segunda-feira, dezembro 18, 2017

Melhores de 2017

Scorsese disse certa vez que nunca termina o filme. Ele simplesmente o abandona. Com listas é a mesma coisa - cansei de ver filmes deste ano e estou oficialmente abandonando 2017. Minha lista de melhores do ano segue abaixo, e pronto. Normalmente eu escrevo um ou dois parágrafos sobre cada filme, mas olha, esse ano eu comecei a escrever e só saiu Moonlight. Os outros que me perdoem.

(Eu tava guardando notas sobre o filme para um ensaio posterior, mas também estou abandonando essa pretensão agora. Vamos ver se o filme sai do sistema)

*

1 - Moonlight, de Barry Jenkins

Passei o ano inteiro querendo escrever um texto que dê conta desse filme sem glorificá-lo pela sua importância extra-cinematográfica, e muito menos puni-lo por isso, mas chega o momento em que simplesmente nos conformamos com a existência dessas reações extremas e esperamos que o tempo ilumine a sua pujança.

Ainda assim, cabe pontuar que pra mim o mérito de Moonlight foi cinematográfico desde o dia 1, já que a administração da tensão insuportável entre os corpos no quadro e da tensão interna que cada um desses corpos carrega é, no meu, entender, a definição exemplar de uma mise-en-scene vigorosa.

Essa tensão é isolada como um gene no DNA, e trazida para o primeiro plano da experiência do filme em todas as suas cenas - é como se 122 anos depois, com milhares de tentativas, alguém tenha conseguido expressar cinematograficamente a sensorialidade da experiência queer (ou de certa experiência queer), resumida nesse "não caber no corpo" que o filme explora tão bem.

(A tensão a que me refiro é perfeitamente ilustrada em ONe Step Ahead, na trilha, cantada por Aretha Franklin: Just one step ahead is a step too far away from you.)

Vejam, citar esse ponto de vista específico não é desautorizar outros pontos de vista que não veem Moonlight em primeira pessoa, e sim tentar iluminar as decisões cinematográficas de um filme muitas vezes visto (apressadamente) como publicitário, sobretudo devido à homenagem aberta do filme ao cinema de Wong Kar-Wai e Hou Hsiao-Hsien.

Cada ruído de imagem, cada anteparo que nos separa dos personagens, cada distorção de som imagem - tudo isso é muito mais que um ímpeto de edulcoração, e sim um reflexo natural de um plano coerente de ilustração de uma experiência, a de não estar em paz de dentro para fora e de fora para dentro. O cinema é o caleidoscópio eu-mundo dessa relação.

Quando o filme avança violentamente em direção a seu desfecho, essa tensão é reduzida a seu essencial, e, portanto maximizada. Há um trecho lindo no Antes de Pôr-do-Sol em que Julie Delpy e Ethan Hawke estão numa van pelas ruas de Paris, e a Delpy vai encostar a mão no cabelo do Hawke, mas recua.

O último ato de Moonlight é esse minuto do filme de Linklater amplificado à última potência, com outros fatores bem específicos impedindo o toque, com as palavras que não saem sem dor da boca de Trevante Rhodes, e com esses corpos, fartos de não caberem em si, transbordando em suores numa mesa de restaurante ou, de modo marcante, numa polução noturna, talvez o momento mais romântico visto numa tela de cinema desde As Pontes de Madison.

Ah, os outros filmes?

2 - Z - A Cidade Perdida, de James Gray
3 - Silêncio, de Martin Scorsese
4 - Toni Erdmann, de Maren Ade
5 - Personal Shopper, de Olivier Assayas
6 - Corra, de Jordan Peele
7 - Até o Último Homem, de Mel Gibson
8 - Joaquim, de Marcelo Gomes
9 - Fragmentado, de M. Night Shyamalan
10 - Martírio, de Vincent Carelli

Calendário de estreias comerciais em Salvador, claro.

segunda-feira, novembro 20, 2017

A Velocidade Terrível da Queda



Em resposta a um repórter da Folha de S. Paulo que lhe perguntava se o verdadeiro massacre sofrido pelo protagonista do seu novo livro era uma reação aos homens estúpidos do mundo artístico da zona sul carioca, Fernanda Torres disfarçou, e foi existencial: "Eu castigaria qualquer um. As coisas me vêm com ironia; a vida é trágica". A Glória e Seu Cortejo de Horrores, o seu segundo romance, é de uma virulência sem fim, mas a sua navalha, ao ferir os seus personagens, não os despe de humanidade. A vida é trágica - este violência não é nada pessoal.

Admirador ferrenho de Fim, a estreia quase acidental de Fernanda Torres na literatura, eu cheguei a essa obra nova com o medo terrível de estar diante de uma fraude, da evidência de que a qualidade estarrecedora do livro anterior fosse sorte de principiante. Não é. Acompanhando a imprensa, até agora não achei nenhuma crítica de verdade ao livro, como se até o resenhismo mais maldoso tivesse medo de se aproximar. Como lidar com o fato de que uma atriz talentosa, filha de dois "monstros sagrados" da tv, teatro e cinema brasileiro, ainda por cima escreva de modo espetacular e publique dois dos melhores romances deste século no país? 

Não é uma hipérbole, é disso mesmo que estamos falando, e já que estamos no terreno do reconhecimento do talento e do privilégio que esse talento - mais um - representa, é bom dizer que o misto de desencanto carioca e ironia perturbadora faz com que Fernanda Torres mereça ser mencionada como pertencente ao mesmo veio literário que Machado de Assis. 

Não se trata aqui de comparar os dois - não seria justo - mas de perceber como esse romance pontiagudo opera de modo muito parecido ao do mestre da Rua de Matacavalos. No fundo, a tragédia da vida é mais evidente quando uma existência é contada em fast-forward, como Machado e Fernanda fazem, em cenários parecidos, mas separados por pouco mais de um século. O humor que transborda do texto parece bater em falso, propositadamente - em vez da gag, o que se evidencia é um profundo entendimento do patético. 

É como se os eventos da vida, reduzidos ao essencial, revelem sempre a sua face mais deprimente, por melhores que sejam os momentos isolados, ou mais vívida a lembrança de alegrias marcantes. Um grande momento do livro é o transe do protagonista, um ator, na memória do seu maior sucesso no teatro, num papel em uma peça de Tchekhov. É embriagante, mas é um átimo, e as consequências mostram que até mesmo as alegrias acabam por reverter-se para o mal. Um casamento de 15 anos, espetacularmente narrado em algumas páginas, rompe-se num segundo, num momento preciso, sem que o texto faça qualquer esforço para torná-lo um grande momento. Até os lances decisivos da vida têm a marca da banalidade.  

Além dessa nuvem massiva de pessimismo que se abate sobre as nossas cabeças durante a leitura, chama muito a atenção o fato de Fernanda Torres ser tão desenvolta narrando em primeira pessoa as agruras de um personagem tão masculino. É incrível - parece que o fato de ser atriz faz com que ela se ponha precisamente no lugar de qualquer outra pessoa, e o gênero nem de longe é uma barreira. Apesar da familiaridade do cenário - Rio, artistas, teatro - o texto tem uma precisão muito específica do que é ser homem, algo que ela já tinha logrado com maestria em Fim.   

Essa precisão, por outro lado, não se manifesta em diálogos, como se esperaria de uma atriz que começou a escrever ficção como uma peça de teatro. A ação é interna, mas cheias de marcas de oralidade. O livro é um relato não dito, represado. Está todo na mente do seu protagonista, como se Fernanda, antes de escrever um romance, estivesse compondo uma personagem e levando essa composição às últimas consequências. Há atores que criam histórias para as personagens que interpretam - Fernanda desenvolve romances inteiros para personagens que nunca vai interpretar. 

A marca da tragédia sem sentido - sim, ela cita a passagem shakespereana do som e a da fúria no romance, por sinal, muito erudito em referências, mas jamais reverente - pode não desaparecer em nenhuma página, mas se há algo que redime a experiência dessa leitura de ser um mergulho unidimensional na depressão é o entendimento de que se a arte não muda o fato de que a existência é um horror, ao menos dá as pessoas algum alento para enfrentar a vida. O epílogo dessa história de derrocada - mais uma vez, espetacularmente bem escrito - mostra que esse alento não é pouca coisa. É tudo o que temos.  










quarta-feira, outubro 11, 2017

Cineastas que odeiam pessoas infestaram a programação de Cannes 2016

(O texto abaixo seria originalmente publicado num projeto de jornalismo em Portugal, mas a coisa não andou e o texto ficou velho. Hoje Lembrei dele, e como os filmes já começaram a circular, resolvi publicar)

Se o cinema pode ser considerado um termómetro dos sentimentos do mundo e se o festival de Cannes permite, por amostragem, encontrar padrões dentro destes sentimentos, o diagnóstico encontrado a partir da última edição do evento, no mês passado, sugere uma sensação colectiva de desencanto e falência da crença nas instituições que mantêm a nós, humanos, organizados em sociedade. Os flashes e os vestidos continuaram lá em todo o esplendor, mas a cada vez que as luzes do Grand Théatre Lumière se apagaram, foi reforçada uma ideia muito consistente de que esta humanidade já se encontra numa curva descendente, muito próxima do seu apocalipse.

O pessimismo generalizado desse festival, no entanto, não é apenas uma constatação sobre o estado das coisas no mundo, mas sim o reflexo de um gesto activo de cineastas - especialmente da Europa - de culpar o homem pelo seu próprio ocaso. Nos filmes apresentados em competição em Cannes, inclusivamente no vencedor da Palma de Ouro, The Square, observa-se um empenho em pôr a espécie humana no microscópio, no seu pior ângulo. Foi um festival de realizadores-deuses, a julgar personagens segundo a sua superioridade moral desencantada, num esforço que transcende a misantropia e tende ao sadismo.

Tal empenho foi valorizado pelo júri presidido por Pedro Almodóvar (de quem se esperaria escolhas mais humanistas, aliás), em suas diversas formas de apresentação. O sueco The Square, de Ruben Östlund, o vencedor da Palma de Ouro, é uma comédia sobre brancos privilegiados de classe média alta que frequentam o universo da arte moderna. São todos ridículos, sem excepções, mas bom, o ridículo talvez seja a forma mais leve de descrença.

Por exemplo, o austríaco Michael Haneke, um veterano nessa técnica de moer pobres humanos para extrair pontos de visto, ressurgiu com Happy End, um filme no qual, ainda na sequência de créditos iniciais, uma criança mata um hamster de estimação e atenta contra a vida da própria mãe. É só o começo das actividades nessa máquina de tortura de duas horas, e desta vez, ao contrário do que ocorre em alguns dos seus filmes, como Caché, não há a mínima possibilidade de empatia. O russo Andrey Zvyagintsev, que apresentou Loveless (o título já diz tudo), aposta na mesma seara: o ser humano não presta.

Nenhum desses filmes, no entanto, se iguala ao monstruoso húngaro Jupiter’s Moon, uma fantasia que foi um passo além e deu o nomes aos bois causadores de tanto mal-estar: a situação política da Europa. No filme, de Kornel Mundrunczó, um refugiado sírio que tenta atravessar a fronteira da Hungria, é alvejado duas vezes por um polícia, mas em vez de morrer, adquire o super-poder da levitação. Um médico em desgraça que conhece o refugiado vai usar o milagre como forma de ganhar dinheiro.

Jupiter’s Moon, de todos, pinta um cenário de horror na Hungria, que parece aqui rivalizar com as Filipinas do realizador Brillante Mendoza como o pior lugar da Terra - só que em plena União Europeia. Não basta a canalhice generalizada. Tudo ainda precisa ser sujo e miserabilista como nos primeiros filmes de Alejandro González Iñarritu. Alegorias bíblicas que quase igualam os refugiados a versões de Jesus Cristo só pioram a situação, por sua obviedade.

Entre todos esses filmes de horror, no entanto, é preciso salvar o também russo A Gentle Creature, de Sergei Loznitsa, outra longa-metragem infernal sobre burocracia, mas que consegue não dirigir a sua fúria contra pessoas ao transformá-las apenas em ícones de um mal maior, o Estado. Não é uma alegoria subtil, especialmente quando os representantes do Estado partem para a violência física contra os cidadãos, mas dado que o objectivo de A Gentle Creature não é falar sobre gente, e sim sobre confronto entre instâncias de poder, o filme é muito bem-sucedido ao mostrar todos os dentes, de forma feroz, contra o regime Putin. É um grande filme político.

Todo esse universo de descrença, no entanto, ganhou síntese num filme mais humanista, mas que retrata bem este momento em que a Europa está sob ataque. Em In The Fade, de Fatih Akin, uma mulher casada com um turco perde o marido e o filho num atentado perpetrado por neonazis. A justiça lhe falha, e ela parte para a vingança. É uma história simples, digna de Charles Bronson, mas mostra como o pensamento liberal e de esquerda se aproxima perigosamente do vale-tudo e da retaliação não institucional quando é ameaçado.

Esse bloco de filmes do mal acabou por minimizar outras expressões artísticas avulsas surgidas na competição do festival, e também fora dela, em mostras paralelas. As duas únicas longas-metragens em português do festival, o português A Fábrica do Nada, de Pedro Pinho, e o brasileiro Gabriel e a Montanha, de Fellipe Barbosa, tiveram pouca repercussão. Filmes africanos passaram em branco.

E mesmo dentro do mainstream do festival, a discussão tecnológica a respeito da não exibição nos cinemas dos dois filmes da Netflix empanou a discussão sobre a qualidade dessas mesmas obras. The Meyerowitz, de Noah Baumbach, pode ir directo para o inferno das comédias sub-Woody Allen, mas Okja, do coreano Bong Joon-Ho, é uma joia, que vai perder muito ao ser visto apenas em televisões, tablets e telemóveis.

Nenhum dos filmes da competição, no entanto, igualou-se a três doces filmes fora de concurso. A primeira grande lufada de bom gosto veio na abertura da Quinzena dos Realizadores, com Um Beau Soleil Interieur, da francesa Claire Denis, adaptado dos Fragmentos de um Discurso Amoroso, de Barthes. Trata-se de um filme lindo sobre amar, ver os relacionamentos falharem e continuar tentando amar. Juliette Binoche, toda coração, sexo e lágrimas, prova mais uma vez ser a melhor actriz do mundo.

Entre os veteranos, aos 88 anos, a também francesa Agnès Varda uniu-se ao fotógrafo JR (o seu nome verdadeiro nunca foi confirmado) para o belo documentário Visages Villages, na qual ambos reproduzem em grande escala em paredes e muros imagens das pessoas que habitam os seus locais. É um filme sobre memória e permanência, num mundo que insiste em transformar em efêmeras as relações das pessoas e dos seus lugares. Por fim, acima de tudo, houve o filme póstumo de Abbas Kiarostami, uma coleção de 24 tableaux abstratos que pode ter, sem exageros, o final mais belo da história do cinema.
Tais obras, na sua convicção de filmar gente e arte de coração aberto, foram o que fizeram o Festival de Cannes ser um pouco mais suportável diante de tanta vontade de afirmar o fracasso humano. Que bom que há quem pense que nós, enquanto espécie, ainda temos jeito.



domingo, março 26, 2017

A Mais Longa Jornada


Muitas vezes as obras-primas são descobertas por acaso. Comprei esse livro há quase 15 anos, num antigo sebo de Salvador, o Berinjela. Havia visto filme Retorno a Howards End, comprei o livro, e achei esse do mesmo autor. Nesse ínterim, li Howards End, Passagem Para a Índia, e, pra mim, o até então melhor livro de Forster, Um Quarto Com Vista.

Há uma semana, depois da experiência desastrosa de um romance nebuloso de um fluxo de consciência incrivelmente mal escrito - O Ocaso dos Pirilampos, de Adriano Mixinge - lembrei da limpidez absoluta do texto de Forster e tirei esse livro da estante.

O Que A Mais Longa Jornada tem a oferecer é muito mais do que um texto de primeira qualidade. O livro é uma bela meditação sobre a nossa passagem nesse mundo, o conceito de legado e obra, e o quanto vale a pena dedicar o único tempo que temos à construção de algo que fique para a posteridade.

Os pólos dessa meditação são dois irmãos, um legítimo, outro bastardo, que não sabem da existência do parentesco. Há certamente intriga nesse drama familiar clássico, mas Forster dedica muito mais que metade das mais de 300 páginas do seu livro às ruminações das suas personagens a respeito de cada momento da vida.

Lugares, tempo, costume e pessoas são descritos com um indolente e arguto senso de observação. Fatos importantes que mudam as peças de lugar nesse jogo vêm sempre abruptamente, em cortes secos, como um choque deliberadamente calculado para refletir as surpresas da vida e a sua falta de lógica.

A oposição entre os irmãos, antes de um antagonismo, é sobretudo o abismo de diferença entre dois pontos de vista. De um lado, um acadêmico de filosofia obcecado em escrever ficção, que cede às convenções da vida e enterra os seus planos justamente por aderir a instituições que refletiriam a segurança da existência: Deus, o casamento, um emprego, dinheiro. Do outro, a explosão sensorial e anti-convencional do bastardo, bêbado, libertino, impulsivo, ateu convicto.

Apesar de estruturar o seu romance como uma oposição clássica austeniana (razão e sensibilidade, orgulho e preconceito), Forster ambiciona mapear o que une os irmãos, não o que os separa, os pequenos detalhes indispensáveis que fazem do mundo um lugar muito mais cinza do que os extremos de uma discussão existencial.

No fundo, sobra a santidade dos sentidos, a terra sagrada, a aproximação possível entre a finitude ("quando um homem morre é como se nunca houvesse existido") e o caráter milagroso desse pequeno intervalo de vida que existe fragilmente, e que pode acabar a qualquer momento, e de forma aleatória, como frequentemente acontece no livro.

Entrando na esfera da especulação, não deixa de ser um resumo da vida do próprio autor bem antes que ela tivesse se desenvolvido. Forster escreveu o seu último livro 46 anos antes de morrer. Segundo os seus diários, perdeu a inspiração logo após perder a virgindade, já perto dos 40 anos, com um soldado ferido na I Guerra Mundial (apesar disso, ainda publicaria, anos depois, Passagem Para a Índia).

O desfecho do livro, portanto, parece antecipar a vida posterior do autor, que largou a ficção e escolheu a militância humanista secular ateísta e uma intensa vida sexual pelos bas-fonds de Londres. No entanto, ao contrário do seu protagonista, cujos contos são recusados por deixarem claro que quem os redigiu não viveu a vida de verdade, Forster foi capaz de entender e escrever sobre a existência antes de usufruir dela com plenitude. E quando a plenitude chegou, sobrou o silêncio na arte.

sábado, março 11, 2017

Silêncio, o livro

Aproveitando a estreia do Scorsese novo, que todo mundo parece ter odiado - não vi ainda - deixo aqui a recomendação do romance fenomenal que inspirou o filme. Silêncio foi escrito pelo japonês católico Shusaku Endo, mas a sua profundidade é bem maior que os limites de uma religião.

Uma vez, ao falar sobre o seu livro Reparação, Ian McEwan disse que a vida era muito difícil para um ateu, porque não havia um Deus para perdoá-lo. O repórter replicou: sustentar uma fé deve ser igualmente difícil, não? McEwan deu de ombros, com um "oh, please, don't get me started".

Endo escreve justamente sobre isso, sobre a dificuldade de sustentar essa fé, e o seu golpe de mestre é conduzir essa fé com o alicerce do cristianismo apenas para, nos momentos finais, reafirmar a sua crença em Deus com a renegação dos dogmas.

O Deus de Endo se manifesta no outro, no ato de compaixão, e, no limite, num ato de apostasia. A ausência de Deus é frequentemente ilustrada como a indiferença do universo.

A tese de Endo é que se o universo acaba nos limites do corpo individual do homem, e se este homem é capaz de encontrar empatia em outro homem - parte do todo capaz inclusive do sacrifício - esse universo não pode ser tão indiferente assim.

Pra mim, é uma ideia bela e profunda, sobre a qual é possível meditar por meses, e digo isso como alguém auto-identificado como agnóstico, e que simplesmente não consegue tirar esse livro da cabeça.

Diante dessas ambições, as discussões sobre o colonialismo que levou aqueles padres até os confins do Oriente para disseminar a religião parecem minúsculas, liliputianas. Shusaku Endo não está falando de política, e sim de toda a nossa existência.

(A tradução da Planeta infelizmente não é direta do japonês, como costumam ser as da Estação Liberdade. Ainda assim o texto corre fluido e impactante).

domingo, fevereiro 26, 2017

Moonlight



Talvez seja fácil dispensar Moonlight como mais uma história de formação, um coming of age de minorias (negro, queer), mas o filme me parece bem mais que isso. É um filme sobre a instância sensorial e sensual dessa formação, do poder dos sentidos como construção de uma identidade, em vez do pensamento.

É por isso que o filme é todo fragmento, e nem tô falando da sua estrutura de tríptico: cada cena vem depois da outra como se houvesse um mundo de elipses entre cada uma delas, e como se o que fixasse os momentos que vemos fossem sobretudo momentos do corpo: o silêncio, o sangue na boca, as palavras que não correspondem à imagem, uma mão agarrando um punhado de areia.


Fazia tempo que eu não via alguém filmar corpos humanos tão bem assim, com tanta expressão. É um cinema antropocêntrico, do gesto, do detalhe desse gesto, cujo padrão de referência me parece ser o Wong Kar-Wai dos anos 90. É algo que o diretor Barry Jenkins nos faz relembrar com a inserção da versão de Caetano Veloso para Currucucu Paloma, que estava em Felizes Juntos bem antes do Fale com Ela de Almodóvar, curiosamente outro filme muito importante sobre o corpo.

Essas presenças humanas incendeiam Moonlight do início ao fim, com esses filtros que chamam a atenção apenas o suficiente para o realce de sensações, e logo em seguida parecem discretos, como se houvesse todo um mundo de emoções que vão sempre permanecer fora da tela - não no extracampo, mas nas elipses.

Os personagens vão mudando de corpo com a troca dos atores em cada uma das fases, mas tudo permanece orgânico, porque o filme deixou desde o início o espaço para que completemos as lacunas entre uma cena e outra, entre um intérprete e outro.

E o filme nos deixa ainda preencher as lacunas dentro de uma mesma cena. O segmento final do filme talvez contenha as imagens mais sensuais que vejo em muito tempo, sem que absolutamente nada aconteça, e de um jeito que a tensão sexual se converte milagrosamente em algo bem mais profundo e delicado.

É um filme de imagens todas essenciais, onde vemos apenas o que precisa ser visto e nenhum segundo a mais. Pessoalmente, a minha imagem preferida é de André Holland fumando do lado de fora do seu restaurante. Dá pra sentir o cheiro da fumaça do lado de cá da tela.

sábado, fevereiro 25, 2017

La La Land

La La Land taí provando pra gente que um filme pode até dar as suas vaciladas, mas se consegue um final matador, o impacto do todo aumenta exponencialmente. Sensacional aquele número final, uma mistura improvável de Sinfonia de Paris com A Última Tentação de Cristo, um momento raro de sucesso no filme de dar pungência ao número musical, uma razão de ser.

Na maior parte do tempo, o filme não consegue sustentar a ideia de ser um musical, ou seja, os números estão ali para seguir um conceito. Não é assim que um musical funciona. Pra você pôr uma pessoa cantando em vez de pensando, ou falando, o filme tem que convencer de que a intensidade de cada momento é mesmo inevitável, e de que só a música dá conta. Você pode ter um fiapo de história, mas se a música se fizer sentir como inevitável ou a encenação de uma emoção pedir e implorar por essa suspensão da realidade, o musical vai dar certo.

No caso de La La Land, achei o todo meio cambaleante, a começar pela oportunidade perdida dos dois primeiros números. Tenho a impressão de que como ninguém mais filma musical, os diretores perderam a noção de coisas básicas.

Tipo: você para um viaduto pra filmar e decide fazer tudo em plano sequência, de perto. Como diria Trump, WRONG! O filme perde totalmente a noção de espaço e a gente fica implorando por um plano aberto grande, que só vem quando a música tá no fim. A mesma coisa pro número da festa: na hora da cena explodir, o cara mergulha a câmera na piscina e ninguém vê patavinas. SAD!

A sorte do filme é que as baladas são boas, City of Stars é um chiclete mental avassalador e que essa atmosfera Jacques Demy tem mesmo um grande charme. A construção da aproximação do casal tem o momento genial do planetário, com aquele passeio pelo espaço que não deixa de ser uma versão sideral do passeio pelo Central Park de Fred Astaire e Cyd Charisse em The Bandwagon.

O filme se arrasta um pouco no meio e os conflitos da historinha de boy meets girl parecem artificiais, algo que só percebemos porque faltaram pelo menos mais duas canções ali no meio, de preferência um showstopper com algum bom coadjuvante, o que o filme praticamente não tem. Enfim, eu gostei da coisa toda mais como conceito do que como execução, mas nem de longe é um mau filme.

E, voltando ao final, eu gosto especialmente como ele funciona como uma ilustração literal da ideia do musical como reconstrução do mundo real, como se fosse uma coisa política. O escapismo não é alienante, é um ato de revolta, mas, vejam, no final a realidade acaba transbordando. Sejam pelos desencontros da vida, como nesse caso, sejam por motivos mais frontalmente políticos, como a guerra da Argélia para Os Guarda-Chuvas do Amor, a realidade sempre assombra. O cor-de-rosa do musical no fundo não nos quer fazer esquecer dessas agruras, e sim realçar por oposição tudo o que é terrível na existência.

Hidden Figures, Fences

Eu gostei de Hidden Figures. É um tipo bem especial de cinemão que anda meio em extinção, a tal Sessão da Tarde para adultos. Com diferentes graus de seriedade, é aquele tipo de filme com adultos protagonistas, vivendo problemas mais ou menos de adultos, mas dentro de uma área de segurança hollywoodiana que faz com que nada muito desafiador seja visto na tela no sentido formal, e com conflitos sempre reconhecíveis. Luta contra o sistema. Falta de reconhecimento. Superação de obstáculos. Etc.

Hidden Figures é isso, e também um filme de mulher forte. Não vai ter super-herói, mas vai ter machismo (e no caso, racismo), e todas as tintas das personagens que não são protagonistas sem bem traçadas. Há a rival racista, o engenheiro preconceituoso, o chefe de bom caráter. Não tem muita nuance, e mesmo a violência (para isso, ver Selma) é mantida a uma distância segura.

Enfim, isso aqui é mais um de uma longa linhagem que vem de filmes como Erin Brockovich, Nos Bastidores da Notícia, Norma Rae, Alice Não Mora Mais Aqui. É perfeitamente inofensivo, mas é o tipo de produto perfeitamente inofensivo com gente que não costuma ser protagonista de produtos perfeitamente inofensivos como esse. Isso faz com que, além de perfeitamente inofensivo, em 2017 ele seja um filme necessário. Não à toa, foi um sucesso absoluto de bilheteria. É redondinho.

*

Fences: teatro filmado daqueles superantiquados, mas devidamente ancorado numa atuação monumental de Denzel Washington, talvez no grande momento da sua carreira. Ele não baixa o tom da transição do palco para a tela e defende um personagem maior que a vida com notável aplomb. Sua fala parece maníaca; sua mania de grandeza, insuportável. Mas de repente vem o silêncio e é impossível olhar para qualquer outro lugar da tela. A sua presença se impõe.

Viola Davis repete a sua rotina com excelência, com o célebre catarro e tudo na hora do choro. Ela vai ganhar o Oscar, mas será uma das maiores marmeladas da história. Não é coadjuvante nem aqui nem na China.

Infelizmente, ao contrário de outros teatros filmados recentes - como os dois últimos filmes de Polanski - não há mais nada o que dizer do filme além dos atores. Não sei se foi preguiça ou otimização, mas não há uma imagem sequer que chame atenção na coisa toda.

Jackie

Jackie é o segundo filme de Pablo Larraín no qual vemos a necropsia de um chefe de Estado assassinado. O primeiro foi Post Mortem, no qual, no acto final, o escrivão protagonista regista as observações do médico legista de Salvador Allende, mais um cadáver no meio do monte de corpos que inunda o ato final do longa de 2010, praticamente um perturbador filme de zumbi.

Não vi o primeiro longa dele, Fuga, mas de Tony Manero em diante, Larraín orbita os momentos decisivos da política em diferentes distâncias. Em Tony Manero, Post Mortem e O Clube, está a consequência das mudanças bruscas na História na vida das pessoas comuns. Em No e Neruda, ele se aproxima dos protagonistas dessas mudanças. Agora, nos Estados, um Jackie, ele parece fazer um zoom-in direto para o centro do mundo, com um filme sobre a morte de John Kennedy.

Apesar do título, não é um filme sobre Jackie, e sim sobre o luto e a resiliência. Jackie é apenas um símbolo, um avatar desse luto, uma vez que, como confessa a um padre, no fundo ela está tão distanciada daquele homem quanto o povo americano, apesar de ter dois filhos com ele. O que importa a Jackie, e ao filme, é a construção de um legado, o jeito como a história de um homem vai ser construída e eternizada.

A construção do filme nos relatos de Jackie a jornalistas (um entrevistador, as câmeras que percorrem a Casa Branca antes da morte de Kennedy, a vontade de Jackie de ser vista com o vestido manchado pelo sangue do marido) sintetiza isso, a história como mise-e-scène. Nada se sabe sobre Jackie ao final desses 100 minutos, além da sua vontade de construir o lugar do marido e a sua despedida (e ponto de partida, na verdade) na história americana.

Natalie Portman, dirigida a atuar no limite do artifício, é uma representação perfeita desse teatro. Ela não convence como Jackie, mas não precisa convencer; ela representa um ícone, o que faz todo o sentido para as ambições do filme.

Esse momento definitivo quando se decide como a história será escrita tem, mais uma vez as tintas de horror e, ao mesmo tempo, o gelo que Larraín imprime à sua obra. A trilha sonora sobe aqui e ali, assustadora, a câmera percorre e frequenta esses bastidores, a edição retalha esses dias decisivos em fragmentos essenciais. Belo filme.