Eu já deixei registrada aqui minha primeira impressão de encantamento, mas ela só se amplifica à medida que o livro se desenvolve num anti-fluxo: McCullers marca passo como uma pianista que dedilha infinitamente uma mesma canção, acrescentando aos poucos uma nota aqui e outra li, mas nunca abandonando a melodia principal.
A metáfora musical faz o maior sentido no livro, mas prefiro outra mais simples. Esse livro é uma lagoa, e não um rio. Para McCullers a vida é como água parada - por maiores que sejam os conflitos internos, a tendência de tudo é sempre a imobilidade, a inércia. O maior exemplo disso é a morte de um personagem querido no final da penúltima parte. Há um choque, mas a própria banalidade calculada do relato ("pegou o revólver e meteu uma bala no peito") acentua o caráter de não-fato mesmo das coisas mais graves da vida, e sua inevitável assimilação.
O resultado é algo próximo do oposto perfeito de O Som e a Fúria: em comum a estrutura múltipla, mas, de diferente, a substituição da fúria por uma calma angustiante. E o texto, claro, límpido, sem o jorro faulkneriano. É uma das coisas mais tristes que já li, tanto no todo, quanto no parágrafo-a-parágrafo: McCullers impressiona por ter um dos melhores textos de todos os tempos, sim, e por ser discreta em relação a ele, sem impor sua genialidade sobre a não-história que conta.
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O amigo Flávio Costa, sabedor de minha preferência por policiais, me deu O Juiz e Seu Carrasco, de Friedrich Dürrenmatt, que considera a melhor coisa que já leu no gênero. Minha discordância pessoal - continuo com O Destino Bate à Sua Porta, de James M. Cain - não me impede de admirar esse livro belíssimo, gélido, que ameaça quebrar sobre o peso do próprio truque narrativo, mas se sustenta com brilhantismo para mostrar que sua força não está no McGuffin, mas numa discussão filosófica das mais consistentes.
Como num bom filme de Orson Welles, a verdade é posta no fio da navalha, e o artifício e a mentira podem ser as melhores armas para se fazer justiça - o que, claro, impede qualquer visão pura e desse conceito. A casa de espelhos e alternativas narrativas também lembra Welles, mesmo que na versão europeia e filtrada por Carol Reed: se O Juiz e Seu Carrasco fosse um filme, seria bem próximo de O Terceiro Homem.
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Leitura para risos frequentes e diversão constante é Um Quarto com Vista, uma obra-prima de E. M. Forster, aqui sem a verve política de Passagem Para a Índia ou a eventual seriedade de Howards End. Um Quarto Com Vista é uma sobremesa de luxo, um brinde de refinamento, experiência infinitamente saborosa, palavra por palavra, provavelmente o mais próximo que algum autor chegou de Jane Austen, tanta na ironia finísima quanto no conteúdo feminista, no melhor sentido da palavra, sem qualquer sociologismo.
É o tipo de livro perfeito até no título dos capítulos, como "O Exasperante Caso do Aquecedor da Senhorita Bartlett" ou "No apartamento bem mobiliado da senhora Vyse", que sugerem o clime de comédia de costumes sociais com um detalhismo possível apenas àqueles que conhecem como a palma da mão os ambientes aristocráticos e sub-aristocráticos. Enfim, uma joia.
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Na piauí, continuo adorando as esquinas e boa parte dos textos, especialmente as reportagens de Daniela Pinheiro. Acho que ela tem uns vícios estranhos e frequentemente leva a hiperdescrição à banalidade, mas é ótima para falar de gente rica. Os dois últimos (eu leio edições atrasadas, não esqueçam), sobre o mercado imobiliário de SP e sobre um jornalista-publisher argentino, estavam super.
2 comentários:
Parabéns pelo blog, Saymon. É ótimo!
Cheguei aqui através do blog do Merten, e me diverti muito com seus posts sobre cinema.
Além do "gosto pelo cinema", temos outra coisa em comum: somos leitores de piauí, de longe a melhor revista surgida por aqui em anos.
Abraço!
Carson McCullers, se não me engano, é autora do livro do qual John Huston fez a versão de "Reflexões nos olhos dourados", com Marlon Brando e Elizabeth Tayler, que aprecio bastante.No Brasil: "Os pecados de todos nós"
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