terça-feira, julho 27, 2010

O Sinal

Engraçado quando um filme parece ter uma fraqueza tão evidente que esta debilidade acaba por converter-se em mérito... Sempre quis ver o argentino La Señal, desde que foi lançado fora mas teve a distribuição brasileira abortada pela Buena Vista. O filme foi dirigido pelo mega-astro Ricardo Darín em parceria com Martín Hodara depois da morte do autor do roteiro e do livro em que o guião se baseia, Eduardo Mignogna, que acumularia a cadeira de realizador não fosse o câncer que o levou com apenas 46 anos.

Pois bem, La Señal "sofre" justamente deste problema de fraqueza evidente, falsa ou não. Depois de uma meia hora extremamente firme dentro do cotidiano de dois detetives particulares numa Buenos Aires de 1952 moldada para o noir, o filme substitui as discretas e pungentes inquietações existenciais apresentadas até então nas entrelinhas pelo trilho do filme de gênero: uma mulher fatal entra em cena, afirmando correr perigo. O marido é um perigoso gângster escandinavo com uma fortuna arrecadada em negócios pra lá de sujos.



Mortes, tiros e noites azuis de quase preto-e-branco. Darín e a mulher fatal dão um beijo lancinante dentro de uma sala de cinema, numa sessão do que me pareceu ser o clássico Laura, de Otto Preminger. Sobe uma música feita para enredar e até então discreta, já que o filme tem um passo vagaroso, calculado, como se temesse o futuro imediato. Darín, surpreendentemente, ignora a cautela e se atira de cabeça, rumo a um final altamente telegrafável e sem surpresas.

Será mesmo? Será que essa previsibilidade não apenas reforça a natureza irreversível do que há de mal nas pessoas, "no que caga a vida"? Não seria a paixão uma alternativa de suicídio consciente? Sam Spade manda a femme fatale pra câmara de gás. Darín, marcado em cada ruga por tudo o que viu, deixa-se cair enquanto a vida lhe escorre, silenciosa e calma, tranquila e sem estancamento.

Enquanto paira o enigma, sobem os créditos com Sinatra cantando Cole Porter, a mesma What's this Thing Called Love? que Woody Allen usou pra fechar sua obra-prima, Maridos e Esposas. Fecho perfeito também pro filme argentino, e sua quieta elegância e completa frontalidade na lida com gêneros clássicos do cinema, essa coisa que assusta tanto os cineastas brasileiros. Que andamento, que domínio narrativo, que respiração das imagens! Dá uma bela sessão dupla com Aura, o noir moderno de Fabían Bielinsky à Irmãos Coen, também estrelado por Darín.

segunda-feira, julho 12, 2010

O Importante é Amar

No final de Tudo Sobre Minha Mãe, os primeiros títulos dos créditos finais são uma dedicatória do diretor Pedro Almodóvar a três atrizes que o impressionaram em sua juventude: Bette Davis, Gena Rowlands e Romy Schneider. O que as une são atuações de primeira grandeza em papéis de atrizes imaginárias em A Malvada, de 1950, Noite de Estreia, de 77, e O Importante é Amar, de 75, respectivamente.

Qualquer cinéfilo iniciante conhece a criação estudada e venenosa de Bette Davis. Um mais iniciado, devido ao culto cada vez mais ensurdecedor e merecido a John Cassavetes, com certeza já deu de cara com a atormentada estrela de Gena Rowlands. O filme do polonês Andrzej Zulawski, no entanto, permanece dolorosamente pouco visto, celebrado. É o mais radical dos três, e talvez por isso, o menos redondo. Indispensável, mesmo assim.



Assim como Rowlands, Schneider entrega uma das interpretações mais intensas e à flor da pele da história, tirada da carne, numa instabilidade de corpo inteiro. Sua atriz pornô com aspirações dramáticas não fica um minuto parada na tela, a não ser em breve closes: é como se os 24 quadros por segundo não dessem conta de registrar a sua imagem, sempre em ebulição, fervendo. Um dínamo.

Seu corpo nu é o passo não-dado por outras atrizes-vulcão dos anos 50 e 60, especialmente americanas: pense em Susan Kohner em Imitação da Vida, Natalie Wood em Esta Mulher é Proibida, Jane Fonda em A Noite dos Desesperados, e Dorothy Dandridge em Carmen Jones. Schneider vibra até na ponta dos dedos, e não usa a sexualidade escondida como motor de suas tormentas. O sexo é aparente, e é mais um canal de entrada das diversas violências que a martirizam. Ao mesmo tempo, é por onde extravasa o fluxo de amor e carinho que insiste em sobreviver em sua alma doente.

Schneider venceu o primeiro César de melhor atriz da história do cinema francês. Me parecia um enigma que alguém na face da Terra pudesse ter superado a Isabelle Adjani de A História de Adele H., de Trufô. Superou, mas Adjani correu atrás: anos depois, trabalhou com o mesmo Zulawski e alcançou outro de seus pontos altos na carreira, febril, com as veias saltando na garganta em Possessão. Venceu o César que havia perdido, além do prêmio de melhor atriz em Cannes.

Em tempo: por mais difícil que seja tirar os olhos de Schneider nesse filme, Klaus Kinski faz uma marcante participação coadjuvante com um ator gay porra-louca. Notável.