sexta-feira, novembro 02, 2007

O amanhã improvável

O noir é o mais fatalista dos gêneros, mesmo que não seja exatamente gênero, e sim um estilo aplicado em melodramas policiais (?). Vi o comentário de Diego no post anterior, e aproveito para dar gás a umas idéias que estava tentando organizar desde que vi Homens em Fúria, mais um clássico do subestimado gênio de Robert Wise.

A história é antiga – os redatores de Cahiers du Cinema chamavam o diretor de Robert Unwise... Nada melhor que o tempo para decidir quem importa. Wise é geralmente associado aos seus megasucessos Amor Sublime Amor e A Noviça Rebelde, mas tem uma história muito forte nos anos anos 40 e 50, onde era destacado pela excelência técnica e uma visão de mundo amarga, sombria.

Não que isso tenha se perdido nos seus dois projetões vencedores do Oscar. Alguém já parou para pensar na função do epílogo de A Noviça Rebelde? O filme acaba, final feliz, e depois vêm aqueles nazistas, aparentemente do nada. Amor Sublime Amor, um filme que vi uma vez e não gostei, cresce na lembrança. O que há de mais triste do que a paixão sem perspectivas de Tony e Maria, abortada pela violência racial? Entendo os detratores (eu mesmo): a música distrai.

Em Homens em Fúria, o excesso não está à vista – o tratamento é depurado, seco, mesmo que virtuoso. A primeira coisa a chamar a atenção é mise-en-scène rigorosa. Wise constrói o filme em planos fixos estranhos, porque recusam o eixo habitual e filma os atores sempre um pouco acima ou abaixo do rosto, com leve inclinação. Plano-contraplano, e, claro, os detalhes. Há um imenso arsenal de imagens sugestivas que não adiantam a narrativa, mas possuem grande efeito. Num momento de espera dos personagens – o filme também pára – uma boneca na lama, um coelho na grama, um tiro.

Robert Ryan e seu assaltante racista

Como não poderia deixar de ser (Wise montou Cidadão Kane), essa justaposição de imagens fixas é sempre perfeita. Há magníficas transições de seqüências que criam pequenos efeitos de paralelismo nas duas histórias do filme, que se juntam no final: o desfecho de um acontecimento para o protagonista A sempre tem uma mínima implicação invisível (apesar de sugerida nas imagens) para o início de um fato para o protagonista B. O filme está cheio desses momentos Kulechov.

Na seqüência mais brilhante a dama do noir Gloria Grahame (de obras-primas como No Silêncio da Noite e Assim Estava Escrito) bate à porta de Robert Ryan. Ela pergunta ao ex-presidiário qual a sensação de matar. Ele diz que é bom. Os planos e contraplanos fixos (e anormais) vão ficando cada vez mais próximos, até que a câmera chega aos poros dos dois atores, focalizando somente os olhos. Corta para as mãos de Gloria, ela se afasta, ele puxa o cinto do sobretudo dela, que fica de busto despido. Ainda dá tempo de Ryan ir fechar a porta do quarto, e beijá-la (câmera bem perto, e a frase mortal da mulher casada: - Só dessa vez).

Momento wellesiano, e à vera, absolutamente inútil do ponto de vista da historinha. Grahame só entra no filme para fazer essa cena (tem outra antes, rápida). O todo é brilhante não só tecnicamente, mas também pelo nível profundo das coisas que são ditas (aliás, a seqüência vem logo depois de outro diálogo brilhante sobre racismo com Harry Belafonte – o outro protagonista), uma clara escolha de fazer cinema para adultos.

No fim das contas, temos um falso filme de assalto – perfeito e silencioso nas seqüências de ação o suficiente para impressionar o francês Jean-Pierre Melville, auteur de heist movies sensacionais, como Bob, O Jogador, e O Círculo Vermelho. Mas, veja, Melville, tão exímio narrador e cheio das filosofias, não me parece ter também esse tempo infernal de Wise.

Do tempo que se acha o discurso do diretor, perfeitamente expresso no título original, Odds Against Tomorrow. Ele não acredita no amanhã, e manipula com seu domínio técnico a expectativa em relação ao fim. É isso que une Homens em Fúria a Quero Viver (sobre uma condenada à morte esperando a execução) e a Punhos de Campeão, extraordinário filme de boxe passado em tempo real – a ação dura o mesmo tempo da projeção, 72 minutos. (Nesses dois últimos filmes citados, aliás, Wise filma o calvário humano como Bresson jamais conseguiu fazer – com a ressalva de que não vi um ou outro Bresson, mas conheço os “principais”).

***

Daí volto ao início do texto e ao comentário de Diego. Um grande artista como Fritz Lang rende muito bem no film noir justamente pela visão descrente – o amanhã é improvável. Não há segundo de Almas Perversas em que a tragédia não paire sobre os destinos de Edgard Robinson e Joan Bennett, algo amplificado aqui na resolução final, que retoma a estranha moral de O Destino Bate à Sua Porta, roman-noir de James M. Cain, nunca totalmente bem adaptado.

Almas Perversas se sustenta quase que inteiramente nisso – na certeza de que nada vai dar certo e no arremate impactante, que até obscurece as imprecisões que estão aqui e ali, mais precisamente nas atuações. Dan Duryea, por exemplo, o pior ator dos ícones noir, mina a força dramática do filme cada vez que entra em cena gritando. Joan Bennett não tem a menor idéia de como fazer sua dame vulgar e chula, e na dúvida, também grita em poses de falsa vamp.

Ainda bem que o filme se vira no escopo pessimista de Lang e no misto de triste e patético de Robinson, mesmo assim, só perfeito no epílogo. Enfim, um grande filme “pequenas avarias”.

Não vi Maldição, mas ouço as melhores coisas sobre essa fase americana de Lang, iniciada com Fúria e Vive-se Só Uma Vez, filmes aclamados – e um deles tem um novo Henry Fonda no elenco, imagino que tão brilhante como sempre. Sobre M, nada muito diferente, Lang também não acredita no futuro.

Arthur Kennedy, à esquerda da foto

Agora, sempre acho que se fala muito pouco sobre Rancho Notorious, ou O Diabo Feito Mulher, improvável faroeste de Lang com Marlene Dietrich, do começo dos anos 50. A Marlene o que é de Marlene, mas duas coisas me impressionam mais nesse filme. A primeira é a cena do estupro e assassinato da jovem no início, o que motiva a vingança do protagonista contra o amante de Marlene.

O faroeste clássico tinha muitos tiros, mas violência mesmo está guardada para esses momentos infernais. Quanto suspense e crueldade há na contemplação do destino da garota, um brilhantismo de sugestão.

A segunda atração do filme de Lang é o próprio ator-vingador, Arthur Kennedy, sempre um dínamo de ódio. Ver seu rosto obstinado em busca de reparação com sangue já estabelece todo o clima que Lang precisa para fazer seu filme existir. Nada como um acerto de contas previsto para as cenas finais. Eu já disse isso, o amanhã é improvável.

Última digressão (mas nem tanto assim): tem atores que são praticamente definidos nos traços do rosto; Peck e Cooper são a justiça, Wayne é a solidão insuportável. Kennedy seria a representação perfeita da tragédia do fraco.

No violentíssimo (no sentido raro da palavra) faroeste Um Certo Capitão Lockhart, James Stewart chega a uma cidadezinha dominada por um único homem. O tal homem é assombrado por um sonho (profecia? Bíblica? Grega?): vai ser morto por um forasteiro. O que ele não sabe, e o filme nos mostra, é como o filho adotivo (Kennedy) se converte no algoz do sonho. Não sei porque, mas dá para ver na cara dele isso tudo, nos traços do rosto, como se a fraqueza de espírito e suas repercussões violentas fossem uma característica física.

Sempre excelente coadjuvante, a carreira dele rende uma boa semana de cinema – só dos que eu vi, lembro imediatamente da pequena participação como o repórter americano em Lawrence da Arábia, o assustador pai-estuprador de A Caldeira do Diabo, o irmão amargurado de Deus Sabe Quanto Amei e o policial cansado de Horas de Desespero, além do esguio e pouco confiável ex-criminoso de E O Sangue Semeou a Terra, faroeste de Anthony Mann, mesmo diretor de Um Certo Capitão Lockhart.


Nem lembro dele nos filmes, mas ora, o wikipedia também lhe dá crédito em dois filmes geniais do início dos anos 40, ambos de Raoul Walsh (caolho como Fritz Lang): O Intrépido General Custer e O Último Refúgio. Todos os filmes desses dois parágrafos existem em dvd. Caramba, às vezes ele some da mente - também está em Tubarão, de Samuel Fuller, mas ali a maior atração é Silvia Pinal.

5 comentários:

Anônimo disse...

Saymon:
vamos direto ao assunto que me motivou este coment�rio: o elogio == just�ssimo -- de Robert Wise. Faz uns dois anos (na morte do cineasta que eu considero um dos grandes da melhor fase do cinema americano), inclusive peguei uma "briga" com um blogueiro, por esse motivo. Ou seja, considerei Wise n�o s� "subestimado" etc, mas altamente injusti�ado, e o cara veio dizer que era coisa de cin�filo-f� ("at� comovedor", ele ironizou), em torno de um diretor que seria apenas "mediano". Robert Wise? "Mediano"? Parti para a "briga" intern�tica, e foi boa. No final, ficou claro que o rapaz n�o conhecia os melhores t�tulos de Wise, e s� havia visto "West Side Story". Portanto, gostei de ter encontradoo seu blog, com refer�ncias justas �s qualidades de um dos melhores filmes do mestre de "Punhos de campe�o", "Blood Moon" (um filme pouco conhecido dele),"Honra a um homem mau" e outros -- para n�o c citar a obra-prima "Quero viver!", que (concordo) deixa Bresson l� atr�s. em mat�ria de condenados � morte (que todos somos, afinal, mais cedo ou mais tarde).

Anônimo disse...

Engraçado, nesta leva fritzlanguiana também aluguei "Horas de desespero". Mas não reconheci (nem guardei na memória) Kennedy.

Gostei do filme, mas achei um tanto moralista. Chamou-me mais a atenção o Bogart já velho -- não só o personagem, em plena decadência filme adentro, e que tem até certa dificuldade em arrombar uma porta, mas o homem mesmo. De qualquer modo, as rugas e o cansaço no rosto contribuem para construir o facínora.

Wyler, de quem pouco assisti, sempre me deixou curioso pela variedade, digamos, estética, no sentido pobre, de filmes. "Ben Hur", "Wuthering Heights", "Da terra nascem os homens", "A princesa e o plebeu". Bem "variegado" o rapaz.

Mas enfim, sou fã de Bogart, velho ou novo. E naquele Kobish, o ladrão grandalhão com meio cérebro, eu só lembrei de Ernest Borgnine -- um dos maiores atores que já vi, depois de assistir dois de seus filmes apenas ("Meu ódio será tua herança" e "O voo da Fenix", aquele do avião que cai no deserto, com James Stewart).

Saymon Nascimento disse...

Fernando: Queria eu conhecer mais coisas de Wise, da fase boa. Acho que Marcado Pela Sarjeta saiu em dvd, e o resto vou arranjar no emule. Dos cinco filmes dele que vi - os citados no post - meu preferido é Punhos de Campeão, porque é um noir absolutamente sem o habitual plot. É só um flash da brutalização de uma alma - por isso o boxe - como se fosse um conto, preciso, arrojado, perfeito.

Wyler sabe fazer tudo, tudo. Não me lembro de um filme dele que não presta: ele é perfeito no melodrama com Bette Davis (A Carta), na propaganda de guerra (Mrs. Miniver), no filme crítico da guerra (Os Melhores Anos de Nossas Vidas, o filme de vida de Billy Wilder), no teatrão filmado e visceral (Chaga de Fogo), na comédia sofisticada parisiense (Como Roubar Um Milhão de Dólares) e no filme de psicopata (O Colecionador). Se ele não for o mais versátil dos cineastas...

Anônimo disse...

Seria preciso colocar essa (digamos) "versatilidade" de muitos dos melhores cineastas da Hollywood do passado (Wise, Wyler, Huston, Walsh, Wilder, e outros) na perspectiva que � talvez, a mais correta, no caso: a de que trabalhavam para o velho sistema dos grandes est�dios, recebendo os roteiros de muitas produ�es como "tarefas" para executar etc. Alguns se tornaram produtores associados, em certos casos, mas o fato admir�vel � justamente que eles tenham conseguido imprimir suas "marcas" (base da teoria do autor, por sinal), trabalhando com roteiristas e iluminadores que j� conheciam, atores com os quais tinham mais afinidade (se os magnatas n�o atrapalhassem a escolhs dos elencos, � claro, e, enfim, "afinando" os projetos, na medida do poss�vel, de acordo com seus estilos e at� "vis�es do mundo" A chamada Idade de Ouro hollywoodiana parece-me atraente principalmente por isso (e at� na RKO, onde � muito interessante acompanhar um Richard Brooks, por exemplo, conseguindo imprimir qualidade at� a alguns p�fios roteiros aprovados pelo todo-poderoso Howard Hughes)...

Anônimo disse...

Estou divulgando que um AUTÓGRAFO DE INGMAR BERGMAN - com documento de certificação de autenticidade --se encontra à venda no Mercado Livre, neste momento:

VER LINK:

http://produto.mercadolivre.com.br/MLB-64754204-_JM