terça-feira, fevereiro 16, 2010

Oscar 2010 #1

Invictus, de Clint Eastwood, é um filme que se beneficia muito de sua inserção no currículo de um grande mestre, com estilo e preocupações amplamente reconhecidas, e de sua existência como “peça de cinema” de maneira quase abstrata, sem uma dependência em relação à “história real” que expõe. Clint não retrata; filma.

Sua apreensão por este lado puramente cinematográfico é muito mais sadia. Clint retoma pela enésima vez seu tema da vingança e dos amargores do passado, coisa presente em sua obra desde os anos 70, mas aqui usa o assunto como ponto de partida, e não como fim.

Antes os personagens só se embolavam com as conseqüências da necessidade de dar o troco e, ao fim, aprendiam o quanto perderam neste processo, mesmo que toda a violência tenha sido necessária. Em Invictus, Clint lida com um ser humano tão calejado e superior que já começa o filme despido destes sentimentos, e o que vemos se desdobrar é a seqüência de estranhamentos causados justamente pela renúncia à vingança. Mandela chega no filme pronto, um deus como talvez realmente o seja. Deus não tem arcos dramáticos, claro.

O ponto dinâmico do filme é, em primeira instância, não Mandela, o protagonista, mas o jogador de rúgbi branco que recebe a missão de vencer o campeonato impossível. Num nível maior, e mais amplo, quem muda e aprende no filme é a própria África do Sul, unida cinematograficamente a fórceps pela alegria de uma conquista esportiva. Temos um país no início e outro no fim do filme.



Tal processo é filmado com a habitual precisão do diretor, com sua impecável levada Hollywood anos 40 de fazer cinema. O filme passa como uma grande matinê de Raoul Walsh sobre alguma cidadezinha do Arkansas unida por um objetivo comum – ritmo, câmera, texto sintético, tudo com a leveza profissional de um homem com domínio completo de seu ofício. Não são poucos os momentos de grande impacto – é de cair o queixo que essa encenação clássica torne atrativo um esporte como o rúgbi e uma historinha que só seria mais clichê se fosse fictícia. Tudo se dobra ao grande Clint.

Quase tudo, na verdade. O problema incômodo de Invictus é que ele realmente não se passa nessa cidade ideal do Arkansas, e a projeção desse molde de cinema sobre um país real passa como um equívoco pelo deliberado simplismo de ver anos de tensão social e racial se diluírem como em um comercial de cerveja.

O filme é sobre um golpe de marketing, mas é ingênuo o suficiente para endossá-lo com abraços de patroa e empregada (branca e negra) na arquibancada. Não são apenas coisa da “emoção do momento”, mas pequenas verrugas que ajudam a compor a sensação de missão cumprida que Mandela tem no fim do filme. O molde pode ser maravilhoso, mas seu encaixe não é dos melhores.

>>> A sensação de irrealidade sobre esse cenário sul-africano apresentado por Clint Eastwood se destaca ainda mais diante da ficção científica Distrito 9, uma alegoria diabólica sobre as tensões que o país enfrentou, e produto claro de feridas não cicatrizadas.

Difícil disfarçar o espanto com a sucessão de bolas dentro na transposição do cenário do apartheid a uma história sobre aliens refugiados na Terra, mais precisamente em Joanesburgo. Há desde a situação básica da township composta por pessoas inferiores, a violência e a tentativa de justificação legal deste tratamento, até a presença de terceiros elementos imigrantes também marginalizados.

A câmera nervosa e tensa do filme não ganha o imediato selo de aprovação concedido ao vocabulário elegantíssimo de Eastwood, mas o resultado não é apenas adequado, como também muito inteligente. Não temos aqui a urgência básica de um Cidade de Deus, mas um cinema consciente do impacto da cobertura do 11 de Setembro como narrativa audiovisual na mente de toda uma geração.

A mediadora do caos entre o filme lá e nós espectadores é a presença de um falso documentário. Nada de anormal até aí, mas o uso das tais imagens de arquivo captadas dos telejornais e sua importância cada vez maior no filme criam a incômoda sensação de acompanhar um desastre ao vivo, seja um sequestro de uma garota pelo namorado ciumento ou um atentado de grandes proporções. Dois filmes vêm à mente: o magnífico e eletrizante Guerra dos Mundos, de Spielberg e, nem tão próximo, o documentário Ônibus 174, de José Padilha.


>>> Educação, de Lone Scherfig, pode até parecer uma boa ideia no papel, mas é de uma mediocridade visual e narrativa de dar vergonha à mais modesta novela do SBT. E o conservadorismo, então – em vez de acentuar as novas sensações de uma garota tornando-se mulher, Educação as expõe apenas para condená-las em última instância.

Apesar disso tudo, a atriz praticamente estreante Carey Mulligan é um arraso, uma máquina de tirar leite de pedra, sempre deixando no ar uma frase a menos, abrindo horizontes para que se tenha vontade de entrar no seu pensamento. Sua expressividade (olhos e boca bem flexíveis) não a torna caricata, mas a possibilitam recorrem a um grande arsenal de emoções, em número bem maior até do que o filme normalmente ofereceria. Nem vi todas as concorrentes a melhor atriz, mas ela é claramente minha vencedora.

>>> Sobre Preciosa, eu também queria poder dizer que ao menos as atuações impressionam, mas, sinceramente, essa tonelada de prêmios sobre Mo'Nique é completamente excessiva É uma atuação sem modulações, feita de clímaxes, em uma nota só – esta é a mãe detestável e filha da puta que oprime a protagonista. A estreante Gabourey Sidibe é boa, até, mas não tem quem segure tantas escolhas constrangedoras, do texto que beira a autopiedade a esse visual clipado-bobo. No fim, soa como um Desabafo que Márcia exibia em seu programa de lavagem de roupa suja.

>>> Já Amor Sem Escalas é bem superior aos dois primeiros filmes de Jason Reitman, com um cinismo nem tão ostensivo nem vontade de soar cool. Tem o bem-vindo ar de um conto para adultos, a atualidade de uma história corporativa e um esmero artesanal de texto e montagem, como se o ritmo dos cortes fossem marcados pelos trechos mais pontiagudos do roteiro. Claro que o filme meio que se desequilibra ao quase redimir o protagonista, mas não há nada tão brusco assim – e o moralismo é finamente rebatido pelas revelações sobre outros personagens importantes.

Em tempo: Clooney excelente como sempre, essa garota nova Anna Kendrick muito bem também, mas boa parte da boa vontade com o filme vem da presença maravilhosa de Vera Farmiga, sensual, sutil, humana, e com incrível talento para projetar intimidade e conforto. Ela parece mais próxima do lado de cá da tela do que a maioria dos atores que tenho visto nos últimos tempos. O Oscar que vai para Mo'Nique seria dela, por direito.

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

Sessão Bola Preta

Não quero falar de Oscar, até porque ainda tem muita coisa para ver e o assunto tá enchendo tanto o saco quanto Lost (e vejam só, Lost é o pior assunto da Terra e além). Vamos atualizar o movielog então, que, em termos de qualidade, não anda nada bem.

O primeiro lixo é a imensa decepção do Anticristo, de Lars von Trier. Já escrevi por aqui umas duzentas vezes o quanto ele é genial, doido, anormal, etc, mas ver esse filme dá a sensação de que praticamente nada restou do cara que fez Ondas do Destino.

A fruta está podre desde o miolo, um fiapo de roteiro cheio de diálogos infantis travestidos de psicanálise, que, depois, acabam se convertendo em metáfora sociológica.



Com esse ponto de partida, não tem como dar certo, porque a base da qualidade do cinema dele é justamente o roteiro, o texto, a capacidade de armar situações aterrorizantes primeiramente em sua forma escrita.

Todo mundo observa as repetidas revoluções de imagem por ele trazidas, mas a verdade é que tudo isso sempre veio de scripts implacáveis, finos e clássicos, com a sempre presente referência de Barry Lyndon, de Kubrick.

Se o texto não sai, esse demônio da imagem fica girando no vazio, tentando injetar força num blá blá blá tolo e pretensamente bergmaniano na sua vontade de fazer um chamber drama de horror.

Em vez de peso e profundidade, Anticristo parece estranhamente publicitário, como um filme tirado e espertinho de Heitor Dhalia. A pretensão e a plasticidade da imagem me fazem lembrar aquele terrível Nina, que queria ser Dostoievski. Enfim, o resultado é que o filme nem chega a sair do lugar, e debate-se furiosamente como uma barata deitada sobre a própria carapaça.

Em tempo: pela primeira vez num filme de Lars von Trier, os atores estão terríveis - mesmo Charlotte Gainsbourg, premiada em Cannes.

Pra comprovar que Manderlay iniciou uma fase nada feliz de Von Trier, vi também, e em atraso, O Grande Chefe. Eu queria dizer que é uma porcaria, mas nem mesmo a paixão pra isso o filme desperta. Não é "revoltantemente" ruim como Anticristo. É nulo.

Se Lars von Trier ao menos tem um passado a zelar, o que dizer de Michel Gondry? A Natureza Quase Humana e Sonhando Acordado são dos piores filmes que eu já vi, e o segundo é pior ainda, tortura chinesa indie com aquela direção de arte metida a besta que a gente vê nos filmes desses clipeiros e de alguns cineastas falsos-gênios, como Wes Anderson.

Eu reclamava de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, mas ali pelo menos há uma tentativa de usar esse espalhafato espetaculoso a serviço de alguma coisa que não seja a própria "inventividade". Ô, cansaço...