terça-feira, abril 05, 2016

O centenário de Gregory Peck

Gregory Peck não é o meu ator preferido, mas talvez seja o astro do cinema clássico que eu mais gosto. Ele entra em cena e os filmes ganham uma mistura quase paradoxal de charme e gravidade. É ele o ator-símbolo da luta pelas boas causas no cinema, aquele que era sempre advogado ou jornalista, mas também era a elegância em pessoa, o dono da finesse rara num ator de sempre saber a palavra certa, a inflexão econômica para não apenas transmitir o que o seu personagem precisa, mas para fazer com que todo mundo à sua volta não apenas o admire, mas por ele se apaixone.

Numa década marcada pelo furacão Marlon Brando, como os anos 50, ele conseguia projetar o seu magnetismo sem pingar uma gota de suor. É como uma se suas feições de pedra e o seu corpo sempre trajado num terno impecável o tornassem ao mesmo tempo invisível e o centro das atenções. Por isso que é tão difícil definir: todos os atores da sua época áurea (45-65), como Brando, Lancaster, Newman são definidos por traços físicos. Gregory Peck, acima de tudo é presença.

Claro que hoje, no seu centenário de nascimento, todo mundo se lembra daquele que foi escolhido o maior herói do cinema americano, o idealista advogado Atticus Finch de O Sol É Para Todos, que ousa defender um homem negro acusado de estupro em pleno sul racista e atrasado. Amo o livro e o filme e Peck nos dois (li o livro depois e é impossível não imaginá-lo em todas as páginas), mas o meu Peck do coração é o jornalista malandro de A Princesa e o Plebeu.

Repórter falido da sucursal de um jornal americano em Roma, Peck encontra por acaso uma princesa em fuga, Audrey Hepburn. Ele tem uma pauta gigantesca nas mãos, e finge não conhecê-la para servir de cicerone pelas ruas da capital italiana e conseguir uma reportagem incrível. Sua decisão no final, cheia de beleza e dignidade dão uma inesperada lição de ética e jornalismo mesmo dentro de uma das melhores comédias românticas da história - talvez a melhor, com sua licença, Lubitsch. Há o jornalismo, mas a vida passa na frente.

Vê-lo como um ídolo de matinê não significa dessexualizá-lo. Como bem lembra Martin Scorsese na sua série sobre o cinema americano, existe uma sexualidade em Hollywood antes e depois de Duelo Ao Sol. Quem o vê explodindo de tesão ao lado de uma igualmente incandescente Jennifer Jones percebe que além do astro digno e elegante, há um ator capaz de fervor e fúria, mas sem transformar isso em tique, como os descendentes menos talentosos de Brando.

Outro papel dele que adoro, também com William Wyler na direção (o mesmo de A Princesa e o Plebeu), é o protagonista de Da Terra Nascem os Homens, um raro faroeste na sua filmografia e na do cineasta de Ben-Hur. A figura citadina e democrata de Peck entra em conflito imediato com o interior sem leis do filme, onde as coisas se resolvem a tiro. Num plano maravilhoso no duelo do desfecho ele pisca o olho fazendo a mira, mas decide não matar o oponente. Ele estava acima daquela selvageria, mas jamais parece arrogante. É apenas o homem que anuncia a mudança para tempos melhores.

No sistema de estúdio os atores raramente eram desafiados e cada um tinha a sua área de atuação. O que fazia Peck tão cativante é justamente isso: ele se especializou em ser nas telas um arauto da tolerância.