Encarnação do Demônio, de José Mojica Marins, é o segundo grande choque de artificialismo no cinema brasileiro em 2008, depois de
Falsa Loura, de Carlos Reichenbach. A cinematografia nacional me parece extremamente cansada em seus clichês de realismo: silêncio, calmaria, e uma defesa de direção de intérpretes baseada na transparência.
O bacana é o não-ator, a técnica não presta, e atores profissionais devem se submeter a preparadores de elenco para se despirem de seu tiques. Hum, não há como não bater palmas para o efeito alcançado por Walter Salles e Daniela Thomas em
Linha de Passe, mas será esse o único caminho do cinema? Por que não vejo um filme nosso bom ser, por exemplo, adaptado de alguma peça de teatro, com atores medalhões e texto sólido. Será medo do fantasma do academicismo? Ou uma idéia equivocada de que o realista é superior ao artificial?
Linha de Passe e a ditadura do realismo
Tanto temor acaba transformando a via régia em outro clichê gasto: é indisfarçável certo tédio em sessões como as de
Cão Sem Dono, de Beto Brant e Renato Ciasca, ou
O Céu de Suely, de Karim Aïnouz, por melhores que sejam esses filmes. Vendo o argentino
Leonera, de Pablo Trapero (produzido por Salles, da mesma linhagem Wenders, fiquei convencido que o filão acabou: colonização à parte, precisamos de um DePalma, um Verhoeven, um Desplechin.
Ah, claro, tem que prestar também, porque tirando exceções pontuais (
A Via Láctea, de Lina Chamie;
O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger) a única tendência de nossa ficção fora desse círculo citado que presta é o favela thriller da 02, cada vez mais responsável: que viva o excelente
Cidade dos Homens, de Paulo Morelli.
Zé Celso rouba a cena
Pois bem, o filme de Marins é mais um que pinta fora dessa linha. Ou melhor, borra tudo, sádica e violentamente, com seus escalpos sendo retirados, mulheres estripadas e cabeças cortadas. É uma obra impressionante pelo conservado poder de choque de Mojica, e tem uma das melhores seqüências filmadas em todo o mundo nessa década: a visita ao purgatório, com José Celso Martinez Corrêa de diabo, ou Deus. Mojica revisita de maneira muito feliz a cena do inferno de
Esta Noite Encarnarei em Teu Cadáver, seqüência que é uma obra-prima de 10 minutos do cinema brasileiro, mais que o filme.
Pena que o filme sobreviva basicamente desse horror jogado no ventilador, e se equilibra completamente no gore. Atualizado,
Encarnação do Demônio perde aquele tom de história de trancoso contada no interior, últimos registros de Brasil semimedieval, em que a população sai numa caça às bruxas com tochas em punho. Mojica no trânsito, na favela, ou balançando a cabeça por ver adolescentes cheirando cola é risível, quase patético. Seria melhor mantê-lo isolado, em algum fim de mundo, à
O Homem de Palha. Sem essa velha magia, perde-se a loucura, a paranóia (ditadura militar, alguém?), e sobra um grande ilustrador do dantesco. O que é grande coisa hoje em dia, mas, na balança dos outsiders, sou muito mais a
Falsa Loura de Carlão.