sexta-feira, dezembro 25, 2009

Feliz Natal

Este blog deseja um Feliz Natal com um vídeo do provável melhor filme sobre a época, Agora Seremos Felizes, de Vincente Minnelli. Na cena, Judy Garland canta "Have Yourself a Merry Little Christmas", para consolar a irmã menor, assustada com as perspectivas de uma mudança de casa e cidade no ano seguinte. Maravilhoso.

domingo, dezembro 13, 2009

Algumas notas sobre Abraços Partidos

Sim, este é o pior filme de Almodóvar desde que ele consolidou sua fase madura, lá pelos idos de Carne Trêmula, em 97. O cara continua um encenador genial, cheio de ideias maravilhosas para grandes cenas e imagens arrebatadoras, como a lágrima no tomate, os carros vistos de cima, armas pintadas e quadros e fotografias rasgadas. Vez em quando o filme tem um desses espasmos de genialidade, mas Abraços Partidos acaba não funcionando no cena-a-cena porque o Almodóvar grande roteirista parece ter saído de férias.

Estruturalmente, o filme é completamente mal-arquitetado, dividido em duas partes das quais apenas uma funciona: o flashback é um vulcão de paixões e desejo, crueldade e violência; a trama contemporânea é morna, patina numa terrível falta de assunto, e, para tentar manter-se de pé, afunda-se ainda mais em revelações de novela mexicana em mesa de bar e no café da manhã. Quando um personagem fica sabendo quem é o verdadeiro pai, por exemplo, nem o ator que o interpreta parece acreditar na tolice da cena.

Isso sem contar com a auto-indulgência de Almodóvar em relação a um monte de gordura do filme, como um longo diálogo sobre um filme de vampiros que não vai a lugar nenhum, ou a reaproximação do protagonista de seu antigo assistente de direção. Mas, enfim, tirando a decisão final da remontagem e a cena em que o cineasta tenta sentir o amor do passado numa imagem projetada, todo o segmento contemporâneo poderia ir para a lata do lixo.



Apesar de uma série de falhas evidentes, no entanto, Abraços Partidos torna-se algo instigante quando o observamos dentro da carreira de Almodóvar e o que ele representa em termos de indício do que está por vir nesta filmografia. Ao contrário do que fez no maravilhoso Volver, onde, diga-se a verdade, o cineasta tocava notas que já dominava completamente, o diretor tenta desta administrar um material fora de sua zona de conforto, reduzindo o humor ao máximo e buscando embrenhar-se no melodrama sem o seu contrabalanço habitual de exuberância e emoção.

Assim como Má Educação, Abraços Partidos é um melô sem lágrimas, premeditamente seco. Cabe um parêntese aqui para tentar mapear essa guinada sombria do diretor. Uma vez perguntaram-lhe quem eram os três maiores diretores da história e ele respondeu: Billy Wilder, Billy Wilder e Billy Wilder. Se no início da carreira, parecia interessar-se mais pelo escracho de Quanto Mais Quente Melhor, The Fortune Cookie ou Beija-me Idiota, Almodóvar parece inclinar-se agora a outra fase de seu mestre, responsável por coisas como Crepúsculo dos Deuses, Pacto de Sangue e A Montanha dos Sete Abutres.

Pode-se argumentar que este novo Almodóvar é menos Almodóvar que o de Volver, ou Kika, mas estes filmes secos do diretor são tão puro sangue quanto as comédias escrachadas e o os melodramas lacrimejantes: a diferença que a maldade, para o cineasta, está quase que confinada a uma dimensão cinematográfica ("As pessoas só caem das escadas no cinema") e por isso seus exemplares puramente noir - Abraços Partidos e Má Educação - são filtrados pela figura de um protagonista diretor de cinema e filmes dentro de filmes. A vilania e a crueldade se transformam em metalinguagem.

Por outro lado, apesar de andar por territórios que ainda não explorou com tanto afinco, Abraços Partidos é marcante por não deixar de conter todos os temas essenciais do Almodóvar recente, mesmo que em tom diferente. Assim como Tudo Sobre Minha Mãe, Má Educação e Fale Com Ela, é um filme dedicado ao poder da arte sobre as pessoas, e sobre como elas agem influenciadas pelas marcas deixas por filmes, peças, a música e dança, seja como espectadores ou como criadores. Enfim, a função da arte como reflexo e refúgio.

Além das pessoas e da arte, o terceiro item dessa equação: o tempo. Até como resultado de seu próprio da consciência de seu envelhecimento, Almodóvar tem feito cada vez mais filmes em várias dimensões temporais, quebra-cabeças narrativos em múltiplos tempos que se coadunam para judar a definir os personagens, como nos romances de Ian McEwan, escritor que admira. Almodóvar fica velho e faz filmes cada vez mais sobre o passado: a violência enfrentada por Raimunda, a peça e o amor de Manuela na juventude, o romance de Enrique e Angel, o filme destruído de Mateo Blanco...

Abraços Partidos é definitivamente o pior desses roteiros, mas ilustra bem a tendência da obra futura de Almodóvar. Mesmo com pontos fora da curva em tom e qualidade, como esse novo filme, o diretor continuará preso dentro de seu cinema particular, e o tema dos filmes deste cinema particular, no fundo, é a memória. Almodóvar está se transformando em Resnais.

domingo, novembro 15, 2009

Name dropping

O excesso de trabalho aqui no exílio continua a me afastar dos filmes, e tenho deixado este espaço abandonado. Não apenas por isso: dos poucos filmes que vi ultimamente, muitos me deixaram literalmente sem ter o que dizer, principalmente pela estranheza alien que às vezes aparece no cinema oriental, por onde tenho caminhado.






Do Japão, Desejo Profano, de Shohei Imamura, Mujô, de Akio Kissoji, e Rito de Amor e Morte, o curta e único filme dirigido por Yukio Mishima. Da Tailândia, Eternamente Sua e The Adventure of Iron Pussy, do incontornável e impronunciável Apichatpong Weerasethakul. De Hong Kong, o reencontro com Felizes Juntos, a obra-prima de Wong Kar-wai. E um pouco menos oriental mas igualmente alien, a revisão de Cavalos de Fogo, e a primeira olhada desconfiada em A Cor da Romã, ambos de Sergei Paradjanov.

Por ora, tudo o que posso oferecer é esse name-dropping. Aos poucos boto a cabeça no lugar - espero - e tento ser mais articulado.

sábado, outubro 17, 2009

Os melhores atores

Pra não perder a deixa, agora a lista de minha interpretações masculinas preferidas:

10 - Robert Ryan, Homens em Fúria


9 - Harvey Keitel, Vício Frenético


8 - Robert Mitchum, O Mensageiro do Diabo
night of the hunter Pictures, Images and Photos

7 - Marlon Brando, A Face Oculta


6 - Gregory Peck, Duelo ao Sol


5 - Richard Harris, This Sporting Life


4 - Jack Lemmon, Quanto Mais Quente Melhor


3 - Jeremy Irons, Gêmeos - Mórbida Semelhança


2 - Dirk Bogarde, O Criado


1 - Marcello Mastroianni, Divórcio à Italiana

terça-feira, outubro 13, 2009

As Melhores Atrizes

Exatos 30 dias desde a última postagem, publico aqui, só para movimentar o blog, uma lista que me veio à cabeça depois de ler esse perfil que a W. fez com a grande Liv Ullmann. A atriz de Bergman e hoje diretora completa 70 anos, e contribuiu para o meu rol das melhores interpretações femininas que já vi. Na ordem, e sem pensar muito:

10 - Emily Watson, Ondas do Destino


9 - Eleonora Rossi Drago, Verão Violento


8 - Meryl Streep, As Pontes de Madison


7 - Irene Dunne, Cupido é Moleque Teimoso


6 - Jane Fonda, Klute - O Passado Condena


5 - Liv Ullmann, Sonata de Outono


4 - Isabelle Huppert, Um Assunto de Mulheres


3 - Gena Rowlands, Noite de Estreia


2 - Emmanuelle Riva, Hiroshima, Meu Amor


1 - Gena Rowlands, Uma Mulher Sob Influência

domingo, setembro 13, 2009

Duas vezes Tarantino

À Prova de Morte é o filme mais simples e relaxado de Tarantino, sem estruturas milimetricamente construídas, como a de Pulp Fiction, ou exaustivas e cheias de informação, como a de Kill Bill. É um filme analógico, como um LP: meninas conversam pra lá e pra cá até a metade do filme, onde há uma explosão de violência que encerra o lado A. Viramos o disco, e o chitchat volta com mais meninas legais falando pelos cotovelos. Última faixa é outra longa sequência violenta, só que com direito a revanche.

Francamente, essa simplicidade desconcertante do filme de meninas em férias (a ideia do Grindhouse, homenagem ao cinema pulp dos anos 70, passa em branco) registra absurdamente como um filme de Rohmer, e num dia inspirado. Os alicerces estão todos no bate-papo, e 90% da projeção é apenas isso, um primor de leveza.



E Tarantino, claro, continua um excelente dialoguista, o melhor de todos, escrevendo falas que passam longe do cool gratuito, definindo e desenvolvendo personagens com uma facilidade inacreditável. Quanto mais o tempo passa, mais tempo queremos ficar espionando esse papo do lado de cá da tela.

O filme é um prazer de ver e ouvir, um divertissement (alô, Setaro) de luxo de um autor inspiradíssimo. Se Tarantino fosse Hitchcock, esse seria seu Intriga Internacional, ou Ladrão de Casaca. Se a Europa finalmente lançá-lo em novembro, mesmo tendo perdido muito coisa, arrisco dizer que pode ser o melhor filme do ano.

***

Antes de À Prova de Morte estrear no Brasil, a Universal deve pôr no mercado o longa mais recente de Tarantino, Bastardos Inglórios (Sacanas Sem Lei em Portugal e Angola), que estreou em Cannes e, dizem, foi levemente remontado para a exibição comercial. O filme é outra joia, e nos traz prazeres inéditos na obra do diretor.



Pode não parecer, mas Tarantino sempre teve interesse absurdo por gente, personagens, característica que não é encoberta pela estilização que é sua marca registrada. Dessa vez, com a exceção do Coronel Landa, seu filme abandona essa preocupação e resume-se a uma coleção de fetiches cuja única função é compor a imagem de uma grande celebração do cinema, daquele antigo, em película.

Se Death Proof lembra Rohmer, esse aqui seria o Vestida Para Matar de Tarantino, o momento em que a reflexão sobre a História e a linguagem do cinema (presente em toda a carreira do diretor) finalmente suplanta a busca obsessiva por um refinamento dramatúrgico. Tudo funciona dentro do cinema, sem que a possibilidade da existência de um mundo real sequer exista. Não à toa, os fatos são mandados à puta que pariu da maneira mais delirante possível.

Enfim, é um filme com muito plot e pouco drama, um quebra-cabeça fácil de montar, cheio de peças usadas mas remontadas com imenso frescor. Bastardos Inglórios voa das aventuras de montanhismo de Pabst até os thrillers estilosos de guerra dos anos 60. Cinéfilos riem mais, e melhor. Em tempo: o próximo filme de QT deve ser estrelado por Lauren Bacall.

sexta-feira, setembro 04, 2009

Alfazema e arsênico

Tento há dias escrever alguma coisa sobre uma marretada em forma de cinema chamada O Segredo Íntimo de Lola, de Jacques Demy, mas tudo o que poderia (e vou escrever abaixo) pode ser resumido numa frase de um amigo do Orkut, Júnior Soares: alfazema e arsênico. O Segredo... , ou Model Shop, retoma a personagem-título de Lola, A Flor Proibida, a prostituta sonhadora à espera de seu grande amor, que chega num carro branco conversível, como um príncipe sobre seu cavalo (onde li isso?).

Na continuação de seu primeiro longa, desmonta de vez o artificialismo daquele sonho de amor em p&b e traz Lola de volta, amrgurada, abandonada na América após um divórcio humilhante, prostituindo-se novamente para pagar uma passagem de volta à França e reencontrar seu filho pequeno. Um arquiteto desempregado se apaixona por ela à primera vista, mas a guerra o espera na segunda-feira.



Ao menos nessa fase dos anos 60, Model Shop é o filme de Demy mais frontalmente amargo, sem o lirismo da música de Michel Legrand para disfarçar a crueldade do mundo, ou a paisagem das cidades portuárias francesas para envolver os personagens em um pouco de beleza. Não - Los Angeles, uma cidade que os personagem do filme adora, nunca pareceu tão triste e deprimente, e o tom estranhamente não-espetacular para o normal do diretor nos garante que esse é um exemplar de melancolia puro sangue.

Não há aquela vontade de reconstruir o universo para escapar à realidade, algo identificado por vários críticos em Vincente Minnelli, outro mestre do musical. O que era a Argélia se infiltrando em Lola, Os Guarda-Chuvas do Amor e Duas Garotas Românticas se converte no Vietnã. O final feliz de A Baía dos Anjos também é sacrificado ironicamente numa fala de Lola, que revela o paradeiro da personagem de Jeanne Moreau - não resistiu ao vício e abandonou seu companheiro daquele filme, tendo ido parar em Las Vegas.

Não é surpreendente, portanto, que desta vez Demy nem se dê ao trabalho de criar um happy end fake para destruir depois. O encontro de uma noite dos protagonistas acaba sem direito a evoluir para um relacionamento. Um recado passado ao telefone por uma amiga corta o amor pela raiz, sem direito a despedida, e fade to black.

domingo, agosto 30, 2009

Clooney, Nichols, Resnais, etc

Pela primeira vez em muitos anos achei uma atuação de Renee Zellweger mais ou menos tolerável. Ela está bem ok em O Amor Não Tem Regras, terceiro longa de Goerge Clooney na direção, comédia screwball à Capra sobre jornalismo e futebol americano. Zellweger passa dentro do tipo da repórter intrépida, personagem que nos anos 40 parava não mão de gente como Barbara Stanwyck, Rosalind Russell e Jean Arthur.



Se Zellweger é no máximo funcional, Clooney carrega mais uma vez um filme nas costas com seu impecável talento cômico e charme antiquado, roubado de Cary Grant e Clark Gable - e ele não fica nem um pouco mal na comparação. O cara é mesmo o máximo, tem desenvoltura enorme com a câmera e sabe fazer graça tanto no lero, seduzindo a mocinha, quanto no slapstick, sujo de lama.

Clooney parece incapaz de errar nesse tipo, e isso é muito bom. Aqui ele garante a diversão, e todas as memórias que o filme deixa são de sua habilidade cômica. Como diretor, Clooney talvez precise voltar ao patamar ambicioso de seu austero e jazzístico Boa Noite e Boa Sorte.

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Mike Nichols começou a carreira com Quem Tem Medo de Virginia Woolf? e A Primeira Noite de um Homem, mas hoje em dia não é homem que honra o currículo. Depois do superescrito, pretensioso e desigual Closer - Perto Demais, ele chega ao fundo do poço com o medonho Jogos de Poder, um filme político peso-pena de 90 minutos e superficialidade assustadora.

Trata a interferência dos Estados Unidos no Afeganistão dos 80 como uma estripulia de um homem charmoso - e sem nenhuma crítica sobre isso, como nos mostram o início e o fim da projeção, com Tom Hanks recebendo um prêmio, emocionado. O filme é um erro completo de tom, não tem força para envergar a comédia até o ponto da sátira e tem a pior atuação de Julia Roberts na carreira. Philip Seymour Hoffman tirou da cartola uma indicação ao Oscar, não sei como. Bomba.

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Também detesto, e "de com força", esse Se Beber, Não Case, que estreou no Brasil agora. O fato de ser a comédia com maior bilheteria desde Um Tira da Pesada é bem revelador: estamos chafurdando na grosseria e na estupidez. Nada contra escatologia como transgressão, mas aqui, nesse filme, as piadas de banheiro são apenas uma tentativa tola de comédia maluca incessante que já era velha em 1940, uma vontade de garantir de saco de risos enquanto o final conservador (casamento, amor eterno) não chega. O horror, o horror. Para um pouco de escatologia cinematograficamente competente, ver o excelente Como se Fosse a Primeira Vez, com Adam Sandler e Drew Barrymore.

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Depois de tanta porcaria e mediocridade, nada como a beleza avassaladora de Morrer de Amor, outra obra-prima de Alain Resnais. Assim como em Mélo, o tema do amor como motor de destruição é totalmente Trufô, mas o rigidamente teatral e não-intrusivo de Resnais transformam a paixão em religião. O filme é hierático, sólido como uma rocha, duro, cheio de planos fixos e close-ups de arrasar, plenos de uma graça quase divina. A obstinação da mulher em permancer junto ao amado, mesmo do lado da morte, tornariam Bresson uma referência fácil, se Bresson falasse de amor.

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Revisto na tv, Onde Os Fracos Não Têm Vez continua sendo o melhor vencedor do Oscar desde O Franco-Atirador e o melhor longa dos Coen (Barton Fink é o segundo, de perto). Não bastasse a precisão neurocirúrgica com que cada sequência é filmada e montada (mão gela de tanta tensão), o tom apocalíptico em modo turbo radicaliza a desesperança do faroeste psicológico e suas atualizações, como Os Desajustados, e O Indomado. No fundo, primeiro próximo e sangrento de Brokeback Mountain, só que em outro gênero - em vez do melodrama, o thriller.

domingo, agosto 16, 2009

Inimigos Públicos, A Bela Junie

Ok, de volta ao blog após um longo recesso - um mês, na internet, é uma eternidade. Pois bem, tiremos logo da frente o Inimigos Públicos, meu filme mais esperado do ano, feito por um dos diretores mais sensacionais da atualidade. Havia falado num post anterior sobre autores em grande fase, como Almodóvar e Ang Lee, e da expectativa de decepção que vem junto cada vez que um desses caras lança um filme.

Dessa vez, com Michael Mann, não teve jeito. O filme tem momentos lindos, cenas de grande cinema, mas depois de Miami Vice não tem como não ver as arestas desse aqui. Por que um filme que tem Johnny Depp e Marion Cotillard fazendo o que fazem aqui precisa perder tempo com os esforços policiais para prender o bandido-protagonista?

Cada vez que perdemos Depp de vista o filme ganha uma corrente nos pés, e deixa a sensação de que estamos perdendo algo importante da relação de Dillinger e sua namorada francesa-índia, mesmo quando eles estão separados. Em seus policiais Michael Mann sempre soube administrar esse paralelismo ação-vida muito bem, especialmente em suas duas obras-primas, Fogo Contra Fogo e Miami Vice.



Johnny Depp, Dillinger

Os relacionamentos pessoais eram tão fortes que praticamente conduziam a projeção, independentemente da trama policial. Não são filmes sobre perseguições, mas sobre homens e seus conflitos - um amor de verão em Cuba, um casamento em ruínas ou uma relação difícil com uma filha. Para que esses filmes fossem, em si, "policiais", Mann exercitava todo seu epicismo em grandes cenas de ação, como aquele tiroteio de Fogo Contra Fogo, e só assim alcançava o equilíbrio público & privado que é particular a seu cinema. A cada morte, a cada ferimento a bala, a dor vinha mais forte. Tem alguém ali, uma pessoa embaixo da carcaça de vítima ou algoz.

Apesar de alguns planos realmente antológicos, no entanto, o Mann diretor de gênero deixa de impressionar, a ponto de que os assaltos a banco parecem inferiores aos do último Batman, um filme que copiou descaradamente do cineasta. Faltam elaboração e força em vários dos momentos de ação do filme, que parecem ser dirigidos por um imitador.

A substituição do fotógrafo Dion Beebe pelo veterano Dante Spinotti parece também um erro: o visual perde aquela qualidade quase surreal de improviso que os dois longas anteriores de Mann tinham, como se a luz borrada fosse análoga a notas de jazz, rebeldes, estouradas. E essa luz some justo agora, naquele filme que deveria ser o mais jazzy do diretor, e que acaba sendo o mais austero.

Lendo esses parágrafos, pode-se ter a impressão de que estou sendo negativo em relação ao filme. Não estou: antes de restrições, essas ideias são mais justificativas da inferioridade desse Inimigos Públicos em relação ao auge de Michael Mann. Mesmo assim, alguns passos atrás, ele ainda é um dos maiores gênios da atualidade, e será difícil encontrar até seu próximo longa alguem que entregue momentos como o que ele mostra aqui. O filme é sensacional, mesmo que imperfeito.

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Outro caso de diretor trabalhando um nível abaixo em relação ao que já alcançou é Christophe Honoré, mas nesse caso eu não saberia exatamente o porquê. Amei de com força seu filme anterior, Canções de Amor, e esse A Bela Junie é também muito bonito, só que não bate igual.

No fundo, é outro exercício de romantismo do diretor, só que em outro tom. Honoré continua longe dos cânones cinematográficos hollywoodianos, sem juras de eternidade e moralismos, e entende, como Truffaut, o amor em sua dimensão mais orgânica, capaz de provocar distúrbios no corpo e na alma por sua intensidade. Seus filmes exibem sexualidade exarcebada, mas não gratuita, e entendem que existe amor além do mundo hetero.



Léa Sydoux e Gregóire Leprince-Ringuet

A mudança do tom se registra na passagem da alegria do musical à sobriedade de um romance de séculos passados, adaptado a uma escola secundária da atualidade sem muitos ajustes. É um filme lindo e apaixonado, mas para manter a analogia com Trufô, não é porralouca como Jules e Jim, mas terno e rigoroso como As Duas Inglesas e o Amor.

Trufô também aparece aqui e ali na relação próxima do amor com a morte, e a saída de cena de um dos personagens tem aquela magia triste que o mestre da nouvelle vague conseguiu conjurar ao encerrar coisas como A Mulher do Lado ou A História de Adele H. É o amor como doença terminal, como diria Kléber Mendonça Filho. Mas, no todo, o filme de Honoré não suporta a comparação.

PS: Essa menina Léa Sydoux é uma revelação. Gregóire Leprince-Ringuet, que fez o garoto gay em Canções de Amor, está mais uma vez perfeito, com o coração carregado de dor. O ator do ano, provavelmente.

quarta-feira, julho 22, 2009

Argentina, Uruguai

Quem são meus diretores favoritos hoje? Acho que essa lista com certeza teria Michael Mann (Miami Vice, Colateral, Fogo Contra Fogo), Wong Kar-Wai (Amor à Flor da Pele, 2046, Felizes Juntos), e Clint Eastwood (dã), etc, etc. A lista é longa, mas dentro desse grupo há com certeza espaço para a obra do argentino Daniel Burman, um cara que normalmente não entraria em listas de consenso, mas que, para mim, é praticamente um herói. Se eu fosse cineasta queria fazer filmes iguais aos dele.

Burman tem um cinema discreto e fluido, mas me parece ser o homem que melhor escreve hoje, junto com Desplechin. Faz filmes quase verbosos, super-escritos, e já foi comparado a Woody Allen, mas há uma leveza impressa em cada frase e desdobramento de trama que me parece jogar por terra essas críticas. Estamos dentro da mente de alguém bem próximo, capa de pensar e se expressar rápido, mas não há nada aqui da chatíssima vontade de ser irônico/pós-moderno de fraudes como Diablo Cody e Charlie Kaufman. Burman é lindamente livre de sarcasmo.

Seu coração aberto e excelente olho para gente fazem também com que seus filmes não sejam apenas peças engendradas com inteligência narrativa à antiga. Nessas comédias falsamente peso-pena de classe média, verdades pontiagudas aqui e ali que sugerem uma melancolia muito bem lograda, perfeitamente inserida no cotidiano e sem qualquer lance de dramalhão, mesmo com histórias de reconciliação familiar.



Pois bem, eu não vi os primeiros longas dele, mas me apaixonei completamente por Abraço Partido, e talvez mais ainda por As Leis de Família, dois filmes estrelados por um xará do diretor, o uruguaio Daniel Hendler, em papeis parecidos de jovem hesitante, judeus como o cineasta, ambos chamados Ariel. Vi esses dias por aqui Ninho Vazio, outro prazer imenso de cinema e texto, com uma acenada para o fantástico.

Começa com uma cena maravilhosa, jantar de amigos intelectuais, e vem outra e mais uma, e uma terceira cena incrível, e assim sucessivamente. Estruturalmente, no entanto, há alguma obviedade nas tentativas de metalinguagem, e por melhor que seja a empatia criada com o protagonista-escritor-turrão, Burman é ainda melhor quando escreve sobre pessoas de sua geração, mais jovens. Conflitos parecem mais acertados, sem arestas. Mas, por esses vários momentos soltos de pura graça, uma sessão de encanto, sim.

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Bem mais redondo, embora de uma frieza quase glacial é o incrível Aura, do também argentino Fabian Bielinsky, o mesmo diretor de Nove Rainhas, morto prematuramente por um ataque cardíaco. Filme de gênero com gosto, noir de simbolismos não-estensivos, protagonizado por um taxidermista epilético. É o tipo de coisa que não fazemos do lado de cá da fronteira, a mesma releitura do policial de erros hollywoodiano tão consagrada pelos irmãos Coen em toda a sua obra. Gélido, violento, atmosférico e completamente seco em sua narrativa, Aura se sustenta muito bem na comparação com a obra dos diretores americanos.

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Do outro lado do Rio da Prata, dois filmes também muito bons. 25 Watts, longa de estreia da dupla Juan Pedro Rebella e Pablo Stoll (mais tarde fariam o genial Whisky; o duo acabou com o suicídio de Rebella), mostra um dia de tédio de três amigos de classe média em Montevidéu de maneira muito espirituosa. Feito na guerrilha com 200 mil dólares, o filme se livra muito bem de suas limitações financeiras e as converte em mérito.

Câmeras fixas, apartamentos de verdade, p&b meio sujo - tudo isso se vira a favor do filme e de sua modorra. Não há aqui aqueles climões asiáticos, e sim um humor bem masculino, mas discreto, que sempre surge quando um grupo de homens jovens não sabe muito o que fazer da vida. Cheguei até desconfiar de uma influência de Cassavetes, mas o lance aqui é mais cômico mesmo, e um agradecimento nos créditos a Jim Jarmusch esclarece mais as coisas. Podia até ser um curta, mas um colega de trabalho uruguaio já me disse que a alma do país é a repetição - por isso o filme se resolve tão bem em sua hora e meia. Eles dominam esse vazio.

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O outro filme uruguaio é O Banheiro do Papa, de Enrique Fernández e César Charlone, este último o consagrado fotógrafo de Fernando Meirelles. Bonito também, numa daquelas histórias de cinema iraniano: cidadezinha do interior se mobiliza para vender comidas durante a visita de João Paulo II, em 88. O protagonista resolve construir um banheiro para atender as necessidades do grande grupo de romeiros esperado. A comparação com o cinema iraniano vai além da história: temos de volta aquela grande sensação de naturalidade, em casas autênticas, atores com caras reais e um bom humor e amor à vida invejáveis. Dá até uma saudade de Jafar Panahi.

sábado, julho 04, 2009

Salvação da lavoura

Ainda não vi Serras da Desordem - o filme mais amplamente reconhecido como o melhor brasileiro dos últimos tempos - mas, mesmo com esta falta, aponto aqui a minha preferida entre as produções nacionais. A Casa de Alice, que vi aqui no exílio, no laptop, tem um nível de lucidez ao tratar com o elemento "gente" que me parece completamente inédito no que temos feito, mesmo com pontos altos como O Céu de Suely ou Cinema, Aspirinas e Urubus.



A Casa de Alice supera esses filmes porque não precisa correr atrás de uma humanidade distante do público e do próprio diretor em algum ponto isolado do sertão nordestino ou numa favela carioca. Chico Teixeira dá um 180° e filma um cenário muito mais reconhecível: é a classe média em seus pequenos infernos, dentro de uma cidade grande. Não é um filme sobre "o outro", graças a Deus. Tirando Domingos de Oliveira, até que enfim alguém resolveu fazer um filme sobre um mundo que conhece.

Beneficiado por este conhecimento, Teixeira alcança nível de excelência que me lembra alguns filmes argentinos contemporâneos, como O Pântano, ou Família Rodante. Não deixa de ser curioso que os argentinos façam esse tipo de coisa com o pé nas costas, e nós só agora alcancemos esse patamar. A Casa de Alice não apenas tem verdade - coisa que já havia em outros bons filmes brasileiros recentes -, mas também provoca identificação.

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Um nível abaixo está a beleza de Mutum, que a ultraurbana Sandra Kogut logroua partir daquele lindíssimo Campo Geral, de Guimarães Rosa, que li em 2002 pro vestibular da Unicamp. O filme funciona em dois níveis. Primeiro, tem a bola bem baixa, sem que sua simplicidade pareça em nenhum momento um artifício artístico, um falseamento da vontade de filmar no "arte" mode. Mutum tem a dimensão que devia ter e pronto.

Em segundo, consegue atualizar muito bem Rosa, mesmo fugindo de suas armadilhas de linguagem. O cheiro da terra e da gente é o mesmo, chega intacto. O andamento, o ritmo, a o tempo próprio do autor são maravilhosamente traduzidos pela montagem discreta e eficiente. Um prazer.

PS: Desejo e Perigo em cartaz em Salvador. Junto com Gran Torino e Entre os Muros da Escola, forma a atual trinca de filmes do ano. Imperdível.

quarta-feira, junho 24, 2009

Streep 60

Fernanda Montenegro e Katharine Hepburn, duas das melhores atrizes de todos os tempos, já manifestaram sua opinião não muito lisonjeira sobre Meryl Streep, que seria mecânica, fria, gelada, sem a emoção que caracteriza os grandes intérpretes. Concordo discordando: Streep é mesmo maquinal, mas é genial desse jeito, e sua força camaleônica vem justamente da sua precisão técnica. Ver alguns de seus melhores trabalhos é algo parecido com experimentar o espanto causado por um prodígio arquitetônico. É um fascínio pelo rigor, mas é ainda assim emocionante, estético.

Essa característica está cada vez mais evidente no trabalho da atriz, acho. Em O Diabo Veste Prada ela mói um texto ruim sílaba a sílaba, pegando aquele seu bordão "That's All" e o desdobrando em mil entonações e variações, cada uma com efeito diferente. Seu discurso sobre o "cerúleo" é um primor desse tipo de coisa, com aquele fff pronunciado em stuff, surpresa, desprezo e arrogância. No início do ano, outro trabalho fenomenal no mesmo estilo, em Dúvida, que deveria ter levado o Oscar sobre o trabalho de Kate Winslet em O Leitor, bom, mas inferior a outros grandes momentos da inglesa. No meio dessas atuações, para desmentir Hepburn e Montenegro, Streep relaxou o quanto pôde e pôs muito coração no derradeiro filme de Robert Altman, A Última Noite.

Estou falando de Streep porque ela completou 60 anos dia 22, e, apesar de alguns tweets sobre a data, senti necessidade de um top ten. O melhor de Meryl Streep em dez filmes:


10 - Entre Dois Amores


9 - Ironweed


8 - Dúvida


7 - Kramer vs Kramer


6 - O Franco Atirador


5 - O Diabo Veste Prada


4 - Um Grito no Escuro


3 - A Mulher do Tenente Francês


2 - A Escolha de Sofia


1 - As Pontes de Madison

quarta-feira, junho 17, 2009

Sexo e sangue

Embora seja frequentemente subestimado, acho que Ang Lee tá numa fase tão boa que ao ver seu último filme lançado comercialmente, Desejo e Perigo, senti aquele tipo de expectativa do erro de um grande artista, algo que tenho encarado nos filmes de Almodóvar desde que Fale Com Ela teve a dura missão de seguir Tudo Sobre Minha Mãe.

Depois de seu inebriante musical hollywoodiano O Tigre e o Dragão, do arrojada subversão do blockbuster em Hulk e da delicadeza infinita de O Segredo de Brokeback Mountain, Lee fez mais um filmaço. Desejo e Perigo é uma cacetada capaz de suspender a respiração em longos e lentos 156 minutos, dotados do mais fino classicismo presente no cinema atual.

É um filme que honra uma velha escola de épicos calculadamente contidos, cheios de uma suntuosidade de silêncios, luxuosos cenários e corpos enquadrados em planos fixos que nos melhores momentos lembram O Poderoso Chefão Parte II, de Coppola, ou O Inocente, de Visconti. Detratores podem chamar esse show não-ostentatório de academicismo. O conceito, no entanto, passa pela obediência estúpida a padrões consagrados, mas não pelo uso desses cânones com a expressividade típica da assinatura Ang Lee.



Não por acaso, esse cabo de guerra entre épico e íntimo que o filme tão bem administra é quase uma metáfora do impasse em que vivem os personagens filmados pelo diretor em todos os seus filmes. Impasse, aliás, roubado de Jane Austen, sense e sensibility, Razão e Sentimento, como no romance que Lee filmou, maravilhosamente. O filme se equilibra na corda bamba entre filmar o interno (as emoções) e o externo (a política, a sociedade e a guerra), que é a mesmo conflito da espiã da resistência chinesa e do militar colaboracionista.

Ironicamente, em seu filme mais rico e luxuoso, Lee se desvia de abordar esse conflito com os pés do lado das convenções, como fez em Razão e Sensibilidade, O Tigre e o Dragão ou Tempestade de Gelo. Por mais que pareça o contrário na primeira hora e meia, desta vez, assim como em Hulk, Lee está mais interessado no poder do corpo, da paixão e do sexo, invertendo o sentido de influência na relação público-privado.

Tony Leung e Tang Wei podem não ficar verdes, mas se entregam às mais belas e necessárias cenas de sexo em muito tempo, desgastantes batalhas sobre a cama, mais tensas que qualquer cena de ação vistas na última década. Maravilha.

>>> Deixe Ela Entrar, o tal filme sueco de vampiros que se tornou o maior cult do último ano, é mais uma reapropriação recente de histórias de trancoso off-Hollywood, e das mais felizes. Se O Orfanato partia rumo à gótica "casa do terror" e REC em direção aos zumbis, Deixa Ela Entrar revive mais uma vez o vampirismo com lentidão e lerdeza de dar inveja em M. Night Shyamalan.



O filme é um arraso de direção, cena após cena, um intrigante jogo de esconder e mostrar a violência. O diretor Tomas Alfredson investe pesado em planos abertos para acentuar o realismo de sua história fantástica e torná-la crível, mas, ao mesmo tempo, consegue não ser gráfico dentro do quadro, quase como se marcasse suas cenas de modo teatral. As sequências são todas inteligentes, principalmente a última explosão de sangue numa piscina, e o resultado final é um primor de elegância. Mesmo para quem não tem paciência para o fantastique.

quinta-feira, junho 11, 2009

John Wayne

John Wayne Pictures, Images and Photos

Esse post aqui vai pra Gabriela, que me ensinou a gostar de John Wayne ao me abrir os olhos para Rastros de Ódio. Pois é, eu vi de primeira e não entendi, e essa minha amiga que já foi definida como barbie indie (por Zezão Castro, que foi colega de redação dela no A Tarde, e mais tarde, meu colega também), de voz baixa e cabelo vermelho, ex-repórter do Dez e fanática por misses, leitora de Colette, Dostoievski, Anita Loos e F. Scott Fitzgerald (hoje ela mudou de gostos), me mostrou como aquele faroeste violento com um protagonista racista era um dos melhores filmes já feitos. Revi várias vezes o filme depois, e a cada vez mais o admiro.

(Depois desse parágrafo Gabriela podia me responder a mesma coisa que aquela garota que o personagem de Woody Allen em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa atormenta numa festa, enumerando seus círculos pessoais: "No, that was wonderful. I love being reduced to a cultural stereotype")

Pois bem, hoje é o aniversário de 30 anos de morte de John Wayne, esse ator maravilhoso, com sua cara talhada em pedra, cheia de rasgos trágicos, que foi ganhando impacto na tela não pela diferença de papéis, mas pela acumulação dessa sua presença única e inimitável, mesmo que pensemos os filmes de fora de ordem.

Como não associar a campanha militar de Marcha de Heróis à destruição do casamento de Rio Grande? O amor não-realizado de Ethan Edwards, de Rastros de Ódio, não é o mesmo de Tom Doniphon, de O Homem Que Matou o Facínora? John Wayne não era versátil, mas conseguiu criar múltiplas dimensões de um mesmo tipo, e era por isso que quanto mais filmes como ele a gente vê, mas ele parece real.

Gabriela, versada em John Wayne, me disse algumas vezes que ele parecia de fato uma pessoa conhecida, e é por isso que sentimos tanto carinho por ele na tela. Eu, ao menos, sinto, e a dor transmitida por ele quando sua voz metálica grita Martha depois daquela chacina promovida pelos índios é das maiores emoções do cinema.

sexta-feira, junho 05, 2009

Apresentação de personagens

Ida:

A única jaça na beleza de Ida era o comprimento excessivo dos braços, graças ao qual, talvez, ela derrotara o ex-marido tantas vezes na mesa de bilhar, jogo em que ela manifestava uma superioridade que era, em sua opinião, uma das causas do ressentimento manifestado por Beale através de atos de violência física. O bilhar era a maior realização de Ida, e a primeira distinção mencionada sempre que seu nome vinha à baila. Fora algumas linhas muito alongadas, tudo que poderia ser grande, e que embelezava muitas mulheres por sê-lo, nela era, com uma única exceção, mencionado e admirado por sua pequenez. Esta exceção eram os olhos, que, embora medíocres quanto ao tamanho, conseguiam extravasar as modestas medidas naturais; sua boca, por outro lado, era quase imperceptível, e com freqüência faziam-se apostas referentes à medida de sua cintura. Era uma pessoa que, quando saía - e saía sempre - causava, onde quer que fosse, a impressão de ser vista com freqüência, ou mesmo de abusar do direito de ser vista, de modo que, nos lugares habituais, seria um tanto vulgar admirá-la abertamente. Apenas os estranhos o faziam; porém estes, para o deleite dos habituados, faziam-no com ênfase: era uma manifestação inevitável da condição de forasteiro.

Beale:


Beale Farange dispunha de adornos naturais, uma espécie de fantasia composta de uma barba loura e abundante, brunida como um peitoral dourado, e dentes sempre reluzentes, que os longos bigodes eram penteados de modo a não ocultar e que lhe davam, em todas as situações possíveis, um ar de alegria de viver. Na juventude fora encaminhado para a diplomacia, e estivera temporariamente vinculado, sem salário, a uma missão diplomática, circunstância essa que lhe permitia dizer, com freqüência: "No tempo em que eu estava no Oriente...". Porém a história contemporânea, ao que parecia, não precisara de seus préstimos, passara por ele célere e deixara-o perpetuamente em Piccadilly. Todos sabiam o quanto ele tinha - apenas duas mil e quinhentas libras. À pobre Ida, que já dera cabo de tudo que tinha, agora só restavam a carruagem e o tio paralítico. Este velho desgraçado, como costumava ser qualificado, era supostamente dono de uma fortuna considerável. O futuro da menina estava garantido, graças a uma herança deixada por uma madrinha astuta, uma falecida tia de Beale: os pais só tinham acesso aos rendimentos.


Estou aqui roubando a ideia de Gabi, e seus trechos da semana / quinzena / mês. Os dois trechos acima estão no mesmo parágrafo, logo nas primeiras páginas de Pelos Olhos de Maisie, de Henry James. Tradução de Paulo Henriques Britto.

domingo, maio 31, 2009

Livros do exílio #4

Os dois últimos livros que li foram escritos por mulheres. Correntezas, da inglesa Penelope Fitzgerald, venceu o Man Booker Prize em 1979, época em que a autora ainda não havia partido para seus mais famosos romances históricos. A marca maior de Correntezas é uma delicadeza bem plácida, retrato da comunidade de moradores de veleiros à beira do rio Tâmisa, onde a própria Fitzgerald viveu parte da adolescência. É um livro certamente generoso, franco e amoroso com seu grupo de personagens, mas falta algum toque de gênio que o destaque de outras histórias mínimas bem contadas.

Mais desafiador é Chéri, de Colette, livro frequentemente irritante na frivolidade de seu chá com biscoito, mas capaz de mostrar um alcance bem maior que o insinuado inicialmente pela sua carcaça. Começa com uma sucessão de cafés da manhã e visitas para o chá entre ex-prostitutas de meia idade, agora convertida em respeitáveis cortesãs, cada uma delas equipada com um amante pelo menos 20 anos mais novo.



Colette

O forte de Colette não é mesmo o estilo, e seu frufru de salão é de uma banalidade tão grande que chega a ser difícil prender a atenção - ingleses parecem ter muito mais texto para segurar esse tipo de coisa, acho. A obra ganha força, no entanto, por sua abordagem frontal de coisas como sexo, tesão e envelhecimento, e o livro só melhora quando passa a ser uma peça de câmara (ou alcova, melhor dizendo): dois amantes de seis anos percebem que o que viveram era muito mais que cama & diversão, mas algumas coisas infelizmente não têm volta.

Deve estrear até o fim do ano no Brasil a adaptação de Stephen Frears para o cinema. Se o original é alguma indicação, Michelle Pfeiffer vai ter o melhor papel da carreira desde a Mulher Gato.