e essencialmente noturnas, filmadas com um realismo quase que próximo às imagens de telejornal. Personagens passam longe do tira e do bandido fdp, mas se misturam, evitando o maniqueísmo. Quando alguém morre metralhado, não é apenas um tronco voando na tela, mas morte mesmo, com todas as implicações que normalmente são poupadas às platéias.

Nessa década, são todos filhos de Fogo Contra Fogo, de 95, esse sim um filme que merece ser chamado de obra-prima, também dirigido por Michael Mann. O novo Batman não nega a influência, desde a abertura, um tenso assalto que já denuncia a paleta de azul que vem nas duas horas e meia a seguir. Duração épica, aliás, padrão reestabelecido por Fogo Contra Fogo e seguido à risca pelos influenciados.

A outra fonte da embalagem adulta do novo Batman é um certo tom de tensão política trazido pela presença anárquica do Coringa. A aposta distraída de Nolan é registrar uma instabilidade americana, já que os cidadãos são ameaçados por um vilão demente e sem lei ou qualquer medo das conseqüências, enfim, um terrorista. Há algum diálogo sobre isso no filme, mas o resultado é aplainado: Nolan acredita na humanidade, e há espaço para a esperança.

O problema começa (menos do filme em si, mais do filme tido como obra-prima - esse texto é mais sobre a recepção ao Batman) justamente na comparação com as outras obras negligenciadas para que esse Batman vá parar no topo do Imdb. Há bastante eficiência narrativa, mesmo que as cenas de ação sejam genéricas, mas isso aqui não tem a força cênica de... Michael Mann. Kléber Mendonça apontou certo: o filme só tem um tipo de cena de ação, a corrida contra o relógio. Fora desse corre-corre, tudo ok, bom, até, com picos de força com Coringa em cena, claro. Outra coisa: filme é limpinho em 35mm, com quatro cenas rodadas para Imax. Colateral e Miami Vice foram rodados em digital, com granulação realista bem mais a ver com uma obra que se quer pessimista.

A série Bourne, especialmente no último episódio, foi muito mais longe em termos de instabilidade e fragilidade humana. A cena na estação de trem, em que o jornalista é assassinado, vale por todo o terrorismo do Coringa, mais espalhafotoso que perigoso, sempre fora do quadro. Pelo menos a namoradinha vai pro espaço, mas ela não é gente, é cinema.

Enfim, nesses dois aspectos o filme me parece ter um espaço ainda a preencher para merecer suas cinco estrelas. A tal apropriação, tanto cinematográfica quanto temática, não é essa Brastemp toda. Não acho tão adulto assim, e isso é um problema quando se tem tal pretensão. Para resultados mais satisfatórios, e injustiçados, ver Hulk, de Ang Lee.

sábado, julho 26, 2008

Corpo e velocidade

Mulheres Apaixonadas, de Ken Russell, honra D.H. Lawrence de uma maneira formidável. Produzido na Inglaterra em 1970, é até hoje um dos filmes a registrar com mais franqueza gente que age seguindo os instintos do corpo.

Há uma qualidade nas imagens que me lembra o adjetivo utilizado para definir alguns filmes de Visconti, especialmente os primeiros: obras antropocêntricas, ou seja, o diretor atira a câmera contra o corpo dos atores.

Apesar de não deixar de ser um filme de época inglês, o filme quebrou alguns tabus. Foi o primeiro "mainstream" com cenas de nu frontal masculino: a célebre e exaustiva luta de Alan Bates e Oliver Reed e a fuga de Bates na bosque, sangrando, após ser ferido na cabeça pela ex-namorada. Glenda Jackson também foi a primeira atriz a vencer um Oscar por uma atuação que conteve cenas de nudez. Não apenas nudez, mas sexo, sem nenhuma glamourização.


Jeannie Lindon e Alan Bates
Por outro lado, Russell mina o impacto que essa história tinha no livro, pulando rapidamente entre os fatos do plot. Parece querer botar o livro todo na tela, e acaba comprimindo um catatau em pequenos flashes, apressados. Cenas fortes como as do afogamento, da morte do pai, e principalmente o final sofrem muito com esse corre-corre.

Ou fizesse um filme de 3h30 para captar a lentidão narrativa de Lawrence, sua principal arma para contrapôr razão e sensibilidade (o instinto força o rompimento contra um cenário de tédio), ou fizesse algo mais conciso e focado, cortando eventos do livro para lhe ser mais fiel.

quinta-feira, julho 24, 2008

Franca violência

Eu amo os filmes de John Ford, que podem ser mesmo os melhores faroestes já produzidos. No entanto, não são os mais perturbadores. O autor do desconcerto é Anthony Mann. Para reduzir essa comparação ao básico. A violência fordiana tem seu impacto justamente no contraponto de uma felicidade passada ou possível, a memória de um lar ou o desejo de sua reconstrução. Anthony Mann, vindo do noir, criou um inverso completamente à prova do conceito de família, ao menos em sua face mais redentora. A relação entre pais e filhos na sua obra não difere em nada do jogo de traições dos bandidos. Bandidos, principalmente, porque mocinhos não há, muito menos o sentimento de nobreza que impregna os protagonistas fordianos, derrotados ou vencedores.

O pessimismo de seus faroestes sombrios e complexos me impressionou mais uma vez esta noite, após sessão privada (no meu quarto, evidentemente) de O Preço de Um Homem, um dos sete filmes que ele rodou com James Stewart. O ator, com voz grave difícil de reconhecer, é Howard Kemp, um caçador de recompensas no encalço do assassino Ben Vandergoat (Robert Ryan, perfeito como sempre), por quem a polícia de Abilene, Kansas oferece US$ 5 mil, vivo ou morto.

Para pegar Ben, Kemp vai contar com a ajuda de dois andarilhos, que acabam virando seus sócios: Roy e Jesse. Ben é capturado logo no início do filme, e passa o resto da projeção tentando jogar os três sócios uns contra os outros, incitando a ganância pela recompensa sem divisões. Com a ajuda da namorada (Janet Leigh, de Psicose, versátil), usa essa tática para tentar escapar.



James Stewart, falso herói

Estabelecido esse plot, uma coisa a notar. Apesar de ser normalmente incluído no pacote de faroestes psicológicos, The Naked Spur, como a obra de Mann em geral, não usa metáfora freudianas ou simbolismos psicanalíticos para dizer o que quer. Não me lembro qual crítico de Cahiers disse isso, acho que foi Godard (minha leitura é de segunda mão), mas o cinema de Mann é do exterior: o homem é revelado pelo que está à sua volta. (Por oposição, Nicholas Ray filma o homem pelo filtro de seus conflitos internos). Enfim, não tem firula, é tudo direto e franco.

Três exemplos de diálogos (reproduzidos de memória, mesmo que recente, embaralhados pelo áudio em inglês e as legendas em espanhol) que ilustram essa franqueza:

a) início do filme, o bandido Ben capturado. Howard Kemp o ameaça com um tiro, caso ele faça qualquer gracinha:

- Uma bala aqui ou a forca em Abilene, você que decide.
- Escolher como morrer não é importante, Howie, e sim escolher como viver.

A maior gracinha já está feita. O bandido desestabiliza nossa âncora do filme, escancarando o fato de que ele é um calhorda, um urubu, sem nenhum motivo pessoal para caçar o homem que está sob seu domínio.

b) Após uma tentativa de fuga, um dos sócios decide matar o bandido, já que não faz diferença na hora da recompensa. Howard decide desatar os punhos e colocar uma arma na cintura de Ben, para haver igualdade de chances. Ato honesto? Não mesmo.

- Howard, minhas mãos estão doídas, e você sabe que eu não tenho chances. Não tente fazer um assassinato a sangue frio parecer outra coisa, porque você não vai conseguir.

c) Todo mundo à beira do rio. Se os sócios atravessarem a correnteza com o corpo do bandido atado, ele pode morrer. Roy insiste, Howard se nega a correr o risco. O filme, habilmente, renega novamente a nobreza do herói na fala do sócio:

- Você está aqui pelo mesmo motivo que eu. Ele não é um homem, é um saco de dinheiro!

Fiz questão de citar esses diálogos porque esse me pareceu ser um dos faroestes mais bem escritos, perfeito e complexo em sua simplicidade, sem paradoxos. Deixar claro o que as coisas são de fato por meio dos diálogos é tática perigosa, pode fazer o filme tender ao didatismo, mas Mann e seus dois roteiristas evitam as metáforas. O resultado é limpo.

A clareza não está apenas no texto falado, mas nas situações filmadas. Dentre os diretores que conheço, Mann é claramente o mais violento. Vale lembrar que dirigiu a cena mais brutal da era Código Hays, na obra-prima Um Certo Capitão Lockhart, em que o mesmo James Stewart toma um tiro na mão, a sangue frio e imobilizado - tortura explícita, enfim.

Em O Preço de Um Homem, ele pode não ter atingido a mesma dimensão dramática, mas há alguns momentos de violência impensáveis, secos e desglamourizados. Citar a batalha com os índios pé preto e a morte pelas costas do chefe seria suficiente, mas ainda nesta cena vemos James Stewart, ele mesmo, o mocinho de Capra, matar um índio com pedradas na cabeça, esmagando seu crânio - imagem à distância, mas sem cortes.



O magnífico Robert Ryan, na pele do bandido Ben

Já perto do final, o cruel e galante bandido Ben mata um personagem querido sem quaisquer pruridos, o que causa surpresa. Mann não foi tão longe quanto Stevens na morte de Elisha Cook Jr, em Shane, em que bandido e morto estão no mesmo quadro, mas chega perto. Ben aponta a arma cotidianamente como sempre faz, e dispara contra um homem desarmado, sem qualquer chance de defesa, no peito. Talvez essa diferença entre Mann e Stevens seja mais reveladora que parece: enquanto o último prepara o público para a brutalidade da coisa (Jack Palance veste as luvas pretas, lembram?), Mann não faz alarde da coisa, e pega o público no contrapé. Morreu, morreu.

Se há alguma nota negativa neste filme, mais uma vez é a cena final, final feliz claramente imposto pelo estúdio, mesmo que não pareça muito absurdo. Assim como em Um Certo Capitão Lockhart, o happy end é passável, mas não tira o gosto de fel que as duas horas anteriores deixaram na boca. Filmão, e pena que não saiu em DVD.

quarta-feira, julho 23, 2008

Estado desinteressante

Acabei de ver um filme inacreditavelmente estúpido de um diretor que adoro, Jacques Demy. O Maior Acontecimento Desde a Chegada do Homem à Lua tem apenas uma piada: Marcello Mastroianni está grávido. Grávido mesmo, de barrigão, enjôo, e desejo de comer morango fora de estação.

A mulher dele, Catherine Deneuve, se espanta, mas aceita na boa. Os vizinhos têm a mesma reação, o caso vai parar na tv e a gravidez masculina se espalha pelo mundo todo, do Caribe às Filipinas. Poderia ter sido tão brilhante quanto Fim dos Tempos, de M. Night Shyamalan, mas Jacques Demy não tem a mínima noção da força do material: Mastroianni grávido!



Nos anos 90 tivemos Schwarzenegger de barrigão, e pelo que lembro do filme, era engraçado. Tinha até a grande Emma Thompson. O filme de Demy, no piloto automático, começa, não desenvolve, e acaba, como uma gravidez histérica. A sinopse fica mais divertida que o todo.

Mas vejam como são as coisas. Passei metade do filme rindo de espanto pela falta de vergonha desse time em dedicar tempo a filme tão banal. Não me aborreci. Como se aborrecer com Mastroianni contracenando com o grande amor de sua vida? Eles até fazem piada disso: são um casal ilegítimo, já que o personagem dele não se separou da primeira esposa.

Quando Mastroianni morreu, tanto a esposa no papel quanto Deneuve estavam do seu lado, sentadas na cama. É uma bela história, a dos dois, que rendeu a também atriz Chiara Mastroianni, cada vez mais a cara do pai. Essa história mereceria um filme melhor.

terça-feira, julho 22, 2008

Interlúdio

Estava ontem com a boca seca, assistindo a um Resnais dos anos 60, A Guerra Acabou. É um belo filme, mas a gente só se toca disso uns 10 minutos depois, naquele momento de hesitação entre pegar uma piauí atrasada para ler, continuar o livro de não-ficção ou iniciar um novo de ficção. Grandes diretores têm dessas coisas.

O lance da coisa é que eu fui beber água no meio do filme, e escuto o bolero de Ravel tocando na sala. Opa, só pode ser Femme Fatale no Domingo Maior. Eu poderia ver esse filme para sempre, mesmo dublado e em tela cheia. Há uma fila de adjetivos que podem ser usados para o longa de Brian de Palma, mas eu prefiro um, e só esse um. Femme Fatale é insinuante.

sábado, julho 19, 2008

Menino gênio

Dia desses usei a expressão menino-prodígio para definir Paul Thomas Anderson num texto sobre roteiro, que ainda não foi publicado. Escrevi com a melhor das intenções, mas agora, dias depois, sei que podem achar que eu estou fazendo pouco do cara, quando é totalmente ao contrário. Deus nos livre e guarde de uma grande decepção, mas com apenas cinco filmes na carreira, PTA é a maior esperança de um grande autor americano para os próximos 40 anos. Diria mais, o cara já está completamente estabelecido nesta posição.

Falando de Deus no post anterior, deu uma bruta vontade de ouvir a trilha de Magnólia, que ganhei de aniversário em 2000, ou 2001. No encarte do CD, PTA diz que escreveu seu roteiro a partir das letras de Aimee Mann, e aponta como alguns versos viraram diálogos inteiros do filme. A sugestão do diretor é essa: fazer com que a trilha lembre do longa, e o longa da trilha.

Dois anos depois de ter visto Magnólia pela última vez, acho que tenho o filme no máximo nível de estima desde que vi pela primeira vez. A trajetória do longa na cabeça é mais ou menos essa, a seguir.

Fase 1: choque e estarrecimento. Filme proporciona um mergulho de três horas nas guerras interiores de personagens cheios de vida. No mesmo ano de Magnólia, disseram que Beleza Americana era um filme profundo, porque o drama do personagem de Kevin Spacey era universal e existiam muitas famílias iguais àquela. É justamente essa universalidade de situações que enfraquece o filme, tornando tudo genérico e superficial. Magnólia, ao contrário, investe pesado em personagens específicos, um monte deles, e mostra que identificação não se consegue apenas com personagens iguais ao espectador. Eles podem ser diferentes, desde que haja força em seus dramas para que haja comoção. Parece óbvio, mas não há nada mais recorrente do que a idéia da identificação com o "homem comum", clichê cansado e surrado de metade do cinema americano dito independente. Divago, mas é esse impacto que Magnólia tem na primeira vez: puro e simples, um show de humanidade.



Fase 2: Linguagem. Durante a primeira vista, isso chama atenção, mas uma segunda sessão torna mais evidente a imensa sofisticação e o domínio de cinema do garoto PTA, na época, com apenas 29 anos. Há a introdução com um curta maravilhoso sobre coincidências, o clipe que apresenta todas as histórias logo em seguida, para desembocar no desenvolvimento de cada um dos contos paralelamente. Nesse miolo, a coisa mais atordoante são os planos-seqüência que acentuam uma impressão de que aquela angústia toda nunca vai acabar. Sensação ao ver Tom Cruise andando naqueles corredores falando no celular sem qualquer refresco é parecida, claro, com o inferno de Ray Liotta em Os Bons Companheiros, de Scorsese. Mesmo quando não usa os travellings, PTA alonga a angústia o tempo todo em situações que não levam a história a lugar nenhum, mas arrastam o espectador pro inferno que todo mundo está vivendo, mesmo assim. Exemplo: a magnífica cena da farmácia, com aquela frase dita por Julianne Moore que chega a dar frio na espinha. "Você já sentiu a morte na sua casa?".

Fase 3: Desconfiança. Já que quando a esmola é demais, o santo desconfia, provável reação na terceira sessão a tanto arrojo cinematográfico é a velha ilusão de que o objetivo de qualquer diretor jovem não é fazer um filme com alma, mas impressionar espectadores com seus talentos de prestidigitação. Por isso mesmo, as seqüências mais ousadas do filme, tão brilhantes, podem parecer problemáticas para os mais céticos. A canção na tv e a chuva, já perto do fim, tem todos os ingredientes para favorecer a acusação de exibicionismo. Teoricamente, bem teoricamente mesmo, são cenas inúteis, que não avançam a história; ao contrário, a deixam parada para uma exibição aparentemente gratuita de fogos de artifício cinematográficos. Discordo completamente disto, porque acho que essa visão de utilidade só é possível exigindo do longa uma estrutura que pertence aos manuais de roteiro, e não à lógica do próprio filme. Pareyson ajuda a entender a diferença.



Fase 4: Consagração e além. A idéia do pequeno gênio pretensioso cai por terra à luz dos seus filmes seguintes, sem que PTA tenha tirado um pingo de força do acelerador. Embriagado de Amor parece querer ser apenas um divertimento, e de certa forma também é, sem que o diretor deixe de, mais uma vez e impressionar. Não de forma gratuita: seu filme é o melhor pesadelo do cinema desde Depois de Horas, de Scorsese. No final do ano passado, a pá de cal em todos os detratores, Sangue Negro, mais uma prova de ambição e arrojo que não servem para mascarar falta de idéias. Ao contrário, o virtuosismo não gira em falso, mas ajuda a PTA se expressar. Não apenas isso, não é questão de forma-fundo: suas idéias só podem ser filmadas desse jeito, excessivo e exaustivo.

***

Mencionei a relação Deus-Magnólia porque ela existe, e é forte. Pablo Villaça fez uma dissecação das mensagens subliminares plantadas pelo diretor, que cita de forma oblíqua o Êxodo 8:2 em diversas passagens do filme, e espalha esses dois números em várias cenas. Acho isso tão interessante quanto irrelevante, porque, mesmo sem o conhecimento desses truques, é possível perceber a presença constante do tema paternidade em Magnólia. Se eu tivesse que definir Magnólia como um "filme sobre", a maneira menos redutora seria dizer que é um filme sobre pais e filhos e as complexidades dessa reação. Como não chegar a Deus depois daquela chuva redentora?

quarta-feira, julho 16, 2008

Nós que aqui estamos

Bati um papo certa vez com um colega do jornal sobre Asas do Desejo, um filme que eu preciso rever, urgentemente, porque só vi em VHS. Lembro que falei da minha cena preferida, a da biblioteca. Achei agorinha no YouTube. Olhem que coisa linda, cena com cara e visual que só um diretor alemão pode fazer, mas com uma humanidade e paixão por todos nós que só se vê no próprio Deus, Ele Mesmo.

Com 2:18, por aí, tem um frame que vale uma carreira inteira, como se o próprio Wenders tivesse vindo à terra somente para filmá-la. O garoto vê o anjo, e, como resposta, o cara dá algo que parece um sorriso, de amor - não exatamente pessoal, mas coletivo, que abarca cada pessoa que vive sobre a terra.



Pode-se duvidar que Deus existe, mas o cinema já nos provou várias vezes o contrário - ou há cineastas eloqüentes para nos convencer disso. Seja de maneira dolorosa, como no primeiro episódio do Decálogo, de Kieslowski, arrebatadora, como em Ondas do Destino, a obra-prima insuperável de Lars von Trier, ou desse jeito escolhido por Wenders, terno e carinhoso.

Onde está Wenders, esse grande artista? Vi esse Estrela Solitária no cinema ano passado, e preferia não ter passado pela experiência.

terça-feira, julho 08, 2008

Os problemas do mundo

Antes de tudo, uma resposta ao comentário de Pedro, no post anterior. Nacocó vai voltar. Parou porque não tínhamos colaboradores em número suficiente para manter o site atualizado, sobretudo na seção de reportagem.

Para que Nacocó volte, precisamos de ao menos uma reportagem por semana, porque era esse o diferencial buscado. Portanto, se o estimado leitor quiser colaborar, entre em contato comigo. Quando estiver tudo ok para a volta, eu faço a convocação.

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Dia desses estava meio perdido entre clipes do REM no YouTube, quando acabei parando e ouvindo várias vezes uma canção que amava há uns três anos, e acabei esquecendo. At My Most Beautiful tem uma coisa linda, que é a descrição do sentimento de carinho por outra pessoa, mais do que amor. Lembrar a voz no telefone, saber de cor os tiques do outro, os pequenos jogos de casal, como fazer o outro rir. Simples, e muito bonito.

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Acabei nesse clipe porque queria rever uma obra-prima do videoclipe (sim, elas existem), Imitation of Life, que, segundo o culto vocalista Michael Stipe, foi inspirada no filme homônimo de Douglas Sirk (que é refilmagem de John Stahl, aliás).

No filme de 59, Lana Turner é uma mulher que abre mão do amor para ter uma carreira como atriz. Quando reencontra o antigo namorado, a filha adolescente se apaixona por ele, e aí temos o velho conflito de pais e filhos tão caro ao diretor.

Quando está endiabrado, como em Palavras ao Vento ou Tudo o Que o Céu Permite, Sirk chega à tragédia grega, modelo que ele adotava para suas crônicas familiares embaladas em cores fortes e cenários fake.



Imitação da Vida, clássico de Douglas Sirk

Em Imitação da Vida, o forte não é a história de Lana Turner, mas o drama da fiel empregada negra, vivida por Juanita Moore. Ela tem uma filha de pele clara, que tenta se passar por branca e renega a mãe, que, ainda assim, lhe têm amor imenso.

Do meio pro fim, essa história vira o foco principal do filme. Quando a mãe fica doente, começa a preparar o próprio funeral. Seu único sonho é ter um enterro majestoso, pago com o dinheiro que conseguiu economizar.

Juanita Moore e Sandra Dee, empregada e filha da patroa

Isso desemboca no desfecho mais impactante armado pelo diretor em seus sete melodramas da universal, uma explosão de excesso pontuada pela canção Troubles of the World, cantada por Mahalia Jackson (O vídeo do link só mostra do filme o que eu já entreguei aqui. A continuação depois da canção não aparece).

Para Sirk, tinha tudo a ver: a família é alegoria do mundo, e se as relações entre pais e filhos são marcadas por tanta vileza, nenhuma outra ligação humana sincera é possível.

Pessimismo justificado: Sirk é alemão, e fugiu para os Estados Unidos quando o III Reich já havia tomado o poder. Depois de Imitação da Vida ele voltou para a Alemanha, onde largou a direção e passou a ensinar cinema na Universidade de Munique.

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Mas eu falava do clipe do REM. Se o filme de Sirk tinha registro forte e específico do final dos anos 50, o clipe da banda é atualização brilhante do visual, com um conceito todo novo. Um só cenário, muita gente conversando e vinte segundos de gravação. Percorrendo essa imagem, indo e voltando no REW e no FF, cada trecho da letra é cantada por um ator.

Fazendo um pouco de psicanálise barata, enxergo o conceito do clipe como a dificuldade de absorver tanta informação. Em apenas 20 segundos, tanta coisa acontece, e é preciso ver e rever para apreender o todo. O resultado é que nossa experiência cotidiana não é realmente viver a vida, mas observar fragmentos, e pronto, sem noção de totalidade. Imitações.

Escrito dessa maneira simplória para alguma sobra de Jean Baudrillard, mas acho que faz sentido, sim. Não sei se isso é exatamente ruim, como Baudrillard provavelmente acha, mas essa constatação via videoclipe consciente disso, veiculado dentro da proposta de ultra-picotamento da MTV é algo instigante. O diretor do vídeo é Garth Jennings, que fez O Guia do Mochileiro das Galáxias. Não vi.

Escrevendo esse post, aliás, não tem como não lembrar do grande filme que Brian de Palma fez nessa década, Femme Fatale. Aquele mural de fotografias mantido por Antonio Banderas é perfeita ilustração da apreensão de informação por fragmentos, aliás, fragmentos mediados, que enganam o olho.

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Não me lembro qual meu clipe preferido. Pensando rápido, gosto muito de coisas que rompem essa coisa do picotamento, como o Heart-Shaped Box, do Nirvana. Em vez do movimento frenético, imagens paradas, em seqüência, quase fotografias, todas montadas com direção de arte espetacular. Muitos clipes fazem isso, mas não contam com a dissonância do Nirvana ou nesse clima lugúbre, cheio de corvos e idosos vestidos de Jesus Cristo em cenários de Mágico de Oz. A iconografia utilizada pelo diretor Anton Corbijn assusta, como um bom pesadelo lyncheano.