Pensá-lo em relação a um gênero é falar de melodrama, e dos grossos. Há toda uma tradição inspirada nesse plot, tampouco original, da mãe bondosa e pobre atormentada pela filha esnobe e ambiciosa. Mildred Pierce se separou do marido e está na merda, em plena Depressão. Vai cozinhar para fora e abrir um restaurante até ficar rica, mas, para a filha, não perder o cheiro de fritura.
James M. Cain
Se pela sinopse o romance parece desinteressante, qualquer pessoa familiar à escrita do autor sabe imediatamente que não há nada de choroso nessa história. As palavras constroem, ao contrário, uma trajetória de vítima que seca a cara e vai à luta, americanamente, mas cada detalhe dessa ascensão é visto com um filtro desgraçadamente cáustico.
O efeito é ambivalente. Estamos colados em Mildred Pierce, com ela pro que der o vier, sabiamente eficiente para ganhar dinheiro mesmo sem nenhuma experiência em negócios - enfim, uma natural. Entretanto, mas é difícil não rir alto da coitada, atingida pelas navalhadas de Cain, que, sem escrever isso explicitamente em nenhuma linha, não deixa de se identificar com a visão da filha de Mildred, a adolescente mimada e pestinha. Pobres e jovens americanos, tão patéticos.
Eu separei no texto vários momentos em que essa ironia geral age da maneira mais cortante, mas, claro, não dá para postar tudo aqui. Vou transcrever só um trecho, o mais fácil de achar, porque é final de um capítulo. Nesse momento, vesmos Mildred numa lanchonete, depois de passar um dia inteiro procurando emprego. As garçonetes brigam, e Mildred percebe que pode ser útil ali - suas tentativas de trabalhar anetriores foram frustradas porque ela só sabe fazer coisas domésticas. No entanto, a perspectiva do uniforme e do ambiente é uma tortura.
"Ela olhou para o copo d'água e tomou a decisão final, irrevogável. Não faria aquele tipo de trabalho, se não estivesse passando fome. Pôs uma moeda sobre a mesa. Levantou-se. Foi até o caixa e pagou a conta. Então, como se caminhasse para a cadeira elétrica, ela deu meia volta e seguiu no rumo da cozinha".
Apesar da excelência e da uniformidade do texto, em seu ritmo marcado pelos "impulsos primários da ambição e do sexo", como diz a crítica do NY Times destacada na capa, outra vez tive a impressão de que a habilidade literária de Cain pode ser brilhante no frase-a-frase, mas não o é no todo. Eu li Dupla Indenização (agora editado como Indenização em Dobro), e há a mesma sensação de que o livro foi longe demais no plot, que uma mudança de estrutura deixaria o resultado muito melhor. Em Mildred Pierce, pelo menos o resultado não é exatamente ruim, como em Dupla Indenização, mas é clara a sensação de que o autor não atingiu o auge.
Aliás, Mildred Pierce teve uma excelente adaptação em 1945, Alma em Suplício, dirigida por Michael Curtiz, com uma retumbante Joan Crawford no papel principal - ela venceu seu único Oscar no filme. No roteiro, que teve colaboração não-creditada de Faulkner, um assassinato é plantado na história, o que ajuda a tudo se resolver de maneira mais concisa e objetiva, e melhora o plot. Curiosamente, Raymond Chandler e Billy Wilder também melhoraram a trama de Dupla Indenização em Pacto de Sangue.
Joan Crawford, perfeita em Alma em Suplício
Essa dificuldade em resolver os livros talvez explique porque James M. cain é prioritariamente conhecido por O Destino Bate à Sua Porta, seu primeiro romance. Ali, nada está fora do lugar. Se o texto atinge ápices inatingíveis - o apogeu de todo um gênero - com suas marretadas insuportáveis, há também uma estrutura impecável para dar suporte à essa habilidade literária. É um livro sem pontos cegos, com um final que chega na hora que tem chegar, cheio de impacto. Não é apenas um plot eficiente para dar vazão ao fraseado do cara; é um trama brilhante também, com a força de um trator. Pensando bem, não é só um apogeu de um gênero, é uma das melhores coisas escritas nos Estados Unidos no século passado.
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