segunda-feira, outubro 30, 2006

Mais Short Cuts

>>> Emanuella Sombra inaugurou novo blog, sem perder os trocadilhos do sobrenome. Criou uma endo-blogosfera, página principal + blogs colunas, também assinados por amigos. Inaugurei uma dessas páginas agregadas. Sombra é talento ascendente no jornalismo nacional, pronta para, junto com seu par, Vitor Pamplona, travar duelo de frases amorosamente cortantes numa grande redação. O final é obviamente feliz, como num filme de George Cukor ou Howard Hawks. Pamplona, também cineasta, está mais para autor russo. Seu debut, o curta Notas de Obituário, é uma precisão de atmosfera leste-européia desconstruída.
>>> Não vejo Páginas da Vida. Parece que Manoel Carlos está em fase extrema. Parei numa banca atrás de figurinhas pro meu álbum do campeonato espanhol, e vejo três manchetes de revistas baratas: 1) Clara é raptada; 2 ) Carmem seqüestra Bira; 3) Alex some com Francisco. Com andam as estatísticas desse tipo de crime? Enfim, somente reprise de Renascer ou volta da dobradinha Benedito Ruy Barbosa & Luiz Fernando Carvalho para me colocar na frente da tv de novo. Aliás, dia 20 começam as gravações da próxima novela da oito, aqui em Salvador. Tem um núcleo baiano, de turismo sexual.
>>> Estou cada vez mais fascinado por filmes arcaicos, com soluções narrativas que se alicerçam em somente uma das mídias de onde o cinema se originou (teatro, romance, fotografia, pintura) ao invés de se afirmarem como uma síntese delas todas, ou como “cinema puro”, de “filmes cinematográficos”, quase sempre estripulia de montagem. Por exemplo: Consciências Mortas, de William Wellman, ou Boulevard do Crime, de Marcel Carné. São exemplos de teatro e novelona filmados sem muita “linguagem”, mas que se alojam na cabeça de maneira indelével. Essas obras são pedra no sapato contra a idéia amplamente difundida que não importa o que se conta, e sim a maneira de fazê-lo. A grandeza de Wellman e Carné não vem da administração, mas somente da força dos temas e situações. Claros enigmas. Bom diferenciá-los de coisas como Carta de Uma Desconhecida, de Max Ophuls, ou Rocco e Seus Irmãos, de Visconti, em que a influência do romance é mais que evidente, mas não decorre de apagamento da direção.
>>> É impressionante como não vejo notas falsas na produção de cinema argentina. À exceção de Lugares Comuns, de Adolfo Aristarain, é tudo muito bom. Curioso também que a maioria dos filmes é bem acessível, thrillers, melodramas, comédias. (Lucrecia Martel destoa dessa tendência, com seus excelentes O Pântano e A Menina Santa, mais áridos) Filmes com gente boa, com nuances, complexidades, como as pessoas da vida real costumam ser. Ninguém é um tipo de papelão. A realidade dessa gente é um elogio, com certeza. Mais sobre isso aqui.

domingo, outubro 22, 2006

Garbo?


Para quem se alinha comigo e Inácio Araújo e não vê muita graça na Greta Garbo dos filmes, sempre fascina mais o encantamento dos outros por sua figura éterea. Se a Garbo chata, chorosa e melodramática de Anna Karenina, Grande Hotel e boa parte de Ninochtka mina minha paciência, a Garbo urbana e novaiorquina parece ser bem mais interessante. Duas histórias que não canso de repetir. 1) Paulo Francis, sempre ele, conta a história sensacional da pré-estréia de A Bela e Fera, de Jean Cocteau, cujo público era somente Garbo, senhora de uma sala vazia. O filme acaba, o monstro vira príncipe e a atriz sueca, já aposentada, reclama: “Quero a minha fera de volta!”. 2) Mastroianni narra seu primeiro encontro com a diva, que pediu para conhecê-lo. A primeira fase dela: “Italian shoes?”
Volto a Garbo pelo filtro de Truman Capote, escritor que dosa perfeitamente melancolia e frivolidade. Acabo de ler Os Cães Ladram, meio que para me recuperar do sofrimento físico e psicológico de Os Sertões, clássico do jornalismo (e da narrativa) negligenciado por mim até então. Entre os grandes momentos do livro – e Capote é muito mais gênio em histórias curtas do que em A Sangue Frio -, esse terno e carinhoso texto, dentro do capítulo Nova York, segmento “Cor Local”. Para Gabriela e Fernanda:


“Vi Garbo duas vezes na semana passada, uma no teatro, onde ela sentou ao meu lado, e num antiquário da Terceira Avenida. Quando menino sofri uma série de problemas, passando muito tempo de cama, dedicando a maior parte do tempo a escrever uma peça de teatro a ser estrelada pela mulher mais linda do mundo, e era assim que eu descrevia a srta. Garbo na carta que acompanhava o texto. Mas nem a peça nem a carta foram comentadas, e por muito tempo guardei um ressentimento desesperado, que nunca mais passou, até a outra noite quando, num sobressalto do coração, identifiquei a mulher sentada ao meu lado. Foi uma surpresa vê-la tão pequena, tão vividamente colorida: como Loren McIver disse, com traços assim a gente nem espera que venha cor, também.
Alguém perguntou: "Você acha que ela é inteligente?". Isso me pareceu uma pergunta ultrajante; sério, importa para alguém se ela é inteligente ou não? Sem dúvida basta que um rosto assim exista, embora a própria Garbo possa ter chegado ao ponto de lamentar a trágica responsabilidade de possuí-lo. Não tem graça nenhuma seu desejo de ficar sozinha; claro que deseja isso. Imagino que seja o único momento em que ela não se sente só: se a pessoa percorre um caminho circular, guarda sempre uma certa melancolia, mas não se lamenta em público.
Ontem, no antiquário, ela andava de um lado para outro, observando tudo atentamente, sem se interessar no fundo por nada, e por um momento maluco, pensei em falar com ela, só para ouvir sua voz, sabe; o momento passou, graças a Deus, e ela seguiu até a porta e saiu. Aproximei-me da janela e a vi andando apressada pela rua azulada, ao entardecer, com seus passos saltitantes, longos. Na esquina, ela hesitou, como se não se soubesse para que lado queria ir. As luzes da rua foram acesas, um reflexo criou subitamente na avenida uma parede branca: com o vento a fustigar seu casaco, e sozinha, Garbo, ainda a mulher mais bonita do mundo, Garbo, o símbolo, caminhou diretamente para ela.”
Tradução de Celso Nogueira.


quinta-feira, outubro 12, 2006

O americano, os europeus


Luiz Carlos Merten tem falado muito sobre a necessidade do espectador (ou leitor, ouvinte, etc) ser co-autor do filme. Fazer pontes, criar referências que talvez só sejam válidas para ele próprio, mas que estimulam o raciocínio e apuram o olhar. Desde que vi O Novo Mundo, de Terrence Malick, não consigo deixar de associá-lo com Henry James, escritor norte-americano do século XIX. Ele passou seus últimos anos na Inglaterra, e, na fase final de livros gigantescos, criou prosa muito peculiar. Escrevia grande volume de texto para acontecimentos mínimos. Passava à margem de eventos, pulava os fatos mais importantes da trama, somente para insinuar o invisível. Nesta página, Paulo Francis, provavelmente inspirado por Thomas Hardy, fala da fúria escondida em monossílabos, subentendidos e entrelinhas.


Chego ao filme de Malick, a princípio, pela narrativa. Abstraindo as diferenças entre cinema e literatura, O Novo Mundo apresenta a mesma desarticulação linear, pela montagem. Não se trata de confundir a historinha de maneira formalista, mas de conseguir provocar o máximo de sentimento com o máximo de economia, sem escrever/filmar menos. Quase tudo da última fase de James tem mais de 500 páginas; O Novo Mundo tem 135 minutos, e, se não fosse o corte do estúdio, teria quase três horas.
No filme, o romance entre a nativa Pocahontas e o britânico Capitão Smith (cenário: início da colonização inglesa nos Estados Unidos) existe praticamente sem diálogo, no idílio e no abandono. Quando há o reencontro, a comunicação acontece sem a intervenção inútil da palavra. O ponto alto desta sensação jamesiana é o relacionamento de Pocahontas com John Rolfe, o marido que a acolhe depois da volta de Smith para a Europa. Eles convivem carinhosamente com o fantasma de outro amor fracassado, em silêncio, amparados pelo carinho que sentem um pelo outro.


Pensei que a comparação ficava nisso, mas o tipo de conflito mostrado aqui, de amor, inocência e dever social no século XVII, é muito parecido com o que se vê em livros como Retrato de Uma Senhora ou A Taça de Ouro, 200 anos depois. Nestes romances, americanos ingênuos são manipulados amorosamente por ingleses inteligentes ou compatriotas escolados. A relação, claro, passa longe do maniqueísmo, porque algozes são sempre suscetíveis a paixões mortais, e vítimas tomam o controle da situação, revelando inteligência insuspeita. Mesmo fazendo mal aos outros, ninguém é ruim – e todo mundo perde, discretamente. James, cosmopolita e quase apátrida, é cínico; Malick, “americanamente”, limpa essa perfídia relativa, mas os incidentes internacionais ainda estão lá. O final é perfeito: o amor enterrado para sempre a partir de um acordo calado.
Dias de Paraíso, de 78, também reforça minha viagem. Apesar do cenário Faulkner, a trama é idêntica à de Asas da Pomba. No romance, Kate Croy e Merton Desher precisam de dinheiro para ficarem juntos. Kate aproxima o amante de uma ricaça americana em fase terminal, para que ele possa herdar sua fortuna. No filme, Bill (Richard Gere) aproveita a paixão de um fazendeiro por sua namorada Abby, e planeja um golpe arriscado. No livro e no cinema, o mesmo paradoxo: o understatement excessivo e arrebatador.
Vejam, leiam. Se não concordarem, ao menos terão visto/lido coisas inesquecíveis.

domingo, outubro 08, 2006

Flop


Depois de muita expectativa, Dália Negra chega aos cinemas como um dos piores filmes de Brian De Palma. Problema não é exatamente roteiro confuso, mas a incrível preguiça do diretor. Há um momento muito bom: a descoberta do corpo mutilado da starlet mostrada ao mesmo tempo em que acontece violento tiroteio. De resto, direção desconfortavelmente genérica. Nada dos travellings delirantes que o deixaram famoso e tornaram seus filmes verdadeiras declarações de amor ao movimento e a fluidez das imagens. A câmera, sempre insinuante em Dublê de Corpo e O Pagamento Final (só pra usar dois exemplos aleatórios), parece não existir.

De Palma é grande cinéfilo, tanto que transformou sua filmografia em reorganização das obras que o marcaram, além de retratos do processod e criação da imagem. Dália Negra é oportunidade perdida. Essa revisão do film noir põe a perder a alma do estilo, em prol de perversão mal administrada ao ponto em que conflitos beiram sempre o ridículo, o posudo. Prefiro infinitamente O Homem Que Não Estava Lá, dos irmãos Coen, um show de forma que não perdeu o ponto de vista seco e cruel da vida. Ainda assim, há Hilary Swank, luminosa.

sexta-feira, outubro 06, 2006

A imagem da imagem da imagem da imagem

(texto provavelmente cabeção e pessoal demais pra justificar minha admiração por Vestida Para Matar. não tenho ainda as palavras para melhor definir as idéias. então, caro leitor, considere essas linhas como um ensaio de um texto melhor, que escreverei daqui a dez anos)
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Brian de Palma não filma, edita. Do mesmo modo que um editor de televisão buscando imagens para um programa jornalístico, ele trabalha sempre com material já visto, retrabalhando o arquivo. Vestida Para Matar, de 1980, é o maior exemplo desse comportamento. Há uma mulher de meia-idade esfaqueada (Angie Dickinson) no elevador do prédio de seu amante. Keith Gordon, o filho nerd, investiga o crime com a ajuda da única testemunha (Karen Allen) e do psicólogo da morta. Puro pretexto. Desde a primeira tomada, propondo perigo no chuveiro, De Palma guia o espectador através de cenas inteiras de Hitchcock.
Um Corpo Que Cai, A Sombra de Uma Dúvida e Janela Indiscreta passam pelos olhos, além de Psicose o tempo todo, em estrutura de roteiro, imagens, música. O ritmo sinfônico vem da obra-prima Marnie, com travellings atrás de mulheres criminosas em contra-plongée. Não se trata mais de citação: Vestida Para Matar existe no território da reciclagem precisa de peças avulsas. Quem não tem o repertório, verá um policial meio absurdo e muito tenso, mas não terá acesso ao essencial do diretor.


De Palma não oferece mensagens ou interpretações psicanalíticas, como o mestre Hitchcock. O americano fica com a preocupação com a forma e o tesão por objetos ópticos e de gravação. Em Um Tiro na Noite, ele usa Blow-Up, o filme-forma de Antonioni, para falar de si mesmo: técnico de som em busca do grito perfeito. Recria a cena de O Passageiro - Profissão: Repórter em que uma câmera gira sem parar num quarto, e confunde três tempos de ação através do áudio.
Vestida Para Matar é só imagem. Parte da contribuição para o desvendamento do crime vem das máquinas fotográficas programadas do garoto geek. O testemunho do crime é filtrado por um espelho. Daí a diferença entre criador e criatura. Hitchcock, artificial ao extremo, é obcecado pela instrumento óptico orgânico, o olho. Veja a primeira tomada de Vertigo, projeção do filme dentro do globo ocular. James Stewart não vai acreditar nos sentidos – vê o que é impossível, sobrenatural.


De Palma, por sua vez, situa suas obras dentro da câmera, pondo em dúvida o velho clichê de que um artista usa a vida real como matéria-prima de expressão. De Dublê de Corpo a Femme Fatale, o importante é mediado por espelhos, lunetas, radares e redes de circuito interno. Imagem da imagem da imagem da imagem. Roteiro, atores, diálogos, verossimilhança? De Palma ri na cara disso tudo, colocando helicópteros em túneis e coisas do tipo.
Fica a pergunta: por que tanto formalismo não é esterilizante? Há a resposta fácil. Domínio do ofício, que lhe permite convencer com filmes de gênero de grande apelo. Por outro lado, Deus me perdoe por citar Marshall McLuhan em público, mas os sentidos colonizados tecnologicamente já são pão dormido teórico – o que reafirma o clichê citado no parágrafo anterior. De Palma não faz nada extra-terreno. Um Tiro na Noite, Dublê de Corpo e Vestida para Matar são obras onde esse pensamento é expresso com maior eloqüência – em especial, o último, pela carga de paixão. Um filme para o mestre, um filme para o cinema.


Depois dessa trilogia, vieram os anos 80 e 90, onde “fazer referências” virou praga tão grande quanto o All Star ou Backstreet Boys. Filmes sem graça tentam distrair o público parando tudo para “citar”. Há honrosas exceções, mas demorou até 2002 pra termos um longa tão interessado em forma(tividade?). Moulin Rouge é ainda mais ambicioso que Vestida Para Matar – além do cinema, arrebanha música, teatro, ópera e literatura. Mas isso é outra história.