quinta-feira, maio 29, 2008

Falsa Loura

Carlos Reichenbach já tinha deixado claro numa entrevista que sonhava em fazer um filme protagonizado por Kelly Key, a cantora de Baby Baba. Quem lê o blog dele sabe da afeição por essas não-atrizes de corpo maravilhoso e presença cheia de sensualidade. Carlão é adepto de um divismo sensacionalmente vulgar.

Estava vendo meio curioso o Falsa Loura, ainda tentando me situar, quando entra na tela uma esfuziante Suzana Alves, ex-Tiazinha do H. A partir dali, o filme me pegou de vez. Não porque Suzana seja uma grande atriz, claro, nem porque seus atributos físicos ainda causem surpresa, mas porque percebi que Carlão ia pisar fundo no acelerador. Nada de realismo intimista por aqui, mesmo que o cenário seja de periferia, no caso, a paulista.



Cauã Reymond canta "Noites Vazias", em cena do filme

Falsa Loura é extremamente engraçado, a ponto de parecer muitas vezes uma sátira. A mulher do título é Silmara - a genial Rosane Mulholland, filha do ex-reitor da UnB -, operária que tem dois relacionamentos com astros populares, daqueles que fazem sucesso em Raul Gil. Tudo é muito exagerado, mas extremanente carinhoso. Reichenbach não debocha: sua aproximação do brega, principalmente por meio das músicas do filme, é sempre cheia de amor, generosa. A gente ri junto com o filme, e não dele.



E aí vem a grande rasteira, a lição de Silmara, que merece ser preservada aqui. Basta dizer que, sem sair do registro brega-exagerado, Carlão faz um filme extremamente elaborado, inteligente, sagaz. Falsa Loura tem dentes.

Esse título, aliás, é dos mais precisos. Marca a relação do filme com a velhíssima mas sempre pertinente dicotomia entre realismo e artifício, e mostra como se pode ser verdadeiro por meio do embuste, da falsidade. Mil firulas de arte não tem o poder dramático do último plano desse filme, com aquela trilha tirada de um dos hits cantados pelo personagem de Cauã Reymond, um dos astros populares. O outro é Maurício Mattar.

(Numa cena importante no final, Rosane e Mattar dançam à noite, sob os olhares do filho do cara. A cena é tirada de A Moça com a Valise, de Zurlini, um dos filmes preferidos de Carlão. Não é apenas uma citação gratuita, mas um manifesto. O filme de Zurlini tem esse mesmo veneno, lobo em pele de cordeiro, melodrama que não reduz complexidades. Sendo exagerado, é mais profundo)

domingo, maio 25, 2008

Jogando para o público

Antes de ir ao cinema essa semana ver Chega de Saudade, meu último registro de Cássia Kiss era de um cabelo branco grande, numa cena com Malu Mader, vista em meio a um zapping. Depois de visto o filme, só posso achar que a Globo é a pior coisa para o cinema nacional. Quantos atores muito bons deixam de fazer filmes para ficar colocar perucas absurdas e falar textos idiotas, todo dia, às 18h?

Cássia até que tinha estilo envenenando meio mundo naquela novela das oito, há um tempinho, mas não era nada comparado à economia e à sutileza dela em Chega de Saudade. Diz sem falar, morde o lábio, desiste de passar um batom. Ela não precisa de palavras.

Stepan Nercessian, também no filme, vi hoje num comercial da Zorra Total. Vejam o abismo. O cara se sustenta trabalhando no pior programa da televisão e, do nada, larga uma atuação linda no filme de Laís Bodanzky. Tem mais uns 10 atores no longa que eu chamaria, sem pestanejar, de brilhantes - o que inclui uma inesperadamente tocante Betty Faria, exibida diariamente na novela das oito com a importância de um objeto de cena, um móvel do cenário.

O filme é isso, um salão de baile, pequenas cenas da vida das pessoas que se cruzam na pista, nada de muito ousado, a princípio. No entanto, o filme se destaca como uma jamanta na nossa produção. É humano, bonito, sincero, e completamente acessível. Coisa de argentino.



Nercessian e Kiss: sensacionais

Parando para pensar: o Brasil tem feito muitos bons filmes (ficção/longa) nos últimos três ou quatro anos, mas eles são inevitavelmente de acesso limitado, difíceis, artsy (com exceção do excelente Cidade dos Homens, de Paulo Morelli). Não dá para jogar O Céu de Suely, Cão Sem Dono ou mesmo Cinema, Aspirinas e Urubus na cabeça de qualquer público.

Do lado de lá da grama, além de coisas extremas como os filmes de Lucrecia Martel, há material de muita qualidade no cinema extremamente simples de Juan José Campanella, Carlos Sorín, ou Daniel Burman. No caso de Pablo Trapero, o cara sai do complicado Do Outro Lado da Lei, e logo depois entrega um acessível e adorável Família Rodante, sem perda de qualidade. (Família Rodante, aliás, é a Pequena Miss Sunshine, se esse aí fosse bom).

Da safra argentina, Chega de Saudade lembra muito os filmes de Campanella, O Filho da Noiva e Clube da Lua. Não em tema, ou mesmo carpintaria (apesar de que, dos dois lados, o estilo é o basicão, sempre), mas no carinho com as pessoas, cheias de uma generosidade cotidiana difícil de ignorar.



Clube da Lua, de Juan José Campanella

Não se trata de chapar tudo na idéia de que todo mundo é gente boa, mas saber olhar as pessoas de perto, com qualidades e defeitos naturais do ser humano. Glamour e estilização são bacanas também, mas esse choque de realidade (realidade nossa, não "cinema de urgência") é reconfortante.

Ao fim de Chega de Saudade, fiquei preso num pequeno exercício: imaginar o emprego de cada pessoa. Se fosse aqui em Salvador, uma seria funcionária pública, outro, gerente de uma loja de eletrodomésticos, enfim, essas coisas. Os personagens do filme não nos abandonam. Quando as luzes se apagam, a gente sabe que eles continuam existindo, por aí, talvez bem perto.

(Nota dez para a visão natural do filme em relação à vida sexual dessas pessoas que já romperam há algum tempo a marca dos 40 anos)

sexta-feira, maio 23, 2008

Não duvidem do China

Tem muita coisa dele na locadora, mas deixo um brinde aqui. No vídeo abaixo, montaram várias cenas de Amor à Flor da Pele e trocaram a versão do Quizas, Quizas, Quizas, de Nat King Cole para Sarita Montiel. Ficou mais in-your-face, menos sutil do que é no filme, mas ajuda a salivar a boca para ver (ou rever). Incrível como o dvd de R$ 10 não veio pro balaio das Americanas local.

quinta-feira, maio 22, 2008

Baisers volés

Tem filme novo de Wong Kar-wai em cartaz. Escrevi sobre ele logo depois da sessão, tentando administrar a frustração de não ver mais um Amor à Flor da Pele, e ao mesmo tempo, reconhecer os prazeres do que está na tela. É aquela coisa - o filme é outra coisa, longe dos filmes mais recentes dele. É leve, pop, fácil, superficial. A mulher jogando cartas, que tinha muito impacto em 2046, virou só um fetiche. O amor virou fetiche cênico. Lindo fetiche.



Voltou a ser, na verdade: antes de mergulhar no mar de melancolia a partir de Felizes Juntos, filmes como Amores Expressos e Anjos Caídos faziam justamente isso: o amor para a câmera, para a foto, um truque fashion. Nada especialmente contra, uma vez que o cara é habilidoso o suficiente para enredar qualquer um nas suas nuvens de neon. Só fica a sensação de que ele vai muito mais longe.

Enfim, comecei esse post para tentar colocar em letras uma impressão talvez mais positiva do filme, porque alguns momentos ficam pipocando na cabeça de vez em quando. No entanto, taí, não consigo. O filme tá marcado com a nódoa da decepção, mesmo que seja bem bom. Eu gostava de Amores Expressos, e muito, mas pensei que o diretor houvesse superado essa fase. Falar aqui, como eu pretendia, sobre como algumas cenas são muito bonitas é enaltecer um cineasta pelo que ele faz com o pé nas costas. Talvez os gênios tenham direito.


***

Um Beijo Roubado pode ter sido um título para chamar o público, mas dá uma bola dentro involuntária. Lembra Baisers Volés, aquele filme lindo de Truffaut embalado pela canção famosa de Charles Trenet, "Que reste t-il de nos amours?". Era o terceiro filme do personagem Antoine Doinel, depois de ser uma criança triste em Os Incompreendidos e um adolescente descobrindo o amor em Antoine e Colette.

Em Beijos Proibidos (trocaram o "roubados" no Brasil) vemos Antine pulando de emprego em emprego, encantado por uma mulher mais velha chamada Fabienne Tabard, que só podia vir na pele de Delphine Seyrig. Também está num vai-não-vai com uma linda namoradinha, Claude Jade.

O filme ainda tem um detetive misterioso, que vive xeretando os personagens. No final, uma surpresa. O cara chega pra Claude Jade e diz (mostrar a cena não estraga em nada o filme):



A tradução está aqui, no "mais info" do vídeo.

Wong Kar-Wai é o diretor mais romântico desde Truffaut, acho. Romântico o suficiente para sempre duvidar do amor, e em seus melhores momentos, duvidar de sua viabilidade. Isso tudo tá em My Blueberry Nights, mas, ao contrário do modo como isso é visto nos filmes anteriores de Wong Kar-Wai, o diretor só passa por essas questões superficialmente.

segunda-feira, maio 19, 2008

Estrada, praia

Tenho falado nos últimos posts de diretores maverick. Céticos, levemente cínicos, às vezes melancólicos, cheios de uma masculinidade americana sulista que ando vendo em várias coisas ultimamente. Coisas velhas, digo. Falar de Huston e Hawks foi, de certa maneira, um jeito de não falar de Cormac McCarthy e, ao mesmo tempo, não sair do tempo.

Muito provavelmente, estou reduzindo um pouco os dois lados da questão, mas a gente só consegue localizar o que lê, vê e ouve com base nas referências que tem. Nesse ponto, o que me chama mais atenção nesse universo é a incrível capacidade de flertar com o sentimental, com o melodrama, sem jamais tirar o pé da contenção.



Eu havia dito antes que, à primeira vista, A Estrada me impressionava pela secura, pela aridez. É verdade, sim, mas o livro vai ficando mais emotivo de uma maneira quase que comum, a relação entre pai e filho, mas com destreza e precisão que nos fazem sempre ter a noção do quão distantes estamos da vulgaridade. Tiago A. havia me alertado: não é um livro de calafrios, mas de lágrimas.

Quase lá: a tristeza existe, e forte, mas ela não é catártica. É exatamente o tipo de obra que pode até provocar um desses momentos de convulsão, mas bem depois. Você tá andando de ônibus, pensando no nada, e de repente, alguma palavra daquilo tudo se realoca na sua cabeça. (Acabou o livro, excelente companhia é Os Desajustados, de John Huston, com grande roteiro de Arthur Miller).

***

Li depois a boa novella Na Praia, de Ian McEwan. O livro tem alguma coisa de muito familiar, como se o cara acordasse, estelasse os dedos, e começasse a escrever para desenferrujar. É bom demais, porque o cara até em modo treino é gênio, mas não há a surpresa e o choque de Amsterdam ou Reparação. É como se fosse ver Schumacher vencendo um GP de ponta a ponta.

A técnica, já sabemos de cor. O cara vira, revira e retorce um momento crucial na vida de uma pessoa, e deixa rastros da conseqüência do tal acontecimento. Em Cães Negros, era o ataque do cachorro, em Reparação, a mentira da garota, em Na Praia, a malfadada noite de núpcias de um casal virgem.



É a velha herança joyciana de alongar ao máximo o tempo físico indo pra dentro da mente dos personagens (não, eu não li Joyce - aliás, McEwan escreveu um livro que ainda não li, Sábado, passado em apenas um dia, pra lá de 400 páginas), habilidade que, pessoalmente, identifico também em Henry James, meu escritor favorito. Depois do destrinchamento, em golpes rápidos, uma grande elipse, e o estrago está feito.

Em termos temáticos, a novella é mais uma variação sobre ação e conseqüência - a repercussão do que se faz, e a impossibilidade de se voltar atrás (Reparação é o auge disso). O punch dos livros dele vêm justamente nessa hora em que o personagem reconhece que perdeu, já foi, game over. Mesmo em piloto automático, a habilidade do truque narrativo, e, ao mesmo tempo, o significado emocional e humano da impotência diante do que não tem remédio, ainda são desconcertantes.

***

Tava vendo Lady Oscar, de Jacques Demy. Se o filme serviu para alguma coisa, foi para afirmar de vez minha admiração pelo Maria Antonieta de Sofia Coppola. Nunca o peso de cenários e figurinos nababescos foi filmado com tanta leveza, tanta juventude. O golpe de mestre é, ainda nesse tempo ágil e musical, mergulhar tudo numa tristeza delicada e feminina. Lady Oscar é curiosidade histórica, retrato empoeirado das mulheres frívolas da época da Revolução Francesa. Há humor, mas falta graça, liberdade de movimentos. Lady Oscar se arrasta, o filme de Sofia Coppola flutua. Maria Antonieta vai ser redescoberto, resgatado desse pântano de filmes mal compreendidos.

quinta-feira, maio 15, 2008

This girl is a walking disaster

A frase do título é dita por Rock Hudson lá pelo meio da projeção de O Esporte Favorito dos Homens, ótima comédia que Howard Hawks fez no início dos anos 60. O filme não é uma obra-prima, longe disso, mas, numa definição básica e rápida, só consigo pensar naquele pleonasmo: entretenimento divertido. Só a cena do urso andando de moto já vale o ingresso - ou a energia gasta pelo pc durante o download. Mas, se há um motivo que faz que com que o longa não se destaque na carreira do diretor é justamente a mocinha walking disaster, Paula Prentiss.

A personagem é ótima, com a característica-assinatura de todas as mulheres hawksianas: independente, espirituosa, sexy e, às vezes, bem inconseqüente. Ver a inexpressiva Paula Prentiss na tela só me lembrou de como o diretor já fez escolhas muito melhores para os papéis femininos dos filmes que dirigiu. Só como exemplo, basta ver a diferença, nesse mesmo, entre Prentiss e Charlene Holt, que aparece rapidamente como a namorada de Hudson. Aquilo sim é que é mulher presença.

Se O Esporte Favorito dos Homens me levou a escrever alguma coisa, o assunto é justamente as mulheres dos filmes do diretor. Listo minhas preferidas:

10 - Rita Hayworth, O Paraíso Infernal

Ainda coadjuvante, a futura Gilda faz o amor passado de Cary Grant, audaz piloto em algum lugar não identificado na América do Sul. Rita parecia verde e crua na tela, mas nunca foi tão boa como atriz. Com um ou outro detalhe, ela sugere a paixão antiga ainda viva, e, ao mesmo tempo o desejo de continuar independente. Jean Arthur, também no elenco, é bem simpática, mas não aguenta a concorrência.

9 - Barbara Stanwyck, Bola de Fogo

Cantora de cabaré (o que queria dizer outra coisa em 1941, claro) se refugia da máfia na casa onde cientistas preparam uma enciclopédia. Stanwyck, claro, vira a cabeça de todo mundo, especialmente do jovem Gary Cooper. Vulgar e sensual, mas não exatamente bonita, ela já libera um pouco do sex-appeal que marcaria sua carreira depois em Pacto de Sangue, de Billy Wilder - aliás, o roteiro é dele.

8 - Angie Dickinson, em Onde Começa o Inferno
7 - Jennifer O'Neill, em Rio Lobo
6 - Charlene Holt, em El Dorado

O primeiro filme é Onde Começa o Inferno, que Hawks refez duas vezes, como El Dorado e Rio Lobo. Nos três longas, há o papel sensacional da prostituta/dançarina que flerta com John Wayne e ajuda o xerife na troca de reféns com os bandidos. A melhor bombshell é Charlene Holt, atirada, sexy, sem medidas. O'Neill é a mais bonita, e Dickinson, a original, se valia de seu belo par de pernas para enlouquecer a cidade sitiada.

5 - Marilyn Monroe, em Os Homens Preferem as Louras
4 - Jane Russell, em Os Homens Preferem as Louras



A loura e a morena, quadris de Marilyn e seios de Jane. A dupla perfeita, duas cavadoras de ouro espertas e divertidas caçando um marido rico num transatlântico. A canção dos diamantes tornou Monroe icônica, mas Russell é ainda melhor neste filme. Na grande cena do filme, ela se disfarça de Marilyn para salvar a barra da amiga num tribunal - o tipo de coisa que só pode acontecer em Hollywood. Geniais as duas conterrâneas de Bill Clinton, apenas duas garotas de Little Rock.

3 - Rosalind Russell, Jejum de Amor



A melhor jornalista intrépida de todos os tempos não come reggae de ninguém, e tem o melhor faro de toda a redação. Mas vai casar e abandonar a carreira. O editor e ex-marido, Cary Grant, claro, não vai deixar. Bota Rosaling Russell para cobrir uma execução de pena de morte no último dia de expediente. Ela vai se virar nos 30, falando pelos cotovelos com toda a malícia e bom humor que o roteiro lhe dá de presente. Furacão.

2 - Katharine Hepburn, em Levada da Breca



As falas não são tão boas quanto as de Rosalind Russell, mas Hepburn leva o troféu inconseqüência. No filme mais rápido da história (é mesmo, botem qualquer Matrix na frente para comparar), ela cisma com a cara de Cary Grant (sempre ele, aqui como um cientista tímido em busca de patrocínio para um projeto com dinossauros), e faz de tudo para tê-lo para si, mesmo que só atrapalhe a vida do coitado. Detalhe para o leopardo de estimação, Baby. A certa altura do filme, o pet domesticado troca de lugar com uma fera que fugiu do zoológico, mas Hepburn não está nem aí. Não percebe a troca e doma o animal na unha.

1 - Lauren Bacall, Uma Aventura na Martinica



"You know how to whistle, don't you? Just put your lips together and blow". Falei desse filme e dessa atuação há dois posts. Acho que já disse tudo - a mulher deixa o peão no chão com sua mistura de segurança e sensualidade, sem que, nesse caso, haja qualquer tipo de vulgaridade, mesmo quando ela beija Bogart no rosto, e lhe bate na cara. É a barba. E ela canta também, eu já disse. Ela tinha só 18 anos. Primeira aparição no cinema. Inacreditável.

sexta-feira, maio 09, 2008

O melhor do cinema...

... é passar quatro horas vendo dois filmes seguidos de John Huston. Na seqüência, assisti a dois filmes dele da década de 50, e, cada um a seu modo, possuem a assinatura de grande autor. Justo ele, que dizia filmar qualquer coisa e não ter estilo algum. Para mim, esse tipo de auto-depreciação faz parte da postura dele, desligada, cool, às vezes grave, ultra-masculina.

O primeiro dos filmes foi O Segredo das Jóias, noir famoso pela participação de Marilyn Monroe. Há mais fama do que mérito - ela ainda está apagada, verde, sem a presença e a potência dramática que teria no seu último filme, justamente dirigido por Huston, Os Desajustados. Mas tudo bem, se há um papel feminino que importe é o de Jean Hagen, a maravilhosa Lina Lamont de Cantando na Chuva, em registro totalmente diferente. Somem a voz estridente e a presença caricata, entram uma atuação sincera e de cara lavada, crua. Muito boa.

Ainda assim, estamos na beirada do filme. A princípio, O Segredo das Jóias não parece segurar a reputação que tem, de ser uma das obras-primas do diretor. Talvez não seja mesmo, mas o filme cresce imensamente à medida que a trama evolui. No começo, o plano de um assalto. Depois, a execução. Por fim, o acerto de contas.



Corrida para lugar nenhum: Jean Hagen e Sterling Hayden

Ao contrário de outros filmes do gênero que são geniais do início ao fim - como Rififi, de Jules Dassin, ou Homens em Fúria, de Robert Wise -, O Segredo das Jóias só revela sua amplitude na parte final. Huston retoma o tema da ambição fracassada que faz parte de dois de seus filmes mais importantes, O Falcão Maltês, e O Tesouro de Sierra Madre. A diferença é que o tom cáustico dos longas anteriores é atenuado e substituído pela nobreza da derrota, num lance quase fordiano.

Sem querer estragar o que não dá para arruinar, a parte final é ancorada justamente nisso, no fracasso coletivo. Na mais bela cena, o ladrão veterano assiste a uma garota dançar ao som do jukebox, enquanto a polícia espera do lado de fora do bar. Cena nostálgica e melancólica, mas principalmente doce.

O filme dois da maratona, embora tido quase como menor dentro da carreira do grande mestre, é tão forte quanto O Segredo das Jóias. O Céu Por Testemunha é um exemplar justamente do outro grande tema dos filmes de Huston: ser estrangeiro.

Deborah Kerr e Robert Mitchum são uma freira e um fuzileiro isolados numa ilha do Pacífico Sul durante a Segunda Guerra Mundial. Só têm um ao outro, rola clima, etc, mas nunca em um nível que ataque a inteligência do espectador. É tudo muito sutil, e vemos crescer e tomar forma na tela uma relação que é, acima de tudo, de amizade, apesar da tensão sexual. O filme se sustenta na relação de um homem e uma mulher, e, para um grande diretor, isso basta.



Se a Deborah quer que o Robert peque

O tom é leve, aventuresco, inteligente, com aquele mesmo charme de The African Queen, não por acaso, Uma Aventura na África, título nacional. Mitchum e Kerr, aliás, em nada devem a Bogart e Kate Hepburn. Mitchum brilha no seu melhor papel de leading man, cavalheiro completo sem perder um fio da presença masculina, e sempre deixando nas entrelinhas um passado sugerido do personagem: orfanato, reformatórios, Marinha - solidão e paz acalmada, esperteza e bravura.

Kerr retoma o hábito uns doze anos depois do grande papel em Narciso Negro. Naquele filme ela era uma freira isolada no Nepal, acho, enfrentando todos os mistérios e a tensão que não vem de lugar nenhum - só do ambiente (se tivesse havido alguma adaptação de Passagem Para a Índia nessa época, não haveria melhor escolha para o papel de Adela Quested). Em O Céu Por Testemunha, a tensão é mais leve, e Kerr se vira imprimindo charme delicado a um personagem que deve ser contido, com o corpo coberto o tempo inteiro. Se há uma atriz que sabe trabalhar nas minúcias, é ela.

No fim, fica o grande prazer de ver esse timaço trabalhando, cada um no seu elemento, todos atingindo fácil a perfeição. Filmão.

segunda-feira, maio 05, 2008

How Little We Know

Eu só li duas coisas de Faulkner na vida, O Som e a Fúria, na linda edição da Cosac Naify que peguei na Biblioteca Central dos Barris, e o conto A Rose For Emily, para uma aula da pós da Facom que eu pegava como ouvinte. O conto é bom, mas fácil de esquecer, o livro é fenomenal como todo diz, tão arrojado e agressivo e intrincado que consegue mesmo nos distrair do barato de que aquilo tudo é mais um teste de linguagem do que qualquer outra coisa. Não sei, acho que a inner America combina mais com a clareza e a limpidez de um Steinbeck, outro cara que li pouco, só A Leste do Éden.

Lembrei de Faulkner porque estava hoje convertendo meus divx de CD para DVD, quando abri o arquivo de The Big Sleep. À Beira do Abismo é adaptação de O Sono Eterno, de Chandler. Chandler é dialogista genial, tem aquelas frases arrancadas do asfalto (quem disse isso? Li num texto de Ruy Castro, acho), mas o tom do filme dirigido por Howard Hawks beira à comédia romântica. Há assassinatos, mulheres fatais e gente traiçoiera, como em todo filme noir, mas o clima é mais espirituoso do que trágico. (Como naquele pastiche de noir feito por Truffaut, Atirem no Pianista).

Tudo foi enxertado depois, no rastro do sucesso de outro filme da dupla Hawks-Faulkner. Em Uma Aventura na Martinica, Humphrey Bogart e Lauren Bacall explodiam um contra o outro com alguns dos melhores diálogos já escritos. Com o sucesso, Faulkner apimentou as cenas de À Beira do Abismo. Bom, minha cena preferida de Martinica:



Tem muitos filmes de Hawks que eu ainda não vi, e muitos do que vi são obras-primas absolutas. Falo de Onde Começa o Inferno, ou Levada da Breca, mas, no fundo, acho que Uma Aventura na Martinica é o que mais gosto.

Aliás, a música do filme é muito boa. Há a sensualidade elegante de Bacall cantando How Little We Know, e ainda tem esse brinde, Hoagy Carmichael melancólico no Hong Kong Blues. Clima perfeito de lugar isolado, lugar habitado por estrangeiros inteligentes demais pro próprio bem, certamente melancólicos. Fumantes, claro: