sábado, dezembro 31, 2016

top 10 2016

Eu ia ver mais dois filmes antes de completar essa lista, mas é injusto, ver apenas para dar um veredito relâmpago. Foi mal, Hong; foi mal, Bellocchio. Bom, os dez filmes então a seguir, mas antes, cinco menções honrosas, sem ordem:

Depois da Tempestade, de Hirokazu Kore-eda
O Silêncio do Céu, de Marco Dutra
O Demônio Neon, de Nicolas Winding Refn
Brooklyn, de John Crowley
Neruda, de Pablo Larraín

Agora sim:

10 - Belos Sonhos, Itália, de Marco Bellocchio - Paulo Francis dizia que Gritos e Sussurros era o mais mais terrível de todos, porque era sobre a morte da mãe. Bellocchio faz esse filme da descrição de Francis, só que sem tangentes. A perda sempre deixa fantasmas, e às vezes nem o cinema os exorciza.
Sessão dupla: Bambi, de David Hand

9 - A Academia das Musas, Espanha, de José Luís Guerin - Um instigante filme falado, quase todo em closes, sobre as relações das pessoas com a arte, e sobre os limites invisíveis entre a vida e a ficção. Falar sobre arte não é um exercício um intelectualoide, e sim um esforço de entender a nós mesmos, como humanos.
Sessão dupla: Shirin, de Abbas Kiarostami.

8 - Elle, França, de Paul Verhoeven - Ultradesconfortável thriller de Verhoeven, que ao longo da sua carreira sempre nos fez cruzar as pernas de nervoso. Um estuprador usa sexo como arma, a vítima se defende e ataca o mundo à sua volta com um sarcasmo inclemente. Não é um filme fácil de ver, e de decodificar. Cada riso vem com culpa, Huppert e Verhoeven vêm com fúria, sem deixar prisioneiros.
Sessão Dupla: Juste Avant la Nuit, de Claude Chabrol

7 - Os Oito Odiados, EUA, de Quentin Tarantino -O Dogville de Tarantino, composto com o mesmo gusto em construir tensão e desmontar personagens, em longos e delicados capítulos, com a falta de pressa de um sádico. O cinema transborda desse teatro filmado.
Sessão dupla: Dogville, de Lars von Trier

6 - Cemitério do Esplendor, Tailândia, de Apichatpong Weerasethakul - Mais um filme estranhíssimo de Joe sobre essa paz que um certo modo de vida e pensamento em parte da Ásia forja, mesmo quando tudo ao redor parece entrar em colapso. A glória de tempos passados, por exemplo, é algo que pode ser revisitada com um pouco de imaginação, e, talvez, fé num cicerone, que pode ser um personagem que guia outro por um palácio presente em outras vidas, ou o próprio diretor, que nos abre esse universo de gente resiliente. Nada permanece, tudo permanece.
Sessão Dupla: A Cidade das Tristezas, de Hou Hsiao-Hsien.

5 - Aquarius, Brasil, de Kleber Mendonça Filho - Um amigo dia desses reclamou que esse era um filme "de tese". Eu discordo. É um filme de sentidos, de pequenas construções de significado que têm um potente efeito cumulativo para quem se interessa pelo Brasil contemporâneo, mas também sobre gente, intimidade e identidade. Mais do que um filme sobre uma mulher, é um filme sobre uma cultura intelectual e política brasileira, com todas as suas contradições, sob ataque.
Sessão Dupla: Isto Não é um Filme, de Jafar Panahi e Motjaba Mirtahmasb

4 - O Que Está Por Vir, França, de Mia Hansen-Love - um hino de amor à vida, da celebração de cada um dos seus momentos. Para cada perda, uma nova possibilidade; para cada ausência, uma chance de liberdade. Isabelle Huppert mais uma vez monumental.
Sessão Dupla: Poesia, de Lee Chang-Dong.

3 - Sieranevada, Romênia, de Cristi Puiu - Um país que cabe num apartamento, micropolítica e macroafetos em três horas exasperantes. Assim como Aquarius, um filme sobre pessoas e os espaços que elas ocupam.
Sessão dupla: Dez, de Abbas Kiarostami

2 - Julieta, Espanha, de Pedro Almodóvar - Já escrevi pelo menos três vezes sobre esse filme, mas sempre há algo mais a dizer. O filme é resultado de um projeto acabado de cinema ao mesmo tempo popular e racionalizado, intelectualmente. É um melodrama rasgado sobre conflitos de mãe e filha, mas é uma tragédia grega, passada como sempre em família, sobre a equivalência entre morte e ostracismo. Quando alguém próximo morre, a dor é infernal, mas é igualmente ruim quando a morte é em vida, pois fica evidente o tempo que se perde.
Sessão dupla: As Memórias de Marnie, de Hiromasa Yonebayashi

1 - Carol, EUA, de Todd Haynes - Foi o primeiro filme que vi este ano, e ele nunca saiu dessa posição. Conto impecavelmente clássico e grande filme de amor sobre viver de verdade e representar uma imagem, mais uma da coleção de obras-primas de Haynes, o melhor diretor americano vivo. Em mais uma versão do seu sirkiano teatro do subúrbio, o diretor ancora o filme numa inexcedível Cate Blanchett, que compõe um personagem que atua o tempo todo, e nem mesmo a paixão despe a sua carcaça - ainda assim, as emoções transbordam, como na genial cena do acordo judicial, um momento digno de uma Bette Davis, uma Joan Crawford. O seu maneirismo é perfeito para o filme, que encontra na excelente Rooney Mara a plateia ideal pro show-off de Blanchett.
Sessão dupla: Vitória Amarga, de Edmund Goulding

sexta-feira, dezembro 23, 2016

O Que Está Por Vir

Aproveitem essa semana de Natal para ver essa joia chamada O Que Está Por Vir, de Mia Hansen-Love, no Glauber e no Paseo. É um filme perfeito para o Natal, porque reafirma relações humanas e empatia como as coisas mais importantes dessa vida, só que sem as toneladas de açúcar que um filme americano dedicaria a essa história, por exemplo.

A história em questão é uma crise de maturidade de uma professora de filosofia, casada com outro professor de filosofia, e às voltas com a doença da mãe, um divórcio a caminho e os filhos fora de casa. Parece, na descrição, um filme-cabeção, mas só os franceses para navegarem pelas águas tormentosas de mil referências intelectuais de forma natural, sem a sensação incômoda de name-dropping ou de citações gratuitas. Essa é simplesmente a vida destas pessoas, e pronto.

O filme se desenvolve nesses pequenos dramas cotidianos, mas numa cena em que a protagonista lê uma passagem de Blaise Pascal, a gente percebe o quanto esses microconflitos nos fazem humanos, pequenos na sabedoria mas imensos na capacidade de sonhar e imaginar. É um filme que, sem se posicionar desta maneira abertamente, propõe a filosofia como consolo para as loucuras da vida, talvez do mesmo jeito que Poesia, de Lee Chang-Dong, defendia a arte como refúgio.

O filme coreano me veio uma ou duas vezes na cabeça, não por apenas ser uma história de uma mulher sexagenária, mas pela defesa de uma beleza possível da vida, não por negação da dor, mas pela superação das dificuldades através da dor. Numa cena milagrosa, vemos a gloriosa Isabelle Huppert chorando no ônibus (choro esse testemunhado por outra passageira, que fica algo comovida), e de repente, começa a rir ao mesmo tempo diante de uma coincidência que observa pela janela.



A vida inteira cabe no choro e no riso simultâneo de Huppert, numa atuação que ainda mais espetacular quando se tem em conta de que a mesma atriz ressuscitou a sua gélida persona chabroliana para o Elle, de Verhoeven, com renovada desenvoltura. Que mulher é essa? Provavelmente é a melhor atriz do mundo, junto com outra que também vemos neste filme, numa cena em que a personagem da Huppert vai ao cinema - o momento mais prazeroso que vimos numa tela este ano.

domingo, novembro 13, 2016

Hacksaw Ridge



É realmente impossível ver e pensar o filme novo de Mel Gibson, uma história real sobre um herói de guerra que se recusava a pegar em armas, e não pensar nesses Estados Unidos que elegeram Donald Trump.

Um filme tão agressivo na defesa das boas almas de coração simples da América profunda, num momento desse, não tem como ser visto de outra forma, especialmente quando o centro da questão toda, a tal objeção de consciência, e usada até hoje para que conservadores religiosos se recusem a atender homossexuais em alguns estados, por exemplo - inclusive no estado do vice de Trump, Mike Pence.

O filme não tem como não ser uma resposta à América democrata, quando na sua conclusão um dos personagens abertamente diz que não se deve rir de convicções, não importa quais sejam.

Apesar de ser baseado numa história real, e do mais puro heroísmo, não há como se separar um filme do seu tempo, e esse tempo é hoje. Nessa luz, o herói sulista não deixa de refletir aquele tipo de hipócrita que quer participar da guerra, mas sem sujar as mãos, tão circunspecto na sua moral. É um elogio do princípio, não importa a teleologia da coisa.

Esse texto não é um julgamento sobre aquele cara, mas sobre o cara do filme que existe pra defender essa visão de mundo de Mel Gibson. Hacksaw Ridge é uma propaganda do cristianismo como há muito não se vê, e apesar do seu herói ser adventista, a redenção vinda da catarse e da violência extrema é típica do catolicismo de Gibson.

Não deixa de ser curiosa a interpretação quase bovina de Andrew Garfield no papel principal, com aquela graça divina que se encontra no olhar das bestas, como bem nos ensinou Bresson, um católico que expressava a sua fé no cinema de modo oposto ao de Gibson, com extrema depuração e atenção ao essencial das coisas do mundo.

Dito isso tudo (e não apesar disso), assim como aquele grand guignol bíclico chamado A Paixão de Cristo, Hacksaw Ridge é um filme formidável.

quarta-feira, novembro 09, 2016

A Assassina



Resolvi pôr um pouco de beleza no meu dia para curar a ressaca e finalmente vi A Assassina, de Hou Hsiao-Hsien. Beleza tem, e muita, e do tipo especial e massacrante que só alguém com o nível de depuração na carreira que Hou alcançou pode nos proporcionar.

É o filme ideal para curar os olhos, um passeio de imagem incrível para imagem incrível, de um jeito que o projeto parece se tratar de uma exposição num museu, e não dum filme. Não digo isso pejorativamente. O caso é que Hou faz tempo que não é ou nunca foi um contador de histórias; ele é um contador de ambiências, de universos.

É por isso que o filme mantém o interesse apesar de ser aparentemente ancorado numa conturbada intriga palaciana da dinastia sei lá o quê do século 8 chinês, com um outro desvio para uma cena de ação aqui e ali.

Essa trama movimentada - do que tipo que irritaria o mestre de Hou, Ozu - está no filme no entanto quase que como um objeto de cena, uma desculpa, algo que de fato nem precisamos entender, ou a que o filme não dedica atenção especial.

Eu gosto do filme, aliás o filme é um prazer absoluto, mas ao fim de uma hora e quarenta minutos, fica uma sensação incômoda de desinteresse também pelas pessoas; é um filme quase despido de humanidade, já que "gente" só interessa como composição de tableaux.

Não é um filme estéril - o efeito plástico que conjura empolga por ser tão gritantemente uma criação humana, por ter um ponto de vista, uma assinatura. Por outro lado, os Hou que eu amo de verdade (os dos anos 80, especialmente Tempo de Viver e Tempo de Morrer, ou Poeira no Vento ou A Cidade das Desilusões) não davam essa sensação de estar a um passo de ser uma instalação artística.

O filme ganhou um prêmio muito bem dado de direção no festival de Cannes do ano passado, aliás. É basicamente isso, um diretor acima do que o filme é, de fato.

(Ressalva gigantesca de que o filme grita para ser visto no cinema, e eu vi numa tv. Grande, até, mas uma tv. Ficou bom tempo em cartaz em Salvador, pena que não bateu com as minhas datas)

terça-feira, julho 26, 2016

Phoenix




Tá sendo bem difícil tirar esse filme Phoenix, de Christian Petzold, da cabeça. Speak Low, que pra mim era só mais um standard, tornou--se moldura de uma das cenas mais acachapantes da história ao mesmo tempo em que foi arruinada para todo o sempre, porque será impossível dissociá-la do rosto de Nina Hoss. Perdi a conta de quantas vezes escutei a canção por esses dias.

Nas últimas duas semanas tenho lido um monte de textos sobre o filme, e 90 por cento deles dizem que se trata de uma atualização de Vertigo, e eu também pensei nisso imediatamente, mas hoje o filme já me bate como um filme-irmão de A Pele Que Habito, de Almodóvar, só que devidamente adequado a esse rigoroso e duro corte alemão, no qual tudo é seco, despido, mínimo.

Nos dois filmes temos pessoas vivendo com o outro rosto que não o seu de nascença, com sérios problemas de identidade. Em Phoenix, em especial, me chama a atenção o processo de negação da identidade, em direções opostas.

Nelly quer ser a que era antes da guerra, quer acreditar no amor do seu marido ariano, quer arranjar desculpas para a sua delação, enquanto o marido se recusa a ver a nova mulher na sua frente como a antiga - tem de ser outra pessoa - mas (inconscientemente?) a atira rumo à identidade anterior. Para quem é aquela farsa?

Os personagens demoram horrores para se libertar das suas negações, como se a ficção encenada por eles mesmos fosse a única saída para continuar a viver até que as feridas se fechem. (Yann Martel escreveu um livro brilhante sobre isso, A Vida de Pi). É ainda mais impressionante como, num detalhe especialmente cruel, à personagem que insiste encarar a verdade sem desviar o olhar, só resta o suicídio.

Em Tudo Sobre Minha Mãe, Agrado dizia que as pessoas são mais autênticas quanto mais se parecem com aquilo que sempre quiseram ser. E quando isso é impossível? E quando esse caminho rumo à identidade é roubado, violentado, abreviado? É daí que vem a força de A Pele que Habito e de Phoenix em suas cenas finais: aprender a ser outra pessoa diferente do que se é - no seu cerne - e tomar outro caminho pode ser o maior dos traumas.

quinta-feira, julho 07, 2016

O tempo de Almodóvar





Já escrevi pelo menos duas vezes sobre Julieta, o doloroso filme de Almodóvar que estreia amanhã no Brasil, mas nas duas vezes deixei passar uma coisa que continua me chamando a atenção não só nesse filme, mas em toda a fase "madura" do diretor, que, dizem, começou há 20 anos com A Flor do Meu Segredo. Eu queria na verdade de falar que essa tal maturidade do diretor tem uma relação direta com a maneira com a qual ele passou a pensar o tempo dos seus filmes. Não o ritmo, o tempo mesmo, o Tempo.

O plano da imagem é de Fale Com Ela, ainda o maior de seus filmes, e é uma prova da paixão do diretor pelo livro As Horas, de Michael Cunningham, que ele queria ter adaptado (que pena, poderia ter nos poupado daquele filme). Isso me chama a atenção porque é o livro (que não li, mas que tento perceber por meio da adaptação) é uma história em três tempos, e quando um personagem de um tempo invade o outro temos um panorama de uma vida inteira.

Aí você para pensar em como essa dispersão das suas histórias em diversos tempos tem sido comum em praticamente todos os filmes dele dos últimos vinte anos (vamos fingir que Os Amantes Passageiros não existiu). As suas histórias não são lineares, e sim temos personagens presos em labirintos temporais sofisticados, quase sempre com a lógica de repercurtir ações passadas meses ou anos depois das maneiras mais tortas e inesperadas.

Esses filmes são todos muito fortes porque no final das contas temos a sensação de, a partir da seleção desses momentos-chave, vemos a vida inteira dessas pessoas na nossa frente, ás vezes desde o nascimento, como em Carne Trêmula, ou na infância, na idade adulta e no reflexo dessa idade adulta dentro de um filme, como em Má Educação.

Quando escrevi sobre Abraços Partidos (o pior filme "adulto" do diretor), eu pensei ver nessa teia temporal uma vontade de refletir sobre a memória, mas hoje acho que não. O passado em Almodóvar nunca vira memória; na verdade, o preço das nossas ações é vivo e está conosco o tempo todo, do mesmo jeito que os mortos de Mizoguchi, por exemplo, continuam ao lado dos vivos.

Em Julieta, o filme que estreia esse fim de semana - e que o facebook friend Fernando Vasconcelos chamou de "um As Horas que presta" -, Almodóvar alcança um refinamento nesse projeto de "panoramas de vida" que permite-lhe não apenas um retrato pessoal e único, com todos os sofrimentos e angústia que acumulamos, mas expande esse terror para a ideia de família, como numa sina. A gente muitas vezes repete os tropeços dos nossos pais, que serão repetidos pelos nossos filhos.

E como já escrevi sobre o filme, a principal consequência em não romper essa inevitabilidade é que a morte fecha todos os caminhos de volta, e só sobra o silêncio. No fundo, é como dizia García Márquez: "as estirpes condenadas a cem anos de solidão não terão uma segunda oportunidade sobre a terra". Que se aproveite antes que seja tarde.

Mais: 



sábado, junho 04, 2016

Julieta, As Memórias de Marnie



Em Má Educação, de Pedro Almodóvar, dois personagens atormentados pela sombra de um assassinato entram numa sala de cinema onde está em cartaz um festival de filmes noir. Na saída, um diz para o outro: por que todos os filmes falam sobre a gente?

Em Cannes, vi o último filme do mesmo Almodóvar, Julieta, um filme doloroso sobre os abismos que se criam entre pessoas que se amam e os silêncios que as separam. Hoje eu vi (acabei mesmo de ver) a animação japonesa As Memórias de Marnie, de Hiromasa Yonebayashi, que é basicamente o mesmo filme que Julieta, outra obra sobre pessoas ligadas por laços familiares e sentimentais que não conseguem se comunicar. Em ambos os filmes, Julieta e As Memórias de Marnie, me senti como a personagem de Má Educação: todos os filmes falam sobre mim.


Por mais que eu enxergue imensas qualidades nesses filmes, sinto imensa dificuldade em saber quando a minha admiração estética acaba e quando começa a pura e simples identificação ou o choque de ver a própria história numa tela de cinema, com as mesmas dores, as mesmas zonas sombrias.

Cheguei a Angola há sete anos. Meu pai só soube que eu estava aqui alguns meses depois, e demorou até que conseguisse falar comigo devido a barreiras que eu mesmo pus e sustentei. Anos depois, numa viagem curta a Belém - numa fase difícil, quando finalmente me percebi adulto, descobri que um dia eu iria morrer e resolvi acertas algumas pontas soltas da vida antes de seguir em frente -, meu pai me contou a mesma história. Ele havia simplesmente desaparecido de Belém e ganhou o Brasil pouco depois da adolescência, sendo redescoberto apenas anos depois na Bahia.

Não conto isso aqui para transformar a minha história em melodrama nem para pedir compaixão - está tudo resolvido, na medida do possível. Muito pelo contrário, faço isso para afirmar a potência e o poder de comunicação e reflexão desses filmes. Não acredito, mesmo, que a minha relação de admiração com eles fosse tão diferente caso eu tivesse uma outra história pessoal, mas me parece um fato de que ter essa história cria um atalho para que esses filmes batam certo e rápido.

Woody Allen quis desdizer o ditado e escreveu no roteiro de Maridos e Esposas que a vida imita a televisão ruim. Talvez, mas acho que a arte, sim, imita e amplifica a vida, e assim, muitas vezes nos dá a dimensão exata das escolhas que fazemos e do nosso lugar no mundo a partir dessas escolhas.

Julieta estreia no Brasil em 7 de Julho. Será o grande filme desse ano. As Memórias de Marnie entrou em cartaz ano passado em várias capitais, incluindo Salvador, e acabou de sair em dvd e bluray pela Califórnia Filmes. Também pode ser encontrado no site de torrents mais próximo.

segunda-feira, maio 23, 2016

Cannes 2016

cobrir cannes foi uma experiência foda, que mudou a minha perspectiva sobre um monte de coisas, do cinema, da vida em geral, da minha própria vida, da minha carreira como jornalista, enfim. foram 30 filmes, mas foi muito mais do que a soma desses filmes. 
se o resultado disso em quinze textos não traduz a riqueza dessas quase duas semanas, a culpa é minha, mas tem ideias soltas nesse textos das quais eu gosto, e que valem a pena ser lidas, se me dão um direito de ser um pouco cabotino.
muito obrigado por ter acompanhado!
vamos lá:
Premiação: http://www.redeangola.info/apesar-da-competicao-forte-juri-da-palmares-desastroso/
The Last Face, de Sean Penn, Forushande, de Ashgar Farhadi, e Elle, de Paul Verhoeven: http://www.redeangola.info/africa-presente-na-competicao-como-cenario-de-filme-de-sean-penn/
The Neon Demon, de Nicolas Winding Refn, Bacalaureat, de Christian Mungiu, e Juste le Fin du Monde, de Xavier Dolan: http://www.redeangola.info/dinamarques-nicolas-winding-refn-apresenta-o-filme-choque-do-festival/
La Fille Inconnue, de Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne, Personal Shopper, de Olivier Assayas, e Umi Yorimo Mada Fukako, de Hirokazu Kore-eda: http://www.redeangola.info/os-mortos-sem-nome-numa-europa-ferida/
Aquarius, de Kléber Mendonça Filho, e Ma' Rosa, de Brillante Mendonza: http://www.redeangola.info/o-filme-e-sua-circunstancia/
Julieta, de Pedro Almodóvar, e Loving, de Jeff Nichols: http://www.redeangola.info/luto-abandono-racismo-resiliencia/
Hissein Habré, Une Tragédie Chadienne, de Mahamat-Saleh Haroun, Mimosas, de Oliver Laxe, e Cinema Novo, de Eryk Rocha: http://www.redeangola.info/documentario-pede-justica-para-as-vitimas-de-hissain-habre/
Patterson, de Jim Jarmusch, Mal de Pierres, de Nicole Garcia, Agassi, de Park Chanwook: http://www.redeangola.info/uma-pequena-obra-prima-de-jarmusch/
Toni Erdmann, de Maren Ade, American Honey, de Andrea Arnold, e The BFG, de Steven Spielberg: http://www.redeangola.info/cannes-apresenta-mulheres-palma/
Neruda, de Pablo Larraín, e Money Monster, de Jodie Foster: http://www.redeangola.info/a-arte-vence-a-opressao-numa-joia-vinda-do-chile/
Ma Loute, de Bruno Dumont, e Rester Vertical, de Alain Guiraudie: http://www.redeangola.info/participacao-francesa-comeca-com-sexo-e-surrealismo/
I, Daniel Blake, de Ken Loach: http://www.redeangola.info/em-meio-ao-circo-vida-real/
Eshtebak, de Mohamed Diab: http://www.redeangola.info/em-meio-ao-circo-vida-real/
Café Society, de Woody Allen, e Sieranevada, de Cristi Puiu: http://www.redeangola.info/woody-allen-abre-cannes-em-clima-de-nostalgia/
+ Entrevista (rápida) com Mahamat-Saleh Haroun: http://www.redeangola.info/especiais/mahamat-saleh-haroun/
Cotação final, com os filmes em ordem de preferência:
Julieta, de Pedro Almodóvar *****
Patterson, de Jim Jarmusch *****
Aquarius, de Kleber Mendonça Filho *****
Neruda, de Pablo Larraín ****1/2
Sieranevada, de Cristi Puiu ****
Elle, de Paul Verhoeven ****
The Neon Demon, de Nicolas Winding Refn ****
Personal Shopper, de Olivier Assayas ****
Ma Loute, de Bruno Dumont ****
Toni Erdmann, de Maren Ade ****
Loving, de Jeff Nichols ****
After the Storm, de Hirokazu Kore-eda ***1/2
Eshbetak, de Mohamed Diap ***1/2
Bacalaureat, de Christian Mungiu ***
Forushande, de Ashgar Farhadi ***
Agassi, de Park Chanwook ***
Hissein Habré, de Mahamat-Saleh Haroun ***
La Fille Inconnue, dos irmãos Dardenne ***
Money Monster, de Jodie Foster ***
I, Daniel Blake, de Ken Loach **1/2
Cinema Novo, de Eryk Rocha **1/2
Rester Vertical, de Alain Guiraudie **1/2
Ma Rosa, de Brillante Mendoza **
Café Society, de Woody Allen **
Mal de Pierres, de Nicole Garcia *
The BFG, de Steven Spielberg *
Juste le Fin du Monde, de Xavier Dolan *
Mimosas, de Oliver Laxe *
American Honey, de Andrea Arnold BOLA PRETA
The Last Face, de Sean Penn BOLA PRETA GIGANTE

terça-feira, abril 05, 2016

O centenário de Gregory Peck

Gregory Peck não é o meu ator preferido, mas talvez seja o astro do cinema clássico que eu mais gosto. Ele entra em cena e os filmes ganham uma mistura quase paradoxal de charme e gravidade. É ele o ator-símbolo da luta pelas boas causas no cinema, aquele que era sempre advogado ou jornalista, mas também era a elegância em pessoa, o dono da finesse rara num ator de sempre saber a palavra certa, a inflexão econômica para não apenas transmitir o que o seu personagem precisa, mas para fazer com que todo mundo à sua volta não apenas o admire, mas por ele se apaixone.

Numa década marcada pelo furacão Marlon Brando, como os anos 50, ele conseguia projetar o seu magnetismo sem pingar uma gota de suor. É como uma se suas feições de pedra e o seu corpo sempre trajado num terno impecável o tornassem ao mesmo tempo invisível e o centro das atenções. Por isso que é tão difícil definir: todos os atores da sua época áurea (45-65), como Brando, Lancaster, Newman são definidos por traços físicos. Gregory Peck, acima de tudo é presença.

Claro que hoje, no seu centenário de nascimento, todo mundo se lembra daquele que foi escolhido o maior herói do cinema americano, o idealista advogado Atticus Finch de O Sol É Para Todos, que ousa defender um homem negro acusado de estupro em pleno sul racista e atrasado. Amo o livro e o filme e Peck nos dois (li o livro depois e é impossível não imaginá-lo em todas as páginas), mas o meu Peck do coração é o jornalista malandro de A Princesa e o Plebeu.

Repórter falido da sucursal de um jornal americano em Roma, Peck encontra por acaso uma princesa em fuga, Audrey Hepburn. Ele tem uma pauta gigantesca nas mãos, e finge não conhecê-la para servir de cicerone pelas ruas da capital italiana e conseguir uma reportagem incrível. Sua decisão no final, cheia de beleza e dignidade dão uma inesperada lição de ética e jornalismo mesmo dentro de uma das melhores comédias românticas da história - talvez a melhor, com sua licença, Lubitsch. Há o jornalismo, mas a vida passa na frente.

Vê-lo como um ídolo de matinê não significa dessexualizá-lo. Como bem lembra Martin Scorsese na sua série sobre o cinema americano, existe uma sexualidade em Hollywood antes e depois de Duelo Ao Sol. Quem o vê explodindo de tesão ao lado de uma igualmente incandescente Jennifer Jones percebe que além do astro digno e elegante, há um ator capaz de fervor e fúria, mas sem transformar isso em tique, como os descendentes menos talentosos de Brando.

Outro papel dele que adoro, também com William Wyler na direção (o mesmo de A Princesa e o Plebeu), é o protagonista de Da Terra Nascem os Homens, um raro faroeste na sua filmografia e na do cineasta de Ben-Hur. A figura citadina e democrata de Peck entra em conflito imediato com o interior sem leis do filme, onde as coisas se resolvem a tiro. Num plano maravilhoso no duelo do desfecho ele pisca o olho fazendo a mira, mas decide não matar o oponente. Ele estava acima daquela selvageria, mas jamais parece arrogante. É apenas o homem que anuncia a mudança para tempos melhores.

No sistema de estúdio os atores raramente eram desafiados e cada um tinha a sua área de atuação. O que fazia Peck tão cativante é justamente isso: ele se especializou em ser nas telas um arauto da tolerância.




segunda-feira, janeiro 04, 2016

Melhores 2015

Eu ia tentar ver mais algumas coisas antes de fechar essa lista, mas quer saber, é só uma lista, estou de férias, e posso deixar o que falta para depois, incluindo o que está em cartaz em Salvador agora (sorry, Trapero, Kawase, Garrel). Sem contar que eu já perdi um monte de coisa que queria ter visto mesmo e não tive chance, de Larraín a Domingos de Oliveira, de Alvaro Brechner a Andrew Haigh.
Antes disso, fica a ressalva de que a lista poderia ser melhor se tivessem entrado realmente em circuito as obras-primas Bird People, de Pascale Ferran, e o ultra incompreendido Blackhat, de Michael Mann. Os dois filmes passaram em sessões especiais em Salvador (o meu critério é ter entrado em cartaz na cidade em 2015).
Mas vamos lá fechar isso.
10 - A História da Eternidade, Brasil, de Camilo Cavalcanti
Ainda não sei se realmente gosto desse filme, mas ele é em partes tão forte e impressionante - embora consciente demais disso - que vale o voto de confiança, mesmo que o todo pareça desconjuntado e demasiado auto-importante. Mas vamos lá, é um filme de estreia, e bem promissor.
Sessão dupla: Japão, de Carlos Reygadas.
9 - O Conto da Princesa Kaguya, Japão, de Isao Takahata
O retorno do mestre de O Túmulo dos Vaga-lumes numa mistura de fantasia e melodrama que identifica imediatamente a tradição feminista e empática com as mulheres do cinema japonês. Esse conto é sobre uma princesa que se recusa a ser um objeto, mesmo que, no final das contas, até a intervenção divina lhe mostre que ela não tem muita escolha.
Sessão dupla: A Imperatriz Yang Kwei-Fei, de Kenji Mizoguchi.
8 - Três Lembranças da Minha Juventude, França, de Arnaud Desplechin
Desplechin voltou menos elétrico e mais nostálgico de um cinema bêbado de nouvelle vague. É derivativo, sim, mas o cara continua pondo tanto coração no que faz que o seu cinema ainda funciona, mesmo que esse arrebatamento de cartas de amor pareça já anacrônico nos anos 80/90. Desplechin deve boa parte do sucesso do filme à descoberta desse ator novo, Quentin Dolmaire, um proto Louis Garrel destinado ao estrelato. Bônus: todo o maravilhoso preâmbulo em Belarus, que faz o filme parecer que vai ser outra coisa.
Sessão dupla: As Duas Inglesas e o Amor, de François Truffaut.
7 - As Maravilhas, Itália, de Alice Rohrbacher
Num ano forte em cinema de referência, a teuto-italiana Rohrbacher reconjura intacta a dureza e a humanidade neorrealista na história das meninas de uma família numa Itália árida e pobre. Seguindo os passos de Reality, de Matteo Garrone, a televisão entra como um trator nessa realidade, do mesmo jeito que um dia o cinema o fez (no Belíssima, de Visconti, por exemplo). Com uma mão bem leve, Rohrwacher parece mais pessimista e amarga: o populismo televisivo é só um furacão efêmero, não muda nada.
Sessão Dupla: Pai Patrão, dos irmãos Taviani.
6 - Divertida Mente, EUA, de Pete Docter
Uma volta à forma da Pixar no seu conceito mais ambicioso. Em vez de antromorfizar o mundos dos peixes, dos insetos ou dos carros, dessa vez eles foram para dentro do cérebro humano, desvendar os mecanismos da depressão. O seu ponto de vista, no entanto, está longe de ser infantil. O filme está consciente da importância de coisas como o sacrifício, o luto e a importância de por vezes ceder à tristeza para que seja possível uma recuperação. Belo e profundo.
Sessão dupla: Poesia, de Lee Chang-Dong
5 - O Amor é Estranho, EUA, de Ira Sachs
Deixe a Luz Acesa já era um filme promissor pela honestidade com que lidava com a vida LGBT no hoje em dia, mas esse filme novo avança ainda mais casas no entendimento dessa vida em tempos em que batalha cultural está em grande parte, encaminhada. Sobra um sentimento mais universal, da perda que é se ver separado de um companheiro de 40 anos, e da necessidade física de estar perto de quem se ama. Não deixa de ser uma normatização, mas por outro lado, essas decisões do filme evidenciam o quanto, no fundo, somos todos muito mais iguais do que diferentes, sejamos heteros, homos, bis, etc. O importante - sempre, e para todos - é estar junto que quem amamos. Bem bonito e delicado.
Sessão dupla: Longe Dela, de Sarah Polley
4 - Mapa Para as Estrelas, de David Cronenberg
O melhor Cronemberg desde Spider, engraçado, irônico, virulento, sombrio e quase apocalíptico. Me parece que ele finalmente se encontrou depois de uma abandonar as agruras do corpo e se focar em exercícios de gênero bem recebidos, mas estranhamente contidos, como o quase-faroeste Marcas da Violência ou aquele gelado teatro filmado sobre Freud e Jung. Eu gosto muito de Cosmópolis, mas ele é quase um ensaio para esse filme novo, cheio de múltiplos pontos de vista sobre o porque desse mundo estar dando tão errado. Mapas Para Estrelas é o seu primeiro filme feito nos Estados Unidos, e ele ataca a indústria cinematográfica sem deixar prisioneiros.
Sessão Dupla: Rede de Intrigas, de Sidney Lumet.
3 - Foxcatcher, de Bennett Miller
Bennett Miller, um diretor muito melhor que a sua reputação, aprendeu uma ou duas coisas com Truman Capote ao fazer aquele filme sobre a reconstituição do escritor do assassinato de uma família do interior dos Estados Unidos. O que ele faz aqui não deixa de ser a mesma coisa, é reconstruir um crime a partir de todos os seus detalhes e das suas mentes doentes, com frieza clínica. Atores impossivelmente perfeitos, aliás, com o destaque para Mark Ruffalo, numa cena em que aparece a dar um depoimento para um documentário.
Sessão dupla: O Indomado, de Martin Ritt.
2 - Ponte dos Espiões, de Steven Spielberg
Os dois primeiros dessa lista são filmes gêmeos, praticamente. Em Ponte de Espiões, Spielberg parece promover a importância do diálogo para a manutenção da civilização e do pacto social que nos impede de explodir uns aos outros - algo que ele já havia começado a tratar em Caminho de Guerra e Lincoln. Os olhos spielbergueanos continuam excelentes para filmar de acidentes de aviões a cenas de tribunal, mas isso é apenas a superfície de um filme que busca no teatro e nos papéis de cada um uma metáfora para o convívio entre humanos.
Sessão Dupla: Da Terra Nascem os Homens, de William Wyler.
1 - Timbuktu, de Abdehrramane Sissako
Timbuktu, por sua vez, é um filme sobre a falta de diálogo e sobre o estrago que o fim da possibilidade de conversar provoca. Não há conversa com os radicais, não há razoabilidade, não há arte, não há vida nem diversão; sobram apenas radicalismos e fundamentalismos. O modo magistral de Sissako encenar a implosão dessa civilização faz de Timbuktu não apenas o filme-desastre do ano, mas o filme do ano tout-court.
Sessão dupla: Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola.