Esse corre-corre só nos permite perceber aonde o filme quer chegar quando a história para no povoado de Dawson, onde pioneiros americanos buscam ouro e sonham com uma cidade de verdade, com igreja, escola e justiça. A nomeação de um juiz, no entanto, só está prevista para a próxima primavera, e a riqueza do lugar começa a atrair todo tipo de bandidos, incluindo o odioso Mr. Gannon, representante da justiça na cidade mais próxima.
Daí percebemos o quanto Mann abriu o escopo nesse filme, aproximando-se do George Stevens de Os Brutos Também Amam, mas principalmente da preocupação fordiana com a construção da civilização americana. Região do Ódio não é sobre uma família, mas sobre um país, e sobre a importância da responsabilidade individual quando não há leis.
James Stewart, nesse filme, é Jeff, apenas um homem egoísta e ambicioso, que acaba parando na cidade e comprando uma mina de ouro. Ele é acompanhado pelo fiel amigo bem, um idoso com quem tem a única relação afetiva de sua vida: Ben (Walter Brennan, o mais icônico coadjuvante do faroeste) ensinou-lhe muitas coisas, mas agora, já velho, depende do antigo pupilo. Ao encontrar uma promessa de estabilidade em Dawson, Ben pede a Jeff que eles não abandonem a cidade.
Exatamente nessa sequência, o filme começa a desabar, no sentido positivo, sobre nossas cabeças: por meio da mais pura simplicidade e da confiança na força de um ator como Brennan, um dos clichês mais célebres do faroeste é reencenado lindamente: estamos sempre de volta para casa.
Sem concessões, a partir da cena seguinte, Mann mostra a dimensão do sacrifício necessário para fazer de Dawson um lugar para se viver. É preciso extirpar o câncer, encarnado aqui nos bandidos que pretendem tomar a terra dos pioneiros. Como em Os Brutos Também Amam, o choque vem num momento de extrema violência.
Stevens fez toda uma preparação para a morte de Elisha Cook, Jr. naquele filme: Jack Palance, todo de preto, veste as luvas e dispara à queima-roupa. Entra um som de canhão como se fosse revólver e Cook Jr. é atirado na lama, dentro do mesmo plano do assassino, algo inédito à época. Mann é sintético: o rancheiro entra no quadro, e sem som ou suspense, toma um balaço no peito. Os camponeses recolhem o corpo no saloon, conformados. Sem chamar a atenção para a violência do momento, Mann consegue ser tão brutal e rigoroso quanto Stevens.
Estamos, enfim, no mundo dos faroestes de Anthony Mann em seus abismos mais sombrios, uma conjugação de momentos tão sublimes quanto insuportáveis: a música sobe, as cenas são filmadas artificialmente em noites americanas e paira no ar um clima de inferno sem volta, especialmente na cena em que nosso querido Ben é finalmente assassinado, e Jeff, ferido, conduz o corpo disposto sobre o cavalo, enquanto a cidade assiste a tudo em silêncio estupefato. É terrível, e lindo, e perfeito.
Mesmo que haja sempre um final feliz nos faroestes de Mann, sua esse clima de horror que ele cria é suficiente para que se creia que nada pode ser definitivo, mesmo depois do The End. Sem nenhum viés conservador, ele termina com o insuportável dilema de John Ford e Clint Eastwood: a paz é frágil, e a luta por ela sempre passa pela violência. Não há como evitar, e, por outro lado, as consequências dessa proximidade constante com a brutalidade (tão americana!) não deixam de chegar a tempo certo.
Mais filmes do exílio:
>>> Bang Bang, de Andrea Tonacci - o que dizer de um filme desses? Desconstrução pura, choque e anarquia arremessados em direção à tela de maneira incessante, por 80 minutos. Estimulante e engraçado, mesmo que sua histeria não vá na verdade a lugar nenhum. Muito divertido. Pensando bem, o filme é frequentemente genial.
>>> O Medo do Goleiro Diante do Pênalti, de Wim Wenders - Ótimo título, mas o filme é meio artsy-fartsy. É a velha solidão desdramatizada típica do diretor, mas ainda com a imaturidade de um segundo longa, claramente colhido verde. Wenders viraria gênio pela primeira vez dois anos depois desse filme aqui, com a obra-prima Alice nas Cidades, e dominaria o mundo nos anos 80. O Medo do Goleiro Diante do Pênalti, aqui e ali, deixa ver o grande diretor que Wenders seria, mas também o quanto ele pode ser ruim nos seus piores dias.
De qualquer jeito, minha teoria pode estar completamente errada: trouxe para Angola Verão na Cidade, primeiro longa dele, mas o DVD desapareceu. Se for bom, que os defeitos de O Medo do Goleiro Diante do Pênalti sejam creditados a um dia ruim, e não à imaturidade. Mas, enfim, A Letra Escarlate, que logo depois desse aí, é um completo desastre, o que me faz pensar que Alice nas Cidades deve ter sido realmente a revelação de Wenders como cineasta.
>>> A Tortura do Medo, de Michael Powell - Scorsese disse certa vez que tudo o que se precisava saber sobre direção de cinema estava em dois filmes: Fellini 8 1/2 e essa joia do suspense inglês. Se o clássico italiano revelaria o glamour do métier e os momentos de pressão diante de um impasse criativo, o é uma reflexão sobre a natureza técnica do cinema.
O psicopata que mata as vítimas e registra seus últimos momentos de pânico para o próprio prazer não deixa de agir como um diretor. Busca a eternização de sentimentos para consumo com o máximo de realismo possível, para que o voyeurismo possa ser saciado. A diferença é que o maníaco rompe a linha da ficção.
O filme lembra muito a obra futura de DePalma, não apenas pela obsessão e luxúria por objetos ópticos, lentes e câmeras, mas pela manipulação inteligente da linguagem. Maravilha ver um filme tão apaixonado pela imagem ter um personagem-chave cego, que consegue saber muito sobre as pessoas apenas percebendo detalhes sonoros, como a velocidade e a força dos passos.
Powell nos lembra que o cinema é audiovisual, e DePalma com certeza viu o filme quando fez seu sensacional Um Tiro na Noite, em que um sonoplasta à busca de sons para seu filme acaba gravando sons que podem ajudar a desvendar um crime. A quebra da linha da ficção também foi parar no filme americano, quando o sonoplasta acaba encontrando o grito ideal para uma cena de terror a partir de um momento de tensão verdadeiro. Clássicos meta, enfim, sofisticadíssimos.
>>> Revi aqui o lindo A Morte de um Bookmaker Chinês, de Cassavetes, um ano e meio depois de ter visto no cinema numa sessão bem complicada. Após ver o filme adequadamente, mesmo que na tela pequena, não resta opção senão chover no molhado e reiterar a ideia de que ninguém tinha tanta intimidade com gente quanto o ator-diretor, aqui, sem sua esposa-musa Gena Rowlands. O lance da coisa, no entanto, é meio que similar ao de Noite de Estréia: the show must go on, no palco e na vida.
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