sexta-feira, março 27, 2009

Filmes do exílio #5

Para quem acha que a sensibilidade de Clint Eastwood começou a aflorar apenas nos anos 90, nada melhor para mudar de opinião que assistir a seu longa mais obscuro, o belíssimo Interlúdio de Amor, de 73, terceira empreitada do astro na direção, após Perversa Paixão e O Estranho Sem Nome. Breezy, no original, é um surpreendente e delicado filme de amor, que já deixava todas as pistas da existência futura de um Menina de Ouro, ou de sua obra-prima, As Pontes de Madison.

A historinha não podia ser mais simples e batida: garanhão de meia idade encontra garota hippie de mente aberta, e os dois desenvolvem um relacionamento baseado em oposições: rico/pobre, jovem/velho, formal/informal. Como sempre nos filmes de Eastwood, a trama é só um detalhe: o brilhantismo vem do tratamento estoico, minimalista, completamente despido de excessos. São coisas que fazem com que o filme nem tome conhecimento de sua estrutura alicerçada em clichês. Fica apenas a força da verdade que no fundo há em todo lugar-comum.

Vendo esse filme me peguei algumas vezes pensando em Encontros e Desencontros, de Sofia Coppola, uma obra superior. A lembrança vem menos da situação velho/moça do que da confiança dos dois filmes na interação entre as pessoas, na falta de pressa do ritmo dos diálogos, e, claro, dos silêncios. Kay Lenz não resistiria a uma comparação com Scarlett Johansson, mas o rosto de pedra do galã hollywoodiano William Holden fala horrores sobre vida, desalento e segunda chance, tanto quanto o trabalho aclamado de Bill Murray.




Holden, aliás, é o típico caso de ator subestimado pela sua beleza, mas era muito mais que um musculoso all-american boy. Billy Wilder sabia o quanto ele podia ser cínico e lhe deu três grandes papéis, em Crepúsculo dos Deuses, Sabrina e Inferno nª17. Entertanto, no filme de Eastwood sua atuação se aproxima do andarilho fracassado de Férias de Amor: mesmo sendo bem-sucedido na vida, os traços do personagem de Holden passam uma sensação de amargor e tempo perdido da maneira mais generosa possível - o charme e presença de megastar ainda estão intactos, claro.

Apesar de ter uma relação pai/filha e não homem/mulher, o filme de Eastwood mais próximo de Interlúdio de Amor é Menina de Ouro: os temas são praticamente os mesmos, com a diferença de que o diretor envelheceu e deixou marcas mais duras no filme, tornando tudo mais sombrio. A violência que brutaliza as pessoas em Interlúdio de Amor é apenas sentimental, e, em Menina de Ouro, assume uma dimensão física, via boxe. São escolhas diferentes: em 1973 o instável final feliz - "tomara que essa relação dure pelo menos um ano" - é tão belo quando a melancolia do treinador de boxe, a torta de limão, e a lembrança da pessoa amada.

>>> Já sabemos que Isabelle Huppert é a melhor atriz - ou intérprete, de todos os sexos - do mundo em atividade, mas sua carreira é tão prolífica que não se pode afirmar com certeza qual o ponto mais alto deste currículo. Até uns dias atrás eu achava que era a ilustração da alma doente de A Professora de Piano: a mulher amada, mas que nunca aprendeu a amar, vive de relações emocionalmente destrutivas e associa sexo a dor e violência. Michael Haneke matou a charada: nenhum outro ator pode ser tão realista no sofrimento e, ao mesmo tempo, aparentar tanta frieza e intelectualismo.



Em Um Assunto de Mulheres, no entanto, Huppert se supera. É tudo aquilo que Haneke descreveu, e muito mais, com notas de alegria, ironia, sensualidade, divismo... O personagem é dos mais bem escritos da História, exige talentos de A a Z: dona de casa insatisfeita, bissexual reprimida, começa a fazer abortos para ganhar um dinheirinho por fora. Pouco a pouco, liberta-se de todas as restrições morais. Aluga os quartos dos filhos para prostitutas, redescobre o gosto pelo sexo masculino de maneira selvagem e vulgar (sem abandonar a bissexualidade, claro) e desfruta do prazer de poder comprar o que gosta. Ao mesmo tempo, esforça-se para ser uma boa mãe, joga a empregada para cima do marido, e tem uma ou outra inquietação pelas almas das crianças abortadas.

É tanta coisa para administrar, variações, altos e baixos, e jamais percebemos qualquer deslize ou insegurança. O trabalho é absolutamente coeso e natural, sem que Huppert se entregue em qualquer cena à gritaria ou ao excesso. A mulher é um monstro e consegue até mesmo dobrar um diretor do porte de Chabrol, em seus melhores dias. O filme é muito bom, mas às vezes parece que o cineasta está a serviço da atriz e não o contrário.

>>> Georges Franju é um Bresson do mal: utiliza os artifícios de luz branca, atores robóticos e sons puros para sugerir a presença do Diabo, e não de Deus. Judex, de 63, é um show de cinema fantástico dentro dessa moldura de "depuração". O enredo pode ser complicado e absurdo, à beira do Batman, mas o tratamento é admiravelmente monocórdio, lento, fascinante, e insuportavelmente perverso. Nos filmes de Franju as pessoas não morrem de tiro, mas caem de grandes alturas ou são golpeadas com armas brancas. Judex não é tão redondo e macabro quanto o obrigatório Os Olhos Sem Rosto, mas tem diversas cenas de antologia. Como essa:

3 comentários:

André Setaro disse...

Há que se ter uma paciência de Jó para esperar, assim eternamente, Godard. Há um "quê" de Samuel Beckett no título do seu blog. Godard substituído por Godot. De qualquer forma e de qualquer maneira, a nomenclatura foge da mesmice habitual dos títulos dos blogs, apesar de alguns com nomes esquisitos para apresentar um certo "ar" vanguardista.

Mas, mudando de alho para bugalho, você conhece os filmes de René Clair? Há um humor sofisticado e uma elegância pouco vistos na história do cinema. Os mudos são primas obras, a exemplo do "Entr'acte", "Um chapéu de palha da Itália", "Le million", "Sous les tois de Paris", etc. Vi-os todos quando existia, em Salvador, a Casa da França (não confundir com a Aliança Francesa). Há, já no falado, pérolas, como "O silêncio é de ouro", "Les belles de nuit", entre outros. Antigamente havia, entre os críticos, uma "briga" por causa de René Clair e Jean Renoir. Moniz Viana, por exemplo, era do "time" de René Clair. Já François Truffaut matava a mãe por causa de Renoir.

Saymon Nascimento disse...

Só vi dois filmes dele: A Nós A Liberdade, que me impressiona menos que Chaplin e Tati, e O Milhão, que é absolutamente maravilhoso.

Anônimo disse...

Onde posso encontrar "Breezy" aqui em Salvador? Você conhece alguma locadora que tenha? Alessandra