sexta-feira, fevereiro 06, 2009

Filmes do Exílio #2

Foi Godard quem disse que os closes de Matei Jesse James, de Samuel Fuller, eram os mais intensos desde o clássico mudo O Martírio de Joana D'Arc, do dinamarquês Carl Th. Dreyer. Godard provavelmente não tinha visto Entre Dois Fogos, de 48, da fase noir de Anthony Mann, o mesmo diretor que se converteria ao faroeste nos anos 50 e faria, com a licença de John Ford, os exemplares mais radicais e impressionantes já vistos no gênero.

Entre Dois Fogos é implacavelmente veloz com uma trama básica de fuga, mas há tantos detalhes explícitos ou sugeridos que o filme se revela muito mais profundo que um policial de rotina. A começar pela fotografia de John Alton: se os melhores noir costumavam ser espetáculos de iluminação inspirados no Expressionismo Alemão, esse aqui deixa pra trás praticamente todos os filmes similares e parece ter sido realmente produzido nos anos 20, com a mesma equipe de Nosferatu e A Última Gargalhada.

É insuportavelmente escuro, as ruas parecem se dissolver na névoa, e os rostos são captados sempre com expressões de horror, sem que os atores precisem ser especialmente teatrais para passar essa clima de apocalipse. Na tela grande deve ser uma experiência completamente insuportável ver o rosto de Claire Trevor projetado no vidro de relógio de parede, enquanto ela toma uma difícil decisão, já nos minutos finais da metragem.



Mesmo com ambientação completamente oposta aos exteriores texanos, Raw Deal revela uma impecável coerência autoral com os faroestes de Mann: também é um filme sobre corrupção humana, e o fugitivo Joe Sullivan (Dennis O'Keefe, perfeito) tem a miséria espantada na cara cada vez que a namorada lhe pergunta porque ele virou bandido. Ele tenta uma resposta inconvincente, mas a questão fica no ar, sugerindo uma intervenção do destino como nas tragédias gregas. É o mesmo mecanismo que fazia com que Arthur Kennedy fosse projetado a matar o pai em Um Certo Capitão Lockhart.

Do mesmo jeito que desconstruía todos seus heróis de faroeste, Mann prepara uma bela armadilha: estabelece a namorada do protagonista como âncora moral apenas para escancarar a fragilidade dos bons: com a arma na mão e na hora certa, ela atira para matar, sem que seja preciso haver nenhuma mudança de caráter ou personalidade.

Numa cena terrível, enquanto o protagonista está isolado na casa de um amigo fazendeiro, um homem da vizinhança entra na sala, assustado com a ação da polícia. Ele acaba de matar a mulher: "Não sei por que fiz isso. Eu a amava". Ele mal entre no filme e já sai da sala, começa a atirar contra a policia e é fuzilado. A pergunta e a agonia do homem continuam no ar.

Outros filmes do exílio:

Um Retrato de Mulher, de Fritz Lang - Esse é o longa que Lang fez imediatamente antes a Almas Perversas, com o mesmo elenco principal: Edward G. Robinson, Joan Bennett e Dan Duryea. Um professor universitário conhece uma mulher na rua, a modelo de um retrato que ele admira numa vitrine. Os dois tomam um drink, vão para o apartamento dela, e, do nada, aparece um ex-amante ciumento, que agride o professor. Em legítima defesa, ele fere e mata o agressor com uma tesoura. Ligar para a polícia ou se livrar do corpo e apagar as pistas? A segunda opção, claro.



Daí o filme mergulha na trajetória masoquista do protagonista: seu melhor amigo é o investigador responsável pelo caso. O professor vai ficar extremamente próximo a tudo que acontece no inquérito, vendo o cerco se fechar em torno de si mesmo não sendo nem de longe um suspeito do crime. Um chantagista complica a situação, e depois do primeiro assassinato, mesmo para pessoas de bem, o segundo vem mais fácil. Saca a frase:

There are only three ways to deal with a blackmailer. You can pay him and pay him and pay him until you’re penniless. Or you can call the police yourself and let your secret be known to the world. Or you can kill him.


O filme não tem a vileza perturbadora de Almas Perversas, muito menos aquele final aterrorizante, mas é um exercício de tensão magnífico, um aula de narrativa, com todos os detalhes e reviravoltas colocados de maneira cirúrgica. Robinson é sempre grande, e Bennett não está caricata como no filme seguinte. Dan Duryea é sempre ruim, mas, ainda bem aparece pouco dessa vez.

Uma pena, portanto, que o filme não acabe um minuto antes do desfecho definitivo e ridículo: há o final perfeito, pessimista, irônico e à prova de justiça, fade, e entra um remendo providenciado às pressas, devido a pressões do estúdio pelo respeito ao Código Hays, que regia as ideias sobre os bons costumes nos filmes americanos.

Passos na Noite, de Otto Preminger: noir bem razoável de Preminger, com o mesmo casal do diabólico Laura, Dana Andrews e Gene Tierney. Algumas cenas de puro engenho, um belo começo e um todo ok, mas os noirs são mais fascinantes quando estamos colados em protagonistas mais ambíguos. Apesar da violência dos seus métodos, Andrews é apenas um mocinho durão e Tierney não passa de interesse amoroso, sem as camadas de veneno já vistas em outros filmes.

4 comentários:

Anônimo disse...

"Godard provavelmente não tinha visto..."

Ah, colé, Saymon. Tudo bem você discordar, mas fazer esse tipo de projeção é forçar a barra.

Anônimo disse...

Sei que você não disse nada contra o filme, mas só para aproveitar a oportunidade da lembrança: Matei Jesse James é f*da!

Saymon Nascimento disse...

Na vera, ele não deve ter visto mesmo, não só pq o esquema de distribuição de filmes B era pra lá de caótico, mas também porque o filme é a cara de Godard. Ele amaria o filme, tenho certeza, sem forçar a barra. Talvez ame, mas nunca achei texto dele sobre. Nem pesquisei tanto assim, é verdade.

Anônimo disse...

Mas não é a isso que me refiro. Não ao fato dele provavelmente não ter visto. Mas à idéia de que ele certamente mudaria de opinião quanto à intensidade dos planos.

"Você há de concordar comigo" é uma frase perigosa.