segunda-feira, novembro 05, 2007

As Coisas da Vida

Reis e Rainha: Queria ver no cinema, mas perdi. Saiu em DVD, mas nenhuma locadora conhecida comprou. Baixei, vi ontem, e acho que não é exagero dizer que esse é um dos filmes mais importantes para mim, em muito tempo, num nível completamente pessoal. Tem aquela qualidade de provocar identificação imediata sem cair em verdades universais e exploração de estereótipos - aliás, "tendência" do cinema americano, com suas análises do subúrbio.

Esse processo de identificação é feito de outra forma. Cria personagens fortes e tridimensionais, que demandam nossa atenção. O artifício óbvio é o contrário, os personagens querem se identificar conosco, platéia.



Emmanuelle Devos

O filme é dividido em dois segmentos: um dedicado a Nora (Emmanuelle Devos), empresária de uma galeria de arte na iminência de perder o pai para o câncer; o outro segue Ismaël, seu ex-marido endivididado e internado numa clínica psiquiátrica.

Há tanto sentimento na história dessas pessoas vivendo momentos de decisão, que o resultado final é inegavelmente doce, sem que isso signifique escapar em um milímetro de toda a dor que a virada dos 30 provoca (deve provocar) na vida das pessoas.

Será por acaso que o filme começa e termina com Moon River? Pensando agora, tem a ver mesmo em tom com a historinha do escritor apaixonado pela prostituta Holly Golightly. Estilização à parte, a graça da própria vida unida à melancolia da falta de perspectivas é o tema comum entre as garras afiadas de Truman Capote (e Blake Edwards) e a inquietação cotidiana de Arnaud Desplechin. De qualquer jeito, é só uma interseção.

Aliás, maravilha de senso de humor do filme, lembra aquele belo Conte Comigo, que deu uma indicação ao Oscar a Laura Linney tem uns cinco, seis anos. Esse longa francês é ainda melhor, mais ambicioso, perfeitas duas horas e meia de projeção capazes de lavar a alma (e a cara) de quem estiver disposto a se encantar com sua poesia.



Mathieu Amalric

Último adendo: existe coisa melhor que a interpretação completamente anormal de Mathieu Amalric? Vivo, vibrante, sutil, histriônico - tá tudo lá. Trabalho muito complexo, sem o modelo pronto para decalcar, como é padrão mesmo nas melhores interpretações americanas hoje.

Ao que parece, a carreira dele está se tornando mais visível. Depois da precisa atuação em Munique (como o traficante de informações francês, filho de Michael Lonsdale), protagonizou o novo Schnabel... Nos seus créditos do IMDB, uma pilha de filmes que não chegou aqui.

7 comentários:

Anônimo disse...

Tamb�m achei a atua�o de Mathieu Amalric acima da m�dia das melhores no cinema contemporaneo --e, no filme todo, um mais do que saud�vel desvio da tend�ncia um tanto "naturalista" demais do cinema franc�s mais recente (na medida do que deu para acompanhar, nos �ltimos anos).

Anônimo disse...

Saymon, não tem nada a ver com seu post, nem com seu comentário, Fernando. Mas preciso compartilhar isso com alguém.

Faz uns anos, liguei para a Video Hobby: "Tem algum filme de Godard?" "Quem?" "Godár" "Quem?!". Desliguei.

Domingo passado foi pior. Fui na Casa de Cinema, perguntei por um filme que (eu jurava) já tinha visto lá mesmo, "O salário do medo".

Percebi que o cara que me atendia fez uma cara de estranhamento, enquanto digitava. Foi rápido, mas eu sou detalhista e percebi claramente.

Eu até mencionei que tinha visto o filme lá na prateleira, mas isso foi depois dele "estranhar".

Enfim: ninguém tem obrigação de conhecer tudo, mas muito menos eu tenho obrigação de agüentar caras e expressões de espanto que parecem dizer "sinto muito, esse filme não existe".

Anônimo disse...

Diego: saiba que isso vai piorar --e muito.
Estamos mergulhados ateh o pesco�o na imponderavel leveza do facil e do descartavel, em pleno mundo daqueles 15 minutos de fama que estao se reduzindo para 15 "seconds".
Ent�o, parece que ninguem guarda mais nada, ou associa corretamente as coisas mais simples, tudo se desfaz no ar de gelo seco da cultura de consumo que estah apagando o passado, o que vale e o que nao vale, pois tudo, afinal, dah "na mesma" para o mundo que perde sentido a dez minutos que passam.
Quem chegou a ler este comentario de um comentario ateh aqui, postado num come�o da madrugada etc. jah pode contar com mais dez anos apagados da memoria -- sem cabe�a -- do "admiravel" mundo novo que criamos e que vai nos matar de falta de sentido.
Alguem quer, acaso, desenvolver o argumento para um curta com base na observa�ao dessas dilui�oes da Grande Dilui�ao?...
Bem, ninguem prestarah aten�ao nele mesmo (por bom ou ruim que venha a ficar etc etc). E Jean-Luc Godard, coitado, parece que virou um fantasma de si mesmo, uma lenda que n�o quer morrer -- como o fizeram, no final de agosto, os dois gigantes que restavam (Bergman e Antonioni).
Estamos em plena Ilha da Fantasia dos pigmeus da selva do velho
"Fantasma" (das selvas), cercados de anoes preparando-se para entrar nos Big Brothers produzido pelas "Xuxas" que vir�o, com 3 neuronios a menos do que a loura original...

Saymon Nascimento disse...

Diego, O Salário do Medo tem na GPW. Vale a pena fazer a trinca do diretor: As Diabólicas é um elegantíssimo filme de suspense, sempre com essa tipo clínico que é característico dos franceses (de Os Olhos Sem Rosto ao Chabrol de sempre); O MIstério Picasso, um filme extraordinário em que a ação se origina das pinceladas do espanhol. As telas são especiais, com a câmera no fundo, e a gente vai vendo a pintura como um processo narrativo. No final, há clímax, coisa de filme de ação. Ge-ni-al!

Anônimo disse...

"Reis e Rainha" é top 5 dos anos 2000.

Chico.

Anônimo disse...

Sim, lembro que conversamos sobre esse filme de Picasso.

E uma boa lembrança, também, "Olhos sem rosto". Penso que hoje o filme pode parecer um terror "ingênuo" -- e isso menos pela ausência de tiques dos Jogos Mortais da vida do que pela crença do diretor no filme.

Acho que isso é visível e fundamental. É claro como Franju crê no que faz. São intensas as imagens. A frouxidão do que se vê hoje nos blockbusters de terror/suspense não está apenas nos roteiros sem pé nem cabeça, na falta de profundidade dos filmes, na narração freneticamente igual e copiada.

Não sei se estou viajando, mas acho que estes filmes, concebidos para serem bbs, não conseguem nem esconder esta "falta de vontade" de convencer.

Falta crença. Num filme de terror, é ainda pior reproduzir essa tendência "realistica" que domina o cinema hoje. Não se cria um universo; tudo se passa no nosso tempo-espaço, com nossas leis da física.

Enfim, são filmes nus, máquinas expostas de dar susto.

Acho esse filme de Franju genial por isso: um filme aplicado, que acredita em si, que se esforça para assustar. Se hoje já estamos acostumados a tanta crueza que ele já não nos amedronta, com certeza suas qualidades (entre elas, a inteligência e a profundidade) continuam admiráveis.

Saymon Nascimento disse...

Engraçado, Almodóvar tava trabalhando com um plot bem parecido ao de Franju, mas parece que deixou o roteiro de lado por um tempo. Franju é bem Almodóvar agora - um tema potencialmente excessivo tratado com o que de há mais requintado em narrativa clássica.