domingo, junho 08, 2008

Os farsantes

Não dá para confiar em Orson Welles. Ele sempre disse que O Estranho, de 46, era seu pior filme, mas, caramba, que pior filme! Como a maior parte das obras dele depois de Cidadão Kane, o corte final é de estúdio, com várias mudanças em relação à montagem planejada inicialmente pelo diretor. Se por um lado ficamos para sempre sem saber como seria o resultado caso Welles tivesse a última palavra, de outro, temos filmes muito fortes, sustantado pelo talento superlativo do cineasta como encenador.

O Estranho é, como tudo na obra de Welles, um filme sobre verdade, mentira e aparência. Charles Rankin (o próprio Welles), professor de história de uma cidade pequena no meio de Connecticut, é fugitivo do regime nazista com identidade trocada, o cabeça da idéia de extermínio coletivo dos judeus durante o terceiro Reich. Mr. Wilson (Edward G. Robinson), é um detetive do FBI está no encalço do farsante.

Com lógica simples, o filme é um mecanismo impecável, com ações paralelas: um homem tenta encobrir provas, outro tenta revelar a verdade. Mesmo "destruído" pelos produtores, não há uma cena que não seja perfeita e aguda. O ponto alto são os close-ups, praticamente hitchcockianos. Pânico, pavor, inteligência - tudo arrancado da cara dos atores, que tomam a tela várias vezes durante o filme, sempre nos momentos exatos.



O melhor de todos é na cara suada do próprio Welles, momentos antes da derrota, animal brilhante e acuado numa torre de igreja. Nessa cena, aliás, ele menciona rapidamente uma frase que seria a base de seu célebre discurso em O Terceiro Homem, sobre ver as pessoas do alto de um prédio, como formigas, esmagáveis.

Fotografia é o habitual show de luz expressionista que Welles tanto gostava, sob o comando do gênio Russell Metty, também responsável pela luz de uma das obras-primas do diretor, A Marca da Maldade. Engraçado é que Metty ficou conhecido por colaborações com cineastas que uisavam concepções visuais totalmente opostas: Welles amava o rigor das sombras no preto & branco; Douglas Sirk filmava o completo excesso em cores fortes e estouradas. Versátil, esse Metty.

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"Não quero esse gângster". A frase é de Luchino Visconti, reagindo ao pedido da Fox que escalasse Burt Lancaster no papel principal de O Leopardo, o príncipe Salina. Para seu épico, Visconti queria Nikolai Cherkasov, o russo de Ivan, o Terrível, de Eisenstein, mas o ator estava bêbado, na Sibéria, ou coisa do tipo. O shakespereano Laurence Olivier estava ocupado, e sobrou para Lancaster. Sua atuação no filme, mesmo dublada, dobrou o conde-cineasta.

Para Burt Lancaster sempre foi assim. Saber atuar, no seu corpo de acrobata e cara de galã, era difícil. Ele era tido como um sub Marlon Brando, e perderia para ele papéis como Stanley Kowalski, na montagem original de Elia Kazan para Um Bonde Chamado Desejo, e Vito Corleone em O Poderoso Chefão, uns 25 anos mais tarde.

O estranho disso é Burt Lancaster sempre foi excelente ator, começando pelo noir em Assassinos e Baixeza, passando pelos sucessos de público dos anos 50, até os anos finais, na década de 80. Quando o filme era médio e o personagem raso, sua presença estelar resolvia tudo. Quando o projeto era forte, Lancaster era inexcedível.

Eu já admirava o ator, principalmente por seu lindo papel em Atlantic City, de Louis Malle, e seu jornalista mau-caráter de A Embriaguez do Sucesso (acompanhado de um também genial Tony Curtis), mas o ponto alta da carreira dele só vi dia desses, em Entre Deus e o Pecado, filme que lhe deu o Oscar de melhor ator.



Com espantosa ousadia para um filme de 1960, Entre Deus e o Pecado é um ataque frontal do protestantismo. Lancaster é um representante comercial fracassado que resolve pôr sua lábia a serviço de uma igreja evangélica itinerante, que vai de cidade em cidade arrecadando fundos com seus cultos-show. A liderança da igreja é da Irmã Sarah (uma incrível e inesperada Jean Simmons), que administra a igreja como o negócio rentável que é.

Lancaster dá um show, na pele de um personagem complicadíssimo. Na tela, o vibrante show man capaz de convencer o público de que é mensageiro de Cristo, em ações que afundam no mau gosto, mas conseguem ser extremamente carismáticas. Essas cenas de "palco" são um choque, porque a emoção injetada contrasta na hora com o cinismo que sabemos que o tal pastor tem.

Ver Lancaster na tela se desdobrar em presença e falsidade é uma coisa metalingüística, como conviver com um ator muito expansivo, ser convencido por sua interpretação, e logo ser acordado quando o show acaba. Difícil isso, ser grandioso e intimista. Numa comparaçãorecente, vale lembrar de Daniel Day-Lewis em Sangue Negro. O cara é teatral E sutil, coisa complicada numa tela de cinema.

Além de Lancaster, o roteiro (adaptado de Sinclair Lewis) primoroso durante a maior parte da projeção dá outro grande papel ao provável melhor coadjuvante de Hollywood, Arthur Kennedy. Ele é um jornalista que acompanha de perto a trajetória da igreja, para fazer um grande perfil dos seus componentes, na melhor tradição americana de investigação. Kennedy serve como âncora moral do filme, imprindo dignidade, inteligência, esperteza e generosidade a homem que já viu muita coisa na vida.

Controverso, o filme foi indicado a cinco Oscars (quem ganhou tudo foi a obra-prima Se Meu Apartamento Falasse, de Billy Wilder). Levou três: ator (Lancaster), atriz coadjuvante (Shirley Jones) e roteiro, para o diretor Richard Brooks. Nessa mesa década Brooks ainda se superaria com sua insuportável e magnífica adaptação de A Sangue Frio, de Truman Capote.

Sobre esse Oscar para Lancaster, vejam como são as coisas. É o auge dele como ator, indefectível, genial, mas vendo a lista no Imdb bateu a questão na hora. Jack Lemmon, no mesmo ano, também foi ao céu em The Apartment. As duas escolhas seriam justíssimas, mas eu votaria em Lemmon.

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