De maneira muito diferente, Almas em Fúria se impõe maravilhosamente como uma obra à altura de qualquer outra do cineasta, um turbilhão de encantamento que ganha destaque na sua filmografia por uma questão de gênero: é um filme extremamente feminista (sem o ranço ideológico, por favor), capaz de ver a mulher não apenas como objeto de cena ou catalisador sexual da tensão entre os homens, mas como protagonistas de suas próprias vidas, capazes de lutar de igual para igual e derrotar sem pena quem passa pela frente. Poucos faroestes entraram nessa área: Johnny Guitar, a obra-prima de Nicholas Ray, Parceiros da Morte, o doloroso longa de estreia de Sam Peckinpah, e, em menor grau, o delicadíssimo Rio Grande, de John Ford.
Almas em Fúria não se parece com nenhum deles: é quase uma versão viril e concisa de E O Vento Levou, com uma grande mulher americana de fogo nas ventas, um verdadeiro trator na pele da fantástica Barbara Stanwyck, um assombro, não de beleza, mas de carisma. Vance Jeffords é a herdeira de The Furies, um grande latifúndio construído pelo seu pai, T.C. (Walter Huston, além da perfeição) a partir do zero. Vance tem um irmão, mas é ela quem toma conta do gado, das contas da fazenda e da administração da casa desde que a mãe morreu, e o pai saiu para se divertir e torrar a grana que ganhou a vida toda.
Por mais de uma hora, não há nenhum conflito claro de faroeste, mas apenas o prazer de ver um personagem feminino tão bem resolvido e desenvolvido. Apenas aparentemente masculinizada, com roupas de homem, Vance é uma fêmea indócil, dividida entre dois homens. Juan é o mais velho de uma família de mexicanos que vive em The Furies, a contragosto de T.C., e, claro, completamente apaixonado por Vance. Os dois são amigos desde a infância e vivem tendo encontros furtivos no alto de montanhas de pedra nua. Sempre se despedem com um beijo na boca, e uma frase: “Till our eyes next meet”.
No entanto, Vance está mesmo apaixonada por Rip Darrow, o ambicioso filho de um jogador de cartas que perdeu suas terras para T.C. no pôquer. Ele também encontra Vance no meio da mata, e não deixa de ser um choque ver uma personagem que não é prostituta ou femme fatale beijar dois homens num intervalo de projeção inferior a cinco minutos, e com claras denotações sexuais. O filme é muito adulto sobre isso, sobretudo na relação entre T.C. e a filha: ele sabe ser incapaz de controlá-la, e admite essas aventuras como se ela fosse um homem. Sente orgulho, até, porque sabe que ela pode dobrar todos os homens, mas só se casaria com um que fosse igual ao pai.
As complicações começam quando o dinheiro interfere nessa relação. T.C. arma um golpe henryjamesiano para provar a sede de Darrow pelo dinheiro de sua herdeira. Em seguida, ele fica noivo de uma já passada viúva aventureira (a grande Judith Anderson, sensacional), que começa a se meter nos livros da fazenda e bater de frente com Vance, que não a suporta. É uma briga de foice entre duas mulheres espertas, mas isso é um faroeste e a hostilidade não fica no veneno de chá-e-biscoito. Em um dos muitos rompantes de destempero da protagonista ela desfigura a rival com uma tesourada no rosto, e declara guerra ao pai, que, em represália, manda enforcar Juan, o “amigo” mexicano de Vance.
O conflito do filme está enfim deflagrado, e não sem surpresa, vemos uma família se desintegrar por meio da violência, como é de praxe nos faroestes de Mann. No entanto, o registro aqui é outro, menos trágico e mais épico: a vingança de Vance é financeira, seu objetivo é levar o pai à falência e expulsá-lo da propriedade que ergueu. Parece-me uma coisa muito americana, e extremamente presente no filme: uma sede de terra e dinheiro que a princípio é apenas ensaiada (a própria Vance, a certa altura, manda queimar todos os povoados de mexicanos na propriedade, para facilitar um empréstimo à fazenda), mas que se revela completamente nessa última parte. Em mais uma prova da crença do filme na força feminina, aliás, é pelas mãos de uma terceira mulher que T.C. encontra seu destino, finalmente destituído de tudo que lutou para conseguir.
De alguma maneira, acho que posso dizer isso: tenho certeza que Tarantino viu esse filme. É mais um dos lugares onde a gente descobre sementes para Kill Bill, seja no misto de admiração e conflito da relação homem-mulher, ou na hostilidade que as próprias mulheres nutrem entre si, e, finalmente, como toda essa tensão é resolvida violentamente. Almas em Fúria é um filme raro, e bem à frente de seu tempo.
Outros filmes do exílio:
Não é possível haver um diretor mais preciso que Claude Chabrol. Se hoje em dia ele nos entrega ótimos filmes, não deixa de ser uma pena confrontá-los com um petardo como Ciúme – O Inferno do Amor Possessivo, feito há 15 anos, logo antes de ele fechar a torneira de obras-primas com Mulheres Diabólicas. Ciúme... (no original, só L'Enfer) foi um roteiro não filmado de outro mestre do suspense francês, Henri-Georges Clouzot, de As Diabólicas e O Salário do Medo.
Não há muito o que dizer sobre o filme: o marido acha que a mulher o está traindo, e vai ficando cada vez mais louco com a ideia. A coisa fica mais grave porque a mulher dele nada mais é que Emmanuelle Beart, a essa altura, a mais bela e deslumbrante fêmea sobre a terra. O cara não aguenta. Se a ilustração dessa loucura em sequências de fantasia já é genial, o suspense cresce quando o filme pisa na realidade e mostra a represália do marido louco à certeza de que foi traído. Explode em violência contra a mulher, em cenas montadas com metrônomo e Beart no auge de seus poderes também como atriz.
Ciúme - O Inferno do Amor Possessivo aperta os parafusos sem medo, e Chabrol encerra o filme com uma nota de ironia que só ele é capaz de filmar. Um arraso de imagem e tensão. Maravilha.
Em Direção ao Sul, de Laurent Cantet. Vi esse aqui na tv a cabo, com legendas em português luso. Bom, o cara dirgiu a última Palma de Ouro, Entre Les Murs, mas esse aqui pode ser resumido em uma onomatopéia: ZZZZZZZZZZZZZ. Até Charlotte Hampling tá meia boca.
2 comentários:
Você está cada vez mais erudito em matéria cinematográfica. Seus comentários são precisos e sempre levam ao prazer da leitura - o que é difícil nesta 'contemporaneidade' cheia de clichês e jargões por vezes indecifráveis.
Mann é um grande cineasta, seus westerns, magníficos.
Mas verificando, ao acaso, os links de meu blog, por algum esquecimento, nunca o linquei. Desculpe, pois um blog de alto coturno. Linquei-o agora.
Saymon, sua lista de filmes do exílio está magnifica. O filme de Chabrol merece ser visto, revisto e interpretado sob todos os aspectos, da técnica aos conflitos psicológicos. Me interesso muito pela história do ciúme e esse filme para mim é uma revisita impresionante ao mito de Otelo, tão perfeito quanto! E de fato Setaro, meu mestre, está certíssimo, suas análises estão amadurecendo e tornando-se indispensáveis de ler.
Postar um comentário