terça-feira, janeiro 02, 2024

TOP 10 2023

 Como sempre, considerando o calendário de Salvador (e as inevitáveis ausências de filmes importantes que perdi), lá vão os meus filmes do ano. 


10 - Holy Spider, Irã, de Ali Abbasi - Filme preciso sobre misoginia, uma história de serial killer que matava prostitutas no Irã, mas que cresce ao se manter a reencenação da violência em modo não-espetacular e ao realçar a segunda morte das vítimas, brutalizadas pelo Estado e pela sociedade machista iraniana. Sessão dupla: Kinatay, de Brillante Mendoza. 

9 - Asteroid City, EUA, de Wes Anderson - Incrível como Anderson é sempre mais bem sucedido destacando seu cinema totalmente de qualquer referência ao mundo real, em universos controlados. É assim nas animações, ou em O Grande Hotel Budapeste. Todas as gags funcionam, e, para minha surpresa, pela minha vez experimentei uma dor real num filme de Anderson, cortesia de uma fenomenal Scarlett Johansson. Sessão Dupla: Duas Garotas Românticas, de Jacques Demy. 

8 - Retratos Fantasmas, Brasil, de Kléber Mendonça Filho - KMF dribla o óbvio ao filmar a sua paixão pelos templos - salas de cinema - do Recife e pela cidade em si esquadrinhando cada pedaço filmado da capital pernambucana, seja na própria obra, na de outros cineastas ou em arquivo. É menos um filme amoroso que obsessivo, uma verdadeira história de fantasma. Sessão Dupla: Adeus, Dragon Inn, de Tsai Ming-Liang. 

7 - Os Banshees de Inisherin, Irlanda, de Martin McDonagh - Esse diretor nunca foi a minha onda, muito pelo contrário, mas essa peça sobre isolamento, melancolia e masculinidade me parece ser uma das melhores coisas a pôr em filme a  ideia de depressão ultimamente, especialmente no seu ato reflexo de auto-flagelamento, e mais especialmente ainda se você o filme do outro lado da margem, depois dessa terrível travessia. A gente sobrevive aos pedaços. Sessão Dupla: Um Momento, Uma Vida, de Sydney Pollack. 

6 - Regra 34, Brasil, de Júlia Murat - Um anti-panfleto sobre ennui, sexo e política, nessa ordem. Realmente revigorante ver um filme subverter essa lógica atual do cinema militante power point que vivemos, dando ao espectador personagens tridimensionais em situações emocionalmente complicadas, sem que qualquer reflexão social achate a sua humanidade. Cinema brasileiro, tome nota. Sessão Dupla: O Beijo da Mulher-Aranha, de Hector Babenco. 

5 - Assassinos da Lua das Flores, EUA, de Martin Scorsese - Épico íntimo sobre um genocídio a conta-gotas, com Scorsese usando uma história em particular - a dos índios do Osage County - para refletir sobre toda a trajetória dos EUA. É um filme histórico que funciona bem melhor que seu Gangues de Nova York justamente porque, quando trazido ao nivel dos personagens, o filme continua funcionando, num dueto entre um perfeitamente grotesco Leonardo DiCaprio e a hierática Lily Gladstone, que se move com o peso de todo o seu povo sobre as costas. Sessão Dupla: Mães Paralelas, de Pedro Almodóvar. 

4 - EO, Polônia, de Jerzy Skolimowski - Corajosa tentativa de refazer o Au Hasard Balthazar de Bresson na Europa em guerra do século 21. À medida que o burro protagonista cruza fronteira após fronteira sofrendo brutalidade depois de brutalidade, cai a ficha de que esse é o filme mais pungente sobre essa era em que milhares estão mortos no fundo do Mediterrâneo ou vivendo vidas miseráveis no continente, como sub-humanos. Sessão Dupla: Em Trânsito, de Christian Petzold. 

3 - Sem Ursos, Irã, de Jafar Panahi. Continua impossível para Panahi não apenas não fazer cinema, mas os obstáculos que lhe são impostos pelo regime iraniano fazem com que ele seja obrigado a pensar sobre o ato de fazer cinema, a responsabilidade de filmar e os limites da arte num país sem liberdade - ou em qualquer país. Incrivelmente ele continua reinventando essas reflexões sem se repetir. Sessão Dupla: O Paraíso Deve Ser Aqui, de Elia Suleiman. 

2 - A Esposa de Tchaikovsky, Rússia, de Kirill Serebrennikov. Hoje no exílio após um período de perseguição política e prisão domiciliar, Serbrennikov mostra - hasteia - o dedo do meio contra o regime de Putin com um filme apaixonadamente queer. Curiosamente, a esposa de Tchaikovsky, cuja vontade de reverter a sexualidade do marido confunde-se com a erotomania à Adele H., é quase uma alegoria da decadência dessa Rússia que tenta esconder o que impossível, ou talvez uma mostra de que há paixões que nunca se apagam, não importa o tamanho do martírio. Emocionante e suntuoso. Sessão Dupla: Sedução da Carne, de Luchino Visconti. 

1 - Afire, Alemanha, de Christian Petzold. Mais um filme sobre o ocaso europeu, não apenas nesse top 10, mas na carreira de Petzold, que agora encena seu apocalipse continental como se num filme de férias de Rohmer. No fim das contas, e do filme, talvez seja essa a única possibilidade de redenção do europeu, a arte. É tudo o que lhe resta (e à Europa). Sessão Dupla: Estranho Acidente, de Joseph Losey.