domingo, maio 31, 2009

Livros do exílio #4

Os dois últimos livros que li foram escritos por mulheres. Correntezas, da inglesa Penelope Fitzgerald, venceu o Man Booker Prize em 1979, época em que a autora ainda não havia partido para seus mais famosos romances históricos. A marca maior de Correntezas é uma delicadeza bem plácida, retrato da comunidade de moradores de veleiros à beira do rio Tâmisa, onde a própria Fitzgerald viveu parte da adolescência. É um livro certamente generoso, franco e amoroso com seu grupo de personagens, mas falta algum toque de gênio que o destaque de outras histórias mínimas bem contadas.

Mais desafiador é Chéri, de Colette, livro frequentemente irritante na frivolidade de seu chá com biscoito, mas capaz de mostrar um alcance bem maior que o insinuado inicialmente pela sua carcaça. Começa com uma sucessão de cafés da manhã e visitas para o chá entre ex-prostitutas de meia idade, agora convertida em respeitáveis cortesãs, cada uma delas equipada com um amante pelo menos 20 anos mais novo.



Colette

O forte de Colette não é mesmo o estilo, e seu frufru de salão é de uma banalidade tão grande que chega a ser difícil prender a atenção - ingleses parecem ter muito mais texto para segurar esse tipo de coisa, acho. A obra ganha força, no entanto, por sua abordagem frontal de coisas como sexo, tesão e envelhecimento, e o livro só melhora quando passa a ser uma peça de câmara (ou alcova, melhor dizendo): dois amantes de seis anos percebem que o que viveram era muito mais que cama & diversão, mas algumas coisas infelizmente não têm volta.

Deve estrear até o fim do ano no Brasil a adaptação de Stephen Frears para o cinema. Se o original é alguma indicação, Michelle Pfeiffer vai ter o melhor papel da carreira desde a Mulher Gato.

quinta-feira, maio 21, 2009

Nouvelle Vague 50 anos: TOP 20

Alguns cadernos de cultura já publicaram nos últimos meses edições especiais dedicadas ao cinquentenário da nouvelle vague. No entanto, por mais que alguns filmes anteriores a maio de 59 sejam associados ao "movimento", a explosão da nova onda se dá mesmo com a exibição de Hiroshima, Meu Amor, Acossado e Os Incompreendidos no Festival de Cannes daquele ano.

As aspas em movimento no parágrafo anterior são mais que justificadas quando pensamos os filmes no todo. Não há muita unidade entre eles, ou alguma característica temática específica. No entanto, essa sede de liberdade e leveza que os une é incontornável.

Por esse aspecto fluido de identificação, elaborei minha lista de preferidos abaixo de maneira completamente pessoal, sem me preocupar muito com os critérios de inclusão. Por exemplo: Quem Matou Leda?, de Chabrol, me soa muito mais próximo dos filmes recentes do diretor do que dos que ele fazia na época, como As Simplórias, que veio logo depois e é 100% NV. Louis Malle não era do "grupo", mas não tem quem me diga que Ascensor Para o Cadafalso não é NV. E se eu não sinto nada especial por Paris Nos Pertence, de Jacques Rivette, ele obviamente não aparece aqui. Enfim, só botei um limite no tempo: 1958-1964.

20 - As Simplórias, de Claude Chabrol
19 - Uma Mulher é Uma Mulher, de Jean-Luc Godard



Anouk Aimée, em Lola

18 - Lola, de Jacques Demy
17 - Nas Garras do Vício, de Claude Chabrol
16 - A Moça da Padaria, de Eric Rohmer
15 - Uma Mulher Casada, de Jean-Luc Godard



Françoise Brion, em A Imortal

14 - A Imortal, de Alain Robbe-Grillet
13 - Viver a Vida, de Jean-Luc Godard
12 - Acossado, de Jean-Luc Godard
11 - Trinta Anos Esta Noite, de Louis Malle



Brigitte Bardot, em O Desprezo

10 - O Desprezo, de Jean-Luc Godard
9 - Um Só Pecado, de François Truffaut
8 - Cléo das 5 às 7, de Agnès Varda



Jeanne Moreau, em Ascensor Para o Cadafalso

7 - Ascensor Para o Cadafalso, de Louis Malle
6 - Os Incompreendidos, de François Truffaut
5 - Jules e Jim, de François Truffaut
4 - O Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais
3 - Os Guarda-Chuvas do Amor, de Jacques Demy



Davos Hanich, um corpo cai em La Jetée

2 - La Jetée, de Chris Marker

e o número 1:



Hiroshima, Mon Amour, de Alain Resnais

domingo, maio 17, 2009

Filmes do Exílio #7

O melhor filme que vi esse ano até agora é de 1965, francês, dirigido por Agnès Varda. As Duas Faces da Felicidade redefiniu para mim o que é intimidade e ternura no cinema. Há uma longa cena no meio da projeção que leva ao limite a capacidade de proximidade e sintonia entre duas pessoas. Não é o sexo, mas o pós-sexo: a alegria difícil de controlar por estar junto, a vontade de prolongar o momento e perceber, ao mesmo tempo, sua fragilidade.

É como aquela sensação filmada por Almodóvar em Carne Trêmula, de Francesa Neri cheirando o corpo antes de entrar no chuveiro, ou o carinho nos pés de Encontros e Desencontros - só que amplificada, estendida, quase que criando um novo ápice de carinho. Dura uns dez minutos (mais? menos? é fácil perder a noção), e Varda nem tem medo de colocar a palavra ali no meio. Um diálogo que não tem nada de "foi bom pra você?", mas de "foi e é muito bom pra mim estar com você". É lindo, sensível, sensacional.



Se essa cena em si merece destaque, não é por desnível em relação ao resto do filme: em 79 minutos, Varda faz chover uma nuvem embriagante de lirismo, à moda de seu marido Jacques Demy, só que menos pessimista e sem efeito alegórico. Um homem ama a mulher, filhos, cidade, trabalho. Aí encontra outra outra mulher, que passa a amar também, alcançando uma plenitude não-prevista em qualquer convenção, ao mesmo tempo que continua amando tudo o que já tinha antes: "a felicidade funciona por adição".

Esse equilíbrio acaba não durando, afinal há sempre o fantasma do acaso, mas sempre pode-se recuperar de volta a alegria perdida. Ser feliz afinal de contas é saber lidar com os desastres que aparecem no caminho, sem medo da tristeza, da perda, e do luto. Faz parte.



Varda filma essa ode à vida em cada detalhe, usando seu talento fotográfico para eternizar e valorizar cada momento desses de felicidade em planos lindos, arrebatadores, mas não preciosistas. O filme vai mudando o seu esquema de cores, fica todo vermelho, todo azul, todo amarelo - cada tom para uma emoção.

Tem todo um rigor na tela, algo que impede que sua direção de arte e fotografia tomem o controle, mas que tira da técnica o essencial para estabelecer as sensações que ela, Varda, quer deixar no ar. O caminho mais fácil seria comparar esse filme a alguma obra-prima do excesso, mas eu acho que é justamente o contrário. Entre Wong Kar-Wai e Robert Bresson, Varda está mais para Bresson. Só que em colorido explosivo.

***

O segundo melhor filme que vi esse ano é japonês. Minha introdução ao cinema de Mikio Naruse aconteceu com Quando Uma Mulher Sobe as Escadas, minidrama feminista de 1960, outro tour de force de delicadeza nipônica sobre a transição brusca do país do feudalismo para o século 20, e a mulher no meio disso tudo.



Para se situar dentro de referências orientais, o filme de Maruse é tematicamente irmão das obras "contemporâneas" e agressivas de Kenji Mizoguchi, especialmente seu último longa, Rua da Vergonha. Temos o mesmo universo noturno e as mulheres entertainers, mas se Mizoguchi ia direto ao assunto falando da vida de prostitutas, Naruse prefere centrar seu filme na hostess de um bar, tentando equilibrar sua dignidade entre os assédios dos clientes e a necessidade de aparentar e manter um padrão de vida luxuoso.

Em tom, no entanto, Naruse é marcadamente mais sóbrio, bem distanciado do melodrama, quase jazzy. O Ozu urbano de Early Spring ou Crepúsculo em Tóquio seria referência pela câmera fixa, mas ainda assim uma referência imprecisa, porque Naruse tem uma assinatura só dele. É crítico, mas controlado, sem tragédia, mas cheio de uma agonia discreta.

quinta-feira, maio 14, 2009

TOP 10 Cannes

Mais um Festival de Cannes começou nesta quarta-feira, estabelecendo o que vamos querer ver nos próximos 12 meses, ou mais, a depender da velocidade das distribuidoras. Esse ano a seleção é forte: traz de volta ícones como Tarantino e Lars von Trier, ressuscita Jane Campion e dá mais uma chance a eternos perdedores da premiação, como Michael Haneke e Almodóvar. E ainda tem Coppola, Tsai Ming-Liang, Hirokazu Kore-eda e todo um manu de primeira linha. Resta saber se os filmes vão sobreviver às expectativas. Mas alguma obra-prima no meio vai ter, com certeza.

Para relembrar o que de melhor o Festival já premiou, minhas dez palmas de Ouro preferidas (sempre com a ressalva de várias não vistas, claro):


10 Barton Fink, de Ethan & Joel Coen (1991)


9 Blow-Up, de Michelangelo Antonioni (1967)


8 Gosto de Cereja, de Abbas Kiarostami (1997)


7 Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola (1979)


6 O Leopardo, de Luchino Visconti (1963)


5 A Conversação, de Francis Ford Coppola (1974)


4 O Salário do Medo, de Henri-Georges Clouzot (1953)


3 Otelo, de Orson Welles (1952)


2 Os Guarda-Chuvas do Amor, de Jacques Demy (1964)


1 A Doce Vida, de Federico Fellini (1960)

domingo, maio 10, 2009

Voo livre

Cleópatra é um dos filmes mais incríveis que vi nos últimos tempos. Incrível porque inacreditável, situado numa dimensão paralela, quase alien. O tom dessa revisão da história egípcia no Brasil passa longe do desfile de escola de samba que Hollywood faria nos anos 50, sob responsabilidade de Cecil B. DeMille.

Bressane é etéreo, reflexivo, calmo até mesmo na linda estilização de cenários e figurinos e o uso brilhante de exteriores, quase sempre um mar que não vai dar em lugar nenhum fazendo as vezes do Rio Nilo, algo próximo a Boom!, de Joseph Losey. A direção de arte é tão brilhante que o filme lembra os esforços de Orson Welles em filmar época sem dinheiro algum, apostando mais em ideias visuais do que em reconstituição.



Essas ideias, aliás, garantem ao filme pelo menos uns dez momentos de antologia, desde o já clássico close-up na vagina pintada de preto de Alessandra Negrini (que termina no mesmo loop que Hitchcock fez no olho de Janet Leigh em Psicose - será uma piada?) até o assassinato de Júlio César numa escada, agressivamente montado e musicado. Fotografia de Walter Carvalho é um assombro, provavelmente seu melhor trabalho, junto com Lavoura Arcaica.

Negrini, fora de controle, e Miguel Falabella, teatral e absurdamente preciso, estão em sintonia perfeita com esse filme atordoante, difícil mas inegavelmente fascinante. É realmente um alívio ver que ainda há espaço para esse tipo de voo livre no cinema brasileiro. Sensacional.

quarta-feira, maio 06, 2009

Redimindo Christiane Torloni

Tudo bem que os jogos não passam ao vivo, o Jornal Nacional é de madrugada (e gravado), e os programas passam sempre com atraso, seja de um dia, como no caso das novelas, ou de uma semana ou mais (Video Show, Jô, Huck). Ainda assim, a Globo Internacional tem uma programação melhor que a da Globo regular, que vemos no Brasil.

O principal motivo para isso é o tamanho reduzido dos intervalos (menos anunciantes), o que causa uma necessidade de um número maior de programas, que vêm importados das tvs a cabo parceiras, como Multishow e GNT. Não que isso seja lá grande coisa, mas é melhor que a velha Sessão da Tarde. Sem contar que há a oportunidade de rever atrações que, no Brasil, não serão exibidas mais nunca.

Logo que cheguei aqui, o cartaz do Vale a Pena Ver de Novo era O Cravo e a Rosa, definitivamente a melhor novela da Globo desde Renascer, e último trabalho completo de Walter Avancini. Como as reprises de folhetim também passam no sábado, o Vale a Pena tem programação diferente do Brasil. Agora, ainda estamos vendo Mulheres Apaixonadas, e com sorte, podemos ficar livres de Senhora do Destino.



Sobre Mulheres Apaixonadas em especial, a reprise está sendo uma grata surpresa. Quando vi no horário das oito, a novela não me parecia tão boa, especialmente por causa da chatice politicamente correta das "campanhas" de Manoel Carlos: respeito aos idosos, alcoolismo, mulheres que amam demais... E principalmente o primeiro passo sobrenatural da garota que vê o anjo da morte, situação patética que culminaria no fantasma que perturba Lilia Cabral em Páginas da Vida.

Pois bem, isso tudo é chato, mas concentrar-se nisso nubla o fato de que o núcleo central da novela é realmente muito bom. Christiane Torloni foi muito criticada na época por sua Helena fraca, indecisa, claudicante, em oposição às mulheres mais fortes e carismáticas interpretadas por Regina Duarte, e principalmente, por Vera Fischer, inesperadamente firme em Laços de Família.

A fraqueza projetada por Torloni, vejo agora era justamente a melhor coisa da novela. Temos uma Helena mais humana, vulnerável, falha, de composição muito mais próxima a um personagem de cinema do que das reduções típicas da tv brasileira. Helena empurra um casamento com a barriga, decide se separar sem muita convicção - excelente um capítulo inteiro dedicado a recaída dela com o personagem de Tony Ramos, Téo -, depois firma os pés e sabota deslealmente o relacionamento de seu antigo amor do passado, claro, o indefectível José Mayer. Torloni teve na mão a Helena mais difícil de defender, e saiu inteira, muito melhor do que a caricatura de perua que encara atualmente, na terrível Caminho das Índias.

De resto, Mulheres Apaixonadas tem a força agradável daquele vagar manoelino, uma escrita sem história quase sempre bem azeitada. Pouca coisa realmente acontece, além das polaróides cotidianas do classe média alta carioca. Que bom, enfim, que nos textos de Manoel Carlos não acontece "nada": ele transformou em constante e meio de expressão o pesadelo de todo telenovelista, a "barriga". Criou, numa tv cansada e repetitiva, algo mais ou menos original.

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Em registro totalmente oposto, o da intriga rocambolesca, a TV Pública de Angola exibe a também excelente Força de um Desejo, de Gilberto Braga, com o último lampejo de magnetismo verdadeiro de Malu Mader, acompanhada de elenco afiadíssimo: Fábio Assunção, Cláudia Abreu, Marcelo Serrado, Reginaldo Faria, Selton Mello, uma surpreendente Lavíni Vlasak, e claro, a veneranda Nathália Thimberg.

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Atualmente a Globo Internacional reprisa uma das melhores minisséries da Globo nos anos 90, Engraçadinha. Ontem passaram o capítulo da transa de Claudia Raia e Alexandre Borges na chuva. Algumas coisas de que me lembro muito dessa minissérie: a) direção inspirada, com câmera solta, na mão, por Denise Saraceni; b) uso perfeito da narração em off, especialmente a do personagem de Paulo Betti e seus pensamentos escrotos; c) Maria Luísa Mendonça genial no personagem homossexual mais forte já visto na tv brasileira, sem nenhum tique cômico.

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Não tenho paciência mas abri um Twitter...

segunda-feira, maio 04, 2009

Domingos bloga

Não tenho paciência para Twitter. Se é preciso ler coisas escritas por "famosos", que ao menos tenha a substância de um blog. Por exemplo, Domingos (de) Oliveira, o gênio diretor dos meus filmes brasileiros preferidos, tanto o de todos os tempos (Todas as Mulheres do Mundo) quanto os recentes (Separações, Juventude). Ele tem um blog e eu não sabia.

Escreve às laudas, cinco ou seis de uma vez. Não tem foco, fala de tudo e de si mesmo, e ainda arruma espaço para falar de política cultural. Assim como nos filmes, o melhor de Domingos é a parte confessional, pessoal, reflexiva (no sentido duplo eternizado pela Magda de Sai de Baixo: "Vou pra frente do espelho refletir um pouco". Kenneth Branagh filmou a cena do Ser Ou Não Ser de seu Hamlet também na frente de um espelho, vale lembrar).

Enfim, há histórias incrivelmente sensacionais, e aquela capacidade de soltar umas verdades na cabeça da gente como se fosse aforismo barato. O cara escreve bem até em versão rascunho, como nesse blog, que é um prazer. Sincero, ele sabe disso, e cita uma crítica de Pedro Butcher: "Pode-se não gostar dos filmes de Domingos de Oliveira, mas não se pode não gostar de Domingos de Oliveira".

Minha frase preferida: A arte é a vida sem as partes chatas.

domingo, maio 03, 2009

Livros do exílio #3

Estou há praticamente um mês tentando me livrar desse aclamado À Sombra do Vulcão, de Malcolm Lowry, mas, por mais que eu tente, as páginas não acabam. Imagine ler um livro em que todos os parágrafos são como esse:

Numa pressa tremenda e no mais amical dos ânimos, partiram todos para Tomalín. Hugh, até certo ponto consciente de seus drinques também, ia ouvindo num sonho a voz do Cônsul divagar - Hitler, prosseguiu este, quando pisaram na Calle Nicaragua - que poderia ter estado a um andar abaixo da alameda da casa, se ele antes ao menos tivesse demonstrado um interesse por ela -, simplesmente desejava exterminar os judeus para deter a posse de arcanos como os que eram encontráveis ali bem por trás deles nas suas prateleiras de livros - quando de repente o telefone tocou.


E tem muitos fãs, ora. Anthony Burgess, do sensacional Laranja Mecânica e autor de A Literatura Inglesa, diz na contracapa que esse livro é "uma obra-prima faustiana". Eu só comprei porque me caiu na mão uma cópia da adaptação pro cinema, do venerando John Huston, e decidi ler o original antes, já que tem tanto prestígio... Bom, já cheguei a menos de 50 páginas do final, não dá pra desistir - até porque eu nunca desisto.