terça-feira, novembro 13, 2012

Uma paixão tardia por Manoel de Oliveira


Meio difícil achar qualquer texto sobre Manoel de Oliveira que não mencione a sua condição de centenário, mas essa insistência é absolutamente necessária para iluminar o que é o cinema que ele faz, hoje.

Não se trata de amar os seus filmes por condescendência, mas de entender que um olhar de 103 anos é mesmo um olhar de 103 anos, e que este olhar foi formado em outra época, e que a impressão que se tem ao ver os seus filmes mais recentes é de que ele é capaz de conjurar todo um ponto de vista praticamente perdido no tempo por meio de um cinema que seria moderno tanto nos anos 10 do século passado quanto neste século agora. Ver os seus filmes dá a sensação de estar diante de um último homem de alguma etnia, o último falante de uma língua, algo assim.

Eu tenho aquela caixa de 22 filmes de Oliveira, mas nem cheguei perto de ver todos, e meu grau de afeição em relação à sua obra variava entre a indiferença e a admiração contida, a depender do caso. Semana passada, por algum ímpeto inesperado, encarei Singularidades de uma Rapariga Loura e O Estranho Caso de Angélica um após o outro e fiquei completamente encantado, com a sensação de ter visto duas obras-primas absolutas.

São dois filmes contemporâneos, mas que parecem querer nos levar a alguma outra época, no ritmo, no tom da fala, nas coisas que as pessoas falam, nos silêncios, e em interiores que passariam facilmente por cenários de um filme de época sem que isso se converta em uma afetação deliberada, como nos filmes de Aki Kaurismaki. Ou talvez ele esteja ali para registrar a sobrevivência de um certo Portugal antigo na fala e no comportamento das pessoas, na permanência de uma formalidade afetuosa e de uma métrica literária no falar. São filmes tão agradáveis de ouvir quanto de ver.

Se em Singularidades... há a âncora de um texto de Eça de Queirós para pontuar esse estranhamento de tempos, O Estranho Caso de Angélica é um roteiro original que tem o mesmo tom antigo, mas substituindo a fina ironia do primeiro por uma história de paixão sobrenatural, mas sem excessos. Temos imagens de potência sacra obtidas com uma impressionante economia de luz e planos, não quebrados nem mesmo com a inserção de efeitos especiais que provavelmente mais ninguém teria coragem de incluir num filme, hoje em dia.

Esse Angélica fica ainda mais na cabeça. É obviamente perigoso fazer esse tipo de identificação, mas me parece que a história comenta a própria existência de Oliveira no panorama de cinema hoje em dia. Há um fotógrafo, trabalhando profissionalmente com película, revelando filmes no quarto e apenas interessado em registrar profissões em via de desuso. É um homem apaixonado pelas imagens a ponto de por elas ser obcecado e perder a sanidade. A sua morte não é uma morte: o fotógrafo, num plano espetacular, vira efeito especial, filme.

É uma ideia realmente linda e delicada: o filme de um católico romântico e, sim, centenário, apresentar um homem consumido pelas imagens e que nelas vai encontrar o paraíso, o Reino dos Céus. É um Deus do cinema, o cara.