segunda-feira, julho 28, 2014

A Cidade dos Romances Inacabados

Obviamente sei que não tenho a verve para isso, mas já passou pela minha cabeça escrever um livro que resumisse esse meu tempo em Angola - até hoje, cinco anos, seis meses e quinze dias. No início essa ideia morreu porque achava que Luanda não era tão diferente assim; a normalidade encontrada dentro do até então desconhecido foi um abrigo seguro para que eu simplesmente relegasse as diferenças a segundo plano e esquecesse o digno de nota, ou sublimasse em drops breves de um blog hoje defunto.
Com o tempo, no entanto, sofri um processo retardado de descoberta: sou cada vez mais estrangeiro, mais alien aqui, mas necessitado de me adaptar a esse monte de coisa que tomei ligeiramente diferente para passar por cima sem pensar muito. Não é: Luanda é muito diferente, e se sou outra pessoa aos 28 do que era aos 23, a equação não se resolve apenas com a passagem natural do tempo, do fim da adolescência (tardia) para uma idade adulta consolidada. Não, eu ser o que sou tem ao menos 50% de influência de ter estado esses anos críticos da minha vida aqui, especificamente.
Como eu sei que jamais escreveria sobre isso (1 - tenho algum pânico da superexposição de quem escreve num nível desses, preferindo emitir imagens superficiais e despersonalizadas no instagram*; 2 - não tenho texto nem reflexão para ficar satisfeito com qualquer coisa que eventualmente escrevesse em forma longa), não passo dos títulos. E como a ideia é não ser pessoal demais, só penso nesses efeitos mais rasos.
O título que fica na minha cabeça é A Cidade dos Romances Inacabados, não pelas histórias de amor que já vi aqui, muitas vezes interrompidas por demissões, planos diferentes, etc, mas porque simplesmente foi aqui que eu parei de ler. Ao contrário do que o meu título faz parecer, não são os escritores daqui que não terminam as suas obras; sou eu, o leitor, que não chego até o fim, numa espécie de impotência literária.
Na adolescência, era leitor voraz, desde que quebrei o gelo com a coleção Abril Clássicos que meus pais compraram quando era pequeno, para que um dia viesse a me interessar. Na época de faculdade, chegava a ser negligente com aquela teoria toda apenas para ler o que queria. E não foram tampouco oito horas que viravam 12 na redação que diminuíram o meu fôlego.
Durante um tempo, até mantive um ritmo, por inércia, por exercício de normalidade, mas duvido que tenha lido bem o que passou pelos meus olhos. A razão foi diminuindo até que me peguei, desde o ano passado, deixando tudo pelo meio. A última vez que terminei um romance aqui, foi na terceira tentativa, e ele tinha pouco mais de 150 páginas: A Invenção de Morel, de Bioy Casares. Tenho nesse momento mais três interrompidos em diferentes graus de percurso: Nosso Homem em Havana, de Graham Greene, um dos meus escritores favoritos, super fácil de ler; Um Sonho Americano, de Norman Mailer, que esqueci propositadamente no Brasil - mas depois comprei o ebook, morrendo de culpa; e Respiração Artificial, de Ricardo Piglia, o tipo de labirinto argentino que minha cabeça simplesmente não parece ser capaz de decodificar nesse momento.
Num nível pessoal, de leve, a rotina aqui sempre é intensa, mas isso antes nunca me impediu de manter os meus hábitos literários. Percebo isso em outras pessoas também, embora haja aqueles heróis de sangue frio que viram devoradores de livros, verdadeiras traças.
Cá com os meus botões, tenho a impressão de que aqui eu me alijo propositadamente de atividades realizadas a sós. Expatriado numa cidade e local tão propensos ao isolamento dos seus condomínios, a tendência de defesa é criar uma vida social artificialmente agitada, é arrumar coisas pra fazer. Não dá pra dividir a literatura, pra fazer com outras pessoas, enfim, não dá pra fazer pertencer a uma ambiência na qual, em vez de socializar, há o objetivo claro de esquecer em grupo a distância de casa, da sua terra, dos seus.
O banzo talvez não seja assim diferente em Londres, Sydney, Nova York ou Buenos Aires, mas eu acho que sim: essa ausência específica de lugares públicos como parques ou ruas mais humanas e menos hostis, além da identificação racial imediata pra mim e pros outros de que sou ESTRANGEIRO, como se estivesse carimbado na minha testa, enfim, tudo isso acentua essa vontade de se defender da ideia de estar sozinho. E a literatura parece demais com solidão para parecer confortável.
Eu vou insistir, entretanto.
*De onde vem a ideia de que as pessoas se expõem demais no Instagram, ou nas fotos do Facebook? Acho que é o contrário: é uma maneira perfeita de interagir sem se expor de fato; é comunicação por imagem, telegráfica, e até os filtros acentuam o fato de aquilo não é o que se vê.