domingo, março 15, 2009

Filmes do Exílio #4

Bato na tecla da genialidade de Anthony Mann, mas já esgotei meu estoque do cineasta aqui em Angola, e este é o último post sobre ele. Vi aqui Região do Ódio, único faroeste que ele fez com James Stewart que ainda não conhecia, e, caramba... A princípio o filme não revela sua grandeza: segue veloz numa trama banal de roubo de gado no Alaska, sem nenhuma das implicações psicanalíticas trazidas pelo diretor ao gênero por meio de seus westerns familiares, com forte influência do teatro grego.

Esse corre-corre só nos permite perceber aonde o filme quer chegar quando a história para no povoado de Dawson, onde pioneiros americanos buscam ouro e sonham com uma cidade de verdade, com igreja, escola e justiça. A nomeação de um juiz, no entanto, só está prevista para a próxima primavera, e a riqueza do lugar começa a atrair todo tipo de bandidos, incluindo o odioso Mr. Gannon, representante da justiça na cidade mais próxima.

Daí percebemos o quanto Mann abriu o escopo nesse filme, aproximando-se do George Stevens de Os Brutos Também Amam, mas principalmente da preocupação fordiana com a construção da civilização americana. Região do Ódio não é sobre uma família, mas sobre um país, e sobre a importância da responsabilidade individual quando não há leis.

James Stewart, nesse filme, é Jeff, apenas um homem egoísta e ambicioso, que acaba parando na cidade e comprando uma mina de ouro. Ele é acompanhado pelo fiel amigo bem, um idoso com quem tem a única relação afetiva de sua vida: Ben (Walter Brennan, o mais icônico coadjuvante do faroeste) ensinou-lhe muitas coisas, mas agora, já velho, depende do antigo pupilo. Ao encontrar uma promessa de estabilidade em Dawson, Ben pede a Jeff que eles não abandonem a cidade.


Exatamente nessa sequência, o filme começa a desabar, no sentido positivo, sobre nossas cabeças: por meio da mais pura simplicidade e da confiança na força de um ator como Brennan, um dos clichês mais célebres do faroeste é reencenado lindamente: estamos sempre de volta para casa.

Sem concessões, a partir da cena seguinte, Mann mostra a dimensão do sacrifício necessário para fazer de Dawson um lugar para se viver. É preciso extirpar o câncer, encarnado aqui nos bandidos que pretendem tomar a terra dos pioneiros. Como em Os Brutos Também Amam, o choque vem num momento de extrema violência.

Stevens fez toda uma preparação para a morte de Elisha Cook, Jr. naquele filme: Jack Palance, todo de preto, veste as luvas e dispara à queima-roupa. Entra um som de canhão como se fosse revólver e Cook Jr. é atirado na lama, dentro do mesmo plano do assassino, algo inédito à época. Mann é sintético: o rancheiro entra no quadro, e sem som ou suspense, toma um balaço no peito. Os camponeses recolhem o corpo no saloon, conformados. Sem chamar a atenção para a violência do momento, Mann consegue ser tão brutal e rigoroso quanto Stevens.

Estamos, enfim, no mundo dos faroestes de Anthony Mann em seus abismos mais sombrios, uma conjugação de momentos tão sublimes quanto insuportáveis: a música sobe, as cenas são filmadas artificialmente em noites americanas e paira no ar um clima de inferno sem volta, especialmente na cena em que nosso querido Ben é finalmente assassinado, e Jeff, ferido, conduz o corpo disposto sobre o cavalo, enquanto a cidade assiste a tudo em silêncio estupefato. É terrível, e lindo, e perfeito.

Mesmo que haja sempre um final feliz nos faroestes de Mann, sua esse clima de horror que ele cria é suficiente para que se creia que nada pode ser definitivo, mesmo depois do The End. Sem nenhum viés conservador, ele termina com o insuportável dilema de John Ford e Clint Eastwood: a paz é frágil, e a luta por ela sempre passa pela violência. Não há como evitar, e, por outro lado, as consequências dessa proximidade constante com a brutalidade (tão americana!) não deixam de chegar a tempo certo.

Mais filmes do exílio:

>>> Bang Bang, de Andrea Tonacci - o que dizer de um filme desses? Desconstrução pura, choque e anarquia arremessados em direção à tela de maneira incessante, por 80 minutos. Estimulante e engraçado, mesmo que sua histeria não vá na verdade a lugar nenhum. Muito divertido. Pensando bem, o filme é frequentemente genial.

>>> O Medo do Goleiro Diante do Pênalti, de Wim Wenders - Ótimo título, mas o filme é meio artsy-fartsy. É a velha solidão desdramatizada típica do diretor, mas ainda com a imaturidade de um segundo longa, claramente colhido verde. Wenders viraria gênio pela primeira vez dois anos depois desse filme aqui, com a obra-prima Alice nas Cidades, e dominaria o mundo nos anos 80. O Medo do Goleiro Diante do Pênalti, aqui e ali, deixa ver o grande diretor que Wenders seria, mas também o quanto ele pode ser ruim nos seus piores dias.

De qualquer jeito, minha teoria pode estar completamente errada: trouxe para Angola Verão na Cidade, primeiro longa dele, mas o DVD desapareceu. Se for bom, que os defeitos de O Medo do Goleiro Diante do Pênalti sejam creditados a um dia ruim, e não à imaturidade. Mas, enfim, A Letra Escarlate, que logo depois desse aí, é um completo desastre, o que me faz pensar que Alice nas Cidades deve ter sido realmente a revelação de Wenders como cineasta.

>>> A Tortura do Medo, de Michael Powell - Scorsese disse certa vez que tudo o que se precisava saber sobre direção de cinema estava em dois filmes: Fellini 8 1/2 e essa joia do suspense inglês. Se o clássico italiano revelaria o glamour do métier e os momentos de pressão diante de um impasse criativo, o é uma reflexão sobre a natureza técnica do cinema.

O psicopata que mata as vítimas e registra seus últimos momentos de pânico para o próprio prazer não deixa de agir como um diretor. Busca a eternização de sentimentos para consumo com o máximo de realismo possível, para que o voyeurismo possa ser saciado. A diferença é que o maníaco rompe a linha da ficção.




O filme lembra muito a obra futura de DePalma, não apenas pela obsessão e luxúria por objetos ópticos, lentes e câmeras, mas pela manipulação inteligente da linguagem. Maravilha ver um filme tão apaixonado pela imagem ter um personagem-chave cego, que consegue saber muito sobre as pessoas apenas percebendo detalhes sonoros, como a velocidade e a força dos passos.

Powell nos lembra que o cinema é audiovisual, e DePalma com certeza viu o filme quando fez seu sensacional Um Tiro na Noite, em que um sonoplasta à busca de sons para seu filme acaba gravando sons que podem ajudar a desvendar um crime. A quebra da linha da ficção também foi parar no filme americano, quando o sonoplasta acaba encontrando o grito ideal para uma cena de terror a partir de um momento de tensão verdadeiro. Clássicos meta, enfim, sofisticadíssimos.

>>> Revi aqui o lindo A Morte de um Bookmaker Chinês, de Cassavetes, um ano e meio depois de ter visto no cinema numa sessão bem complicada. Após ver o filme adequadamente, mesmo que na tela pequena, não resta opção senão chover no molhado e reiterar a ideia de que ninguém tinha tanta intimidade com gente quanto o ator-diretor, aqui, sem sua esposa-musa Gena Rowlands. O lance da coisa, no entanto, é meio que similar ao de Noite de Estréia: the show must go on, no palco e na vida.

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