segunda-feira, março 31, 2008

A Sereia do Mississipi

Achei lindo comentário de Gabriela no blog dela, dia desses, sobre os filmes da menina Coppola, a Sofia: "Ela sabe filmar as nossas esperas". Engraçado como as coisas se comunicam. Essa frase ficou matutando na minha cabeça do mesmo jeito que, há poucos dias, uma linha de diálogo de Truffaut me deixou desconcertado numa de minhas madrugadas insones.

Estava vendo A Sereia do Mississipi, de 1969, o mais hitchcockiano dos filmes de Truffaut. Em geral, a proximidade dos dois diretores é estabelecida a partir da admiração do cineasta francês pelo inglês, e pelo uso de dois temas semelhante em especial: a mulher como instrumento de perdição do homem, de Um Corpo que Cai, e, principalmente, a conturbada psicologia feminina, de Marnie. (Hitchcock escarneceria da idéia de que seu cinema tem um "tema", claro, o que não desmente o fato de que eles estão lá, mesmo que a preocupação principal do diretor seja formal, enfim).

Em seu modo Hitchcock, Truffaut filma esses temas, mas é muito raro que se expresse cinematograficamente da mesma maneira. Seus filmes são tão naturalmente leves, que parecem improvisados mesmo quando rigidamente calculados - à prova de storyboard. A Sereia do Mississipi é a exceção. Há um controle hitchcockiano em cada cena, cada plano, uma câmera deliciosamente insinuante, cheia daqueles planos que o diretor inglês adorava fazer, sem palavras.

Dois personagens conversam, a câmera os abandona e filma um baú suspeito, somente para o espectador. Em outra cena, ficamos sabendo de um golpe através de um golpe de mestre: Catherine Deneuve tenta aplacar a desconfiança do marido desabotoando o vestido e pedindo que ele o abotoe novamente, já que ela não alcança. O espectador tem a certeza imediata que ela é mentirosa.

Enfim, toda a primeira parte do filme é a ilustração de um golpe: Deneuve interpreta uma golpista que se apresenta a um dono de fábrica como a mulher com quem ele trocava cartas e por quem se apáixonou sem conhecer, marcando casamento - ela morava na França, ele na longínqua Ilha de Reunion, próximo a Madagascar. Deneuve é uma fraude, a mulher verdadeira sumiu, etc.



Jean-Paul Belmondo e Catherine Deneuve

Depois do golpe consumado - a sereia vinda no navio Mississipi rouba muito dinheiro e foge - , o marido traído sai em busca de vingança, somente para cair de novo de amores pela golpista. Ele passa a protegê-la da polícia, os dois viram fugitivos, e o filme vira Truffaut puro. Mesmo que continue fazendo citações a Hitchcock o tempo todo, Truffaut relaxa, as cenas ganham aquele tom descontraído que é típico do diretor.

Nessa segunda parte (vou contar até o fim do filme, com alguns spoilers), a golpista se revela mais profunda: ganha um background de traumas e uma história que justifica seu comportamento, sem deixar de ser evidentemente mau caráter, daninha, exploradora. Para complicar, entra a paixão no meio. Para a personagem de Deneuve, é conveniente ser protegida pelo marido, mas a convivência mexe com seus sentimentos. Depois de alguns percalços, ele passa a ser um entrave, e ela tenta matá-lo envenenado, mesmo apaixonada. É novamente descoberta, e novamente perdoada.

Deneuve fica histérica, e vem a primeira grande frase do diálogo: "Ninguém merece ser amada desse jeito!". O marido explica que a ama incondicionalmente, mesmo que ela seja má. Deneuve desaba, e vem a outra fala perfeita, aquela que ficou matutando na minha cabeça, e que mencionei no início desse post: "Estou aprendendo a amar, e isso é muito doloroso".

Amor e dor é mais pobre das rimas, mas, no caso, expressa a imensa complexidade da situação, que é recorrente nos filmes de Truffaut. É difícil amar sem, ao mesmo tempo, fazer mal ao outro. A Sereia do Mississipi pode até ser um filme menor do diretor, mas não deixa de ter suas verdades.

O que isso tem a ver com o comentário de Gabriela? Não sei, provavelmente a perspicácia tanto de Truffaut quanto de Coppola em tentar entender o mundo feminino.

PS: Esse filme foi refilmado recentemente como Pecado Original, com Antonio Banderas e Angelina Jolie. Não vi.

2 comentários:

Omar Monteiro Mendes disse...

Realmente as coisas se conectam. Por estes dias adquiri vários filmes de Truffaut. Foi uma coleção com filmes dele, que saíram encartados em uma publicação. Lembrei imediatamente de você.

Os filmes vinham encartados em uma revista semanal de variedades ao estilo de Veja, Time, Carta Capital (mais parecido com esta última). O nome da semanal é “Le Nouvel Observateur”. Comprei todos.

Os filmes são:

Les 400 coups
Baisers volés
Domicile conjugal
Fahrenheit 451
Tirez sur le pianiste
Jules et Jim
La femme d'à côté
Vivement dimanche

Vendo este seu Post com a referência de Gabriela, lembrei também dela. Não tive muita convivência com ela, mas sua personalidade sempre me cativou. E estes silêncios, o tempo, eu sempre percebi nesta menina e em diversos filmes. É olhar o detalhe sem pressa, apreciando os intervalos. (Quer dizer, esta é a minha perspectiva desses silêncios).

Eu não vi o filme do post, infelizmente por ora. Vi o “remake” sofrível, que vale só bela beleza da Angeline. O filme é bem ruinzinho e tem uma cena de sexo muito artificial. O cara que refilmou não sabe dos silêncios. É um segredo de poucos cineastas.

Se você quiser mando uma cópia de qualquer destes filmes para você seu endereço por email.

alana disse...

Estava procurando por imagens desse filme de Truffaut e encontrei seu blog. Gostei demais do que escreveu sobre ele, e até "peguei emprestada" a foto de Belmondo & Deneuve.
Voltarei mais por aqui.
Um abraço.