segunda-feira, novembro 20, 2017

A Velocidade Terrível da Queda



Em resposta a um repórter da Folha de S. Paulo que lhe perguntava se o verdadeiro massacre sofrido pelo protagonista do seu novo livro era uma reação aos homens estúpidos do mundo artístico da zona sul carioca, Fernanda Torres disfarçou, e foi existencial: "Eu castigaria qualquer um. As coisas me vêm com ironia; a vida é trágica". A Glória e Seu Cortejo de Horrores, o seu segundo romance, é de uma virulência sem fim, mas a sua navalha, ao ferir os seus personagens, não os despe de humanidade. A vida é trágica - este violência não é nada pessoal.

Admirador ferrenho de Fim, a estreia quase acidental de Fernanda Torres na literatura, eu cheguei a essa obra nova com o medo terrível de estar diante de uma fraude, da evidência de que a qualidade estarrecedora do livro anterior fosse sorte de principiante. Não é. Acompanhando a imprensa, até agora não achei nenhuma crítica de verdade ao livro, como se até o resenhismo mais maldoso tivesse medo de se aproximar. Como lidar com o fato de que uma atriz talentosa, filha de dois "monstros sagrados" da tv, teatro e cinema brasileiro, ainda por cima escreva de modo espetacular e publique dois dos melhores romances deste século no país? 

Não é uma hipérbole, é disso mesmo que estamos falando, e já que estamos no terreno do reconhecimento do talento e do privilégio que esse talento - mais um - representa, é bom dizer que o misto de desencanto carioca e ironia perturbadora faz com que Fernanda Torres mereça ser mencionada como pertencente ao mesmo veio literário que Machado de Assis. 

Não se trata aqui de comparar os dois - não seria justo - mas de perceber como esse romance pontiagudo opera de modo muito parecido ao do mestre da Rua de Matacavalos. No fundo, a tragédia da vida é mais evidente quando uma existência é contada em fast-forward, como Machado e Fernanda fazem, em cenários parecidos, mas separados por pouco mais de um século. O humor que transborda do texto parece bater em falso, propositadamente - em vez da gag, o que se evidencia é um profundo entendimento do patético. 

É como se os eventos da vida, reduzidos ao essencial, revelem sempre a sua face mais deprimente, por melhores que sejam os momentos isolados, ou mais vívida a lembrança de alegrias marcantes. Um grande momento do livro é o transe do protagonista, um ator, na memória do seu maior sucesso no teatro, num papel em uma peça de Tchekhov. É embriagante, mas é um átimo, e as consequências mostram que até mesmo as alegrias acabam por reverter-se para o mal. Um casamento de 15 anos, espetacularmente narrado em algumas páginas, rompe-se num segundo, num momento preciso, sem que o texto faça qualquer esforço para torná-lo um grande momento. Até os lances decisivos da vida têm a marca da banalidade.  

Além dessa nuvem massiva de pessimismo que se abate sobre as nossas cabeças durante a leitura, chama muito a atenção o fato de Fernanda Torres ser tão desenvolta narrando em primeira pessoa as agruras de um personagem tão masculino. É incrível - parece que o fato de ser atriz faz com que ela se ponha precisamente no lugar de qualquer outra pessoa, e o gênero nem de longe é uma barreira. Apesar da familiaridade do cenário - Rio, artistas, teatro - o texto tem uma precisão muito específica do que é ser homem, algo que ela já tinha logrado com maestria em Fim.   

Essa precisão, por outro lado, não se manifesta em diálogos, como se esperaria de uma atriz que começou a escrever ficção como uma peça de teatro. A ação é interna, mas cheias de marcas de oralidade. O livro é um relato não dito, represado. Está todo na mente do seu protagonista, como se Fernanda, antes de escrever um romance, estivesse compondo uma personagem e levando essa composição às últimas consequências. Há atores que criam histórias para as personagens que interpretam - Fernanda desenvolve romances inteiros para personagens que nunca vai interpretar. 

A marca da tragédia sem sentido - sim, ela cita a passagem shakespereana do som e a da fúria no romance, por sinal, muito erudito em referências, mas jamais reverente - pode não desaparecer em nenhuma página, mas se há algo que redime a experiência dessa leitura de ser um mergulho unidimensional na depressão é o entendimento de que se a arte não muda o fato de que a existência é um horror, ao menos dá as pessoas algum alento para enfrentar a vida. O epílogo dessa história de derrocada - mais uma vez, espetacularmente bem escrito - mostra que esse alento não é pouca coisa. É tudo o que temos.