quarta-feira, abril 25, 2007

Preferidos

Sem tempo para postar, mas encaminho uma coisa que fiz para o Blog do IBahia. Colocamos nossos livros preferidos, com um texto curtinho. Tanta coisa para dizer, essas paradas nunca dão certo. Segue texto:

Enquanto a Bienal do Livro acontece no Centro de Convenções, nós do IBahia compartilhamos com vocês nossos livros preferidos. Eu, Saymon Nascimento, começo essa brincadeira:

- Judas, o Obscuro, de Thomas Hardy - fascinante romance inglês do século XIX, em que um homem pobre e inteligente passa a vida tentando entrar na universidade. Tem um dos momentos mais forte que já vi num livro - Judas, o protagonista, tenta inabilmente abater um porco. A cena se alonga, o porco sangra, em lento desespero.

- As Asas da Pomba, de Henry James - Uma garota em busca de ascenção social aproxima o amante jornalista sem dinheiro de uma milionária com doença em fase terminal. Se tudo der certo, ele leva a herança. Brilhante jogo de manipulação emocional.

- Os Maias - Episódios da Vida Romântica, de Eça de Queirós - O clássico menos valorizado de Eça, redescoberto depois da minissérie da Globo. O enredo é conhecido - Carlos e Maria Eduarda não sabem que são irmãos e se apaixonam. Nas entrelinhas, a observação em ritmo lento do escritor português sobre como as pessoas levam a vida, e como o tempo atenua mas não cura certas cicatrizes.

- Os Sertões, de Euclides da Cunha - Este relato da Guerra de Canudos busca uma tridimensionalidade dos acontecimentos que não é somente a do jogo terra, homem e luta. É a perseguição da profundidade em cada descrição, em cada mínimo evento, para desencavar no sangue derramado os rastros de séculos de injustiça. Difícil, mas indispensável.

- O Destino Bate à Sua Porta, de James M. Cain - Seminal novela dos anos 30, uma das responsáveis pelo auge artístico do romance policial norte-americano. Cain deixa de lado os detetives particulares e se aproxima dos assassinos Frank e Cora, párias em busca de uma vida melhor. Violento, rápido e sensual, influenciou escritores do porte de Albert Camus.

Boa leitura.

Clique aqui para ler os preferidos de Moacyr Scliar, Elisa Lucinda, Nelson Motta entre outros.

E fiquem com esse vídeo legal. Um cara com cara de francês cantando no violão "Que reste t-il de nos amour?", clássico de Charles Trenet. Para cinéfilos, essa música foi eternizada em Beijos Proibidos de Truffaut, um dos filmes mais simpáticos e românticos da história. Esse cara cantando me lembra Truffaut também - parece que o vídeo foi feito para uma namorada. Tive até uma idéia de roteiro. Garoto e garota num curso de francês, o cara apresenta Truffaut para a garota com essa música. Bem besta - mas se conseguisse um tom remotamente Beijos Proibidos, já valeria a pena.



domingo, abril 15, 2007

Sem padrão de qualidade

Imagino a dona de casa insone e o marido dorminhoco. Hebe na tv, fazendo propaganda de Hipoglós. Onze e meia, a chamada do SBT Realidade. A breve pergunta na cama de casal: “Será que é Ratinho imitando o Linha Direta?”. Desamparada pelo título e pela posição incômoda na grade inconstante do canal de Silvio Santos, entra no ar o segunda edição do programa de Ana Paula Padrão, depois de abandonar a bancada do telejornal do horário nobre.

Ao invés de programa popular indignado, a empolgante aventura de James Bond para falar sobre aquecimento global. Somente um repórter na tela nos dois primeiros blocos, Marcelo Torres. Ele começa em Davos, na Suíça, e até o fim do programa terá passado por França, Inglaterra, Alemanha, Etiópia e Ilhas Maldivas e Índia. Ana Paula, editora-chefe, fica num estúdio cheio de telas de TV, bonito até, mas na incômoda posição de parecer coadjuvante no próprio programa. Parece a M de Judi Dench.

O ritmo do programa é pretensamente espetacular, por isso, demasiadamente apressado. A apresentadora-editora faz a “cabeça”, introduz o repórter, mas continua offs intermináveis cobertos por infográficos e imagens de agência. De pára-quedas, a passagem do repórter. Sem parar de falar, este cobre com sua voz todas as entrevistas. Os personagens não são identificados, nem ouvimos sua voz. O cara branquelo é o engenheiro alemão; o negro é o taxista indiano. Só.

Esse andamento vertiginoso mascara bem o mau jornalismo. Por mais editado que o programa seja, o todo me lembra um espetáculo teatral. O personagem aparece para sua passagem, e, enquanto troca de roupa para aparecer em outro continente, o off nos distrai. A voz desse off pode ser tanto da apresentadora quanto do repórter. Ana Paula aparece no meio das matérias, como se a narração fosse um dueto musical, ou jogral. Ela briga por espaço sem sair do ar condicionado.

Hipnotizados pelo volume de informação provavelmente bem pesquisado no Wikipedia, o casal que estava vendo Hebe talvez tenha a impressão de estar vendo um programa didático. Que nada, pura encenação. Tanto lugar do mundo, tanta milhagem, e pouco sabemos dessas pessoas e cidades. Ao mesmo tempo, o Repórter Record exibia em levada muito mais careta um programa sobre tráfico de drogas. Parte era bem careta – pessoas falando sobre como foram destruídas pelo vício. Paralelamente, uma calma e bela reportagem sobre os plantadores de coca na Bolívia, editada com uma precisão tão clássica que era possível sentir a altitude dos Andes.

Tanta pressa e vontade de mostrar a Silvio Santos que dinheiro está sendo gasto nesse SBT Realidade é ainda mais terrível pelo histórico de Ana Paula Padrão. Depois da geração de Pedro Bial e Roberto Cabrini (ambos na fila do hospício, hoje em dia), ela foi a correspondente internacional mais importante do telejornalismo brasileiro nos últimos dez anos. Tinha a sempre saudável vontade jornalística de ver gente e conhecer histórias que lhe fazia superar as materinhas com a Torre Eiffel ou a Ponte de Londres de fundo, ou, ainda pior, o terraço do prédio da Globo em Nova York.

Lembro especialmente da belíssima reportagem em duas edições do fantástico, sobre a Guerra do Kosovo. Estava lá em tom grave mas não sensacionalista o horror do conflito e a conseqüência na vida de pessoas comuns. Ela trocou o ataque/contra-ataque dos discursos pela história de uma família separada na ocasião. Muito bem assessorada, conseguiu reunir os dois grupos perdidos – um havia ficado em Kosovo, outro conseguiu fugir para os Estados Unidos, se não me engano. Tudo isso sem o tom sensacionalista-urgente-moderno da trilha sonora de sua empreitada no SBT. Vamos ver se melhora.

quinta-feira, abril 12, 2007

300, um filme que banaliza a tragédia do mundo atual

Arnaldo Jabor, especial para Esperando Godard*

Ninguém escreveu nada sobre esse matadouro kitsch que é o maior sucesso de bilheteria da América? Ninguém se incomodou com o espetáculo brutal que o filme 300 nos oferece? Será possível que, com o chamado 'fim das ideologias', os críticos fiquem constrangidos de condenar o óbvio, que esse filme só tem o objetivo de nos vender um show de decapitações e estripamentos, com corpos esquartejados em câmera lenta, se aproveitando de um fato histórico para legitimar uma picaretagem sangrenta? Hoje, ficou feio para a crítica colocar um freio ético aos filmes. 'Ah... na pós-modernidade, seria ideologismo de minha parte...' Não. Uma das funções principais da crítica é a localização e a defesa do 'humano'; é a denúncia da traição às conquistas da razão. Já se criou também nas bordas da cultura de massas uma periferia 'cult', com seu panteon de intocáveis: 'Ahh... porque esse filme é baseado no Frank Miller, o mesmo de Sin City (aquela aula de estripamentos 'cult'). Ahh... porque Will Eisner, ahh... porque o fulano, ahh o Elmore...' E os nomes pingam das boquinhas dos articulistas dos cadernos de cultura. Eu cag... solenemente para Frank Miller. A arte também foi enxotada pelos efeitos tecnológicos da moda: 'Ahhh... foi tudo filmado em blue screen e depois eles puseram as paisagens...' O resultado é uma ridícula folhinha de coloridos kitsch, pores-do-sol tingidos de lirismo cafajeste, penhascos góticos laranjas e azuis, trigais românticos, tudo para ornamentar o grande campo de concentração, o 'Auschwitz' digital do desfiladeiro. Muita gente boba pensa: 'Ahh... que efeitos lindos...' Não são. São horrendas aquarelas de subacadêmicos.

Eu me pergunto: por que a morte vista, nua, os membros voando, as cabeças decepadas, por que isso faz tanto sucesso? Por que o jorro de sangue tem tal poder sobre o público? As hipóteses sociopsicoanalíticas são muitas. Não as quero convocar, pois seria muita colher de chá para esse show vagabundo. Talvez não possa deixar de dizer que há no mundo um voyeurismo banalizador crescente diante da morte violenta, como a nos preparar para o 'horrorismo' que vem por aí, do qual o Iraque, Bush, o aquecimento global, o terrorismo sem trégua já são indícios. Os jorros de sangue parecem orgasmos de um filme pornô de guerra. Temos de tudo no matadouro das Termópilas: há até pilhas e muralhas de cadáveres que evocam nitidamente as valas comuns da 2ª Guerra nos campos de concentração e tudo 'embelezado' com os eternos contraluzes e os filtros polarizadores. É uma vergonha... O mercado tem a capacidade de antever a bosta que vem, a shitstorm que ronda, para fazer pré-vendas. Falo isso porque mais de 100 milhões de pessoas vão ver. Em breve veremos, em vez de protocolos de Kyotos assinados, aparelhos protetores para os ricos se livrarem do aquecimento que vai torrar os miseráveis. Aliás, vocês, jovens, verão, porque eu, graças a Deus, estarei quentinho debaixo da terra.

Na Ilíada, o maior monumento da história da literatura (no Brasil, com a única tradução decente, feita por Carlos Alberto Nunes - Ediouro), há também muita morte e sangue. Mas, lá, escrito há 2.500 anos, em outro contexto, esses momentos não são como o exibicionismo sádico do filme; as mortes são rituais trágicos, com as armaduras caindo com fragor nas lutas dolorosas. Há o pranto, a dor, o amor, há o desespero de Aquiles pela morte de seu amante Patroclos, há a dor de Heitor, tudo é um tratado maravilhoso da uma humanidade que nascia com uma esperança de grandeza ética. No filme, convocam meia dúzia de 'valores' para justificar os espartanos, como defensores da 'tenacidade pela liberdade' parecendo o treinamento dos fuzileiros americanos, representados por uma academia de 300 halterofilistas boçais. Que saudades dos grandes épicos humanistas, como o genial Spartacus ou mesmo Ben Hur, Quo Vadis, tantos...

O massacre sádico é narrado por uma voz off 'clássica', falando em 'glória e coragem' com lugares-comuns que parecem os discursos de Wolfowitz ou Rumsfeld, justificando a invasão ao Iraque ou até indiretas referências ao Irã (a antiga Pérsia, lembram?) Os espartanos, militaristas, totalitários, que seriam os 'republicanos' da Grécia Antiga, são elevados ao ápice da cultura grega, ao contrário de Atenas, onde se aninhavam 'filósofos e pederastas', como diz o próprio Leônidas no filme, ele que parece um paralelepípedo falante. Não há um ator decente entre os americanos.

Sem ufanismo, o único que cria alguma arte é Rodrigo Santoro, que surge numa espécie de alegoria de escola de samba (será que os inspirou?) e que nos passa uma personalidade ambígua, entre a piedade e o ódio, entre delicadeza e violência, uma duplicidade até sexual, diante dos brutos que o olham como ursos boçais.

Os americanos amam o espetáculo da morte, não há dúvida. O 11 de Setembro teve algo de realização de desejo, já previsto nos Godzillas da vida.

Ninguém criticou a violência do filme. Os filmes que foram mais combatidos pela crítica americana como 'violentos' foram os de Tarantino ou o Blade Runner, o genial clássico de Ridley Scott, quando o que se dá é o contrário.

A violência em Tarantino é ilógica, paródica. Para Tarantino, não há mundo real; real para ele são as imagens de sua cabeça de cinéfilo. O cinema comercial de Hollywood transforma a vida humana em clichês ridículos e Tarantino usou os clichês para falar da vida humana. Ele mostra que somos todos clichês. Ao ser cínico e violento, ele expõe nossa ausência de compaixão. Ao adotar o debochado cinismo, ele nos faz saudosos de alguma humanidade perdida. Ao não dizer nada, ele diz tudo.

Tarantino conseguiu poluir a limpeza do mainstream com a dúvida de uma linguagem herdada de Godard e Sergio Leone. Em seus filmes, temos prazer de rir da superficialidade da violência, o que expõe e condena o problema maior da sociedade americana: a violência da superficialidade.

*Texto retirado do Caderno 2 do Estadão de terça. Ah, não vi o filme, mas o texto vale mesmo que Jabor esteja errado sobre 300. Muito boas as opinões colaterais sobre jornalistas, Tarantino, etc,

sexta-feira, abril 06, 2007

Sobre medusas

Leio em Nacocó ferozes restrições de Vítor Pamplona e Diego Damasceno ao posicionamento da crítica baiana em relação a Ó Paí, Ó, de Monique Gardenberg, em cartaz nos cinemas. Sem entrar na procedência dos argumentos de Pamplona e Damasceno – até porque não vi o filme, embora tenha cá minhas desconfianças – prefiro falar da última frase do texto: “A crítica está querendo dirigir o filme”. Se esta afirmação tem tom de repreensão, bom, só posso discordar. Óbvio que a crítica quer dirigir o filme – é sua vocação, razão de ser.

Quando um espectador qualquer sai do cinema (ou do teatro, de um concerto) reclamando da mentira que salva o herói no último momento, o que quem paga o ingresso deseja é que a resolução da intriga fosse realizada de maneira mais convincente. Pode até sugerir ao acompanhante: “na verdade, acho que ele deveria ter feito isso, isso e isso”. Natural.

Com a crítica não é diferente, guardadas as proporções da especialização. Difícil conceber esse freio de passividade que permitiria ao analista expôr o que vê de errado em uma obra de arte sem propôr implicitamente a correção - mesmo que não se saiba exatamente como. Apesar da última frase do texto publicado em Nacocó – se fosse eu, ela não seria publicada -, Pamplona e Damasceno concordam com o que digo ou entram em contradição, afinal de contas, cobram de João Carlos Sampaio justamente a tomada de posição, a indicação do “caminho do meio”.

O crítico não é necessariamente arrogante por fazer proposições para um processo que deve ser realizado de maneira orgânica e sensível. Na verdade, ele tenta preencher os claros (consciente da impossibilidade de “fechar” seu trabalho, se for um bom profissional) provocados da arrogância ou falta de discernimento do artista, por vezes incapaz de entender o que a obra de arte lhe pede. O crítico isolado tenta sem esperanças fazer a reparação de algo já consumado, a obra de arte física que não pode ser alterada sem intervenção do artista. A medusa solitária é um escultor maneta - transforma em pedra, mas não pode dar forma a seu Pigmaleão.

Aí entra a crítica, o coletivo de analistas. Em conjunto, os críticos se não alteram a obra fechada, preparam o terreno para como ela será recebida. Não por acaso, nesse ponto, o erro mais comum é o mesmo dos dois lados: o artista insensível submete a forma ao pensamento de modo desordenado; a crítica molda o produto a sua visão - principal acusação dos autores do texto de Nacocó a Sampaio e Claudio Marques. Se isso procede, como já disse, ainda não sei.